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março 9, 2009
Rumos Artes Visuais 2008 / 2009 – Trilhas do Desejo por Paulo Sergio Duarte
O programa na edição 2008 / 2009
Trata-se de um programa de prospecção da arte brasileira contemporânea sem privilegiar locais ou linguagens e focalizado naqueles artistas que ainda não emergiram e se afirmaram. O norte orientador das escolhas finais é o da busca da excelência, da investigação pelo trabalho exemplar. É também um projeto de debate de idéias e formação por meio de palestras, cursos, oficinas (workshops) e contribuições para acervos de bibliotecas, portanto tem um forte viés educativo. No momento em que visitamos uma exposição ou temos à mão o catálogo do programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais estamos diante de momentos privilegiados, mas apenas momentos, de um longo e complexo processo de trabalho. Complexidade exigida pela consciência do próprio caráter da cultura brasileira extremamente diversificada sobre um imenso território.
Essa 4ª edição do programa é privilegiada pela experiência acumulada pelo Instituto Itaú Cultural nas edições anteriores. Persistência e permanência são palavras chaves desse trabalho numa época muito dada ao furor reformista, à avidez de mudanças, à velocidade para ir do nada a lugar nenhum, na qual continuidade e permanência são características raras. Isto não significa absolutamente a cristalização de métodos e a conseqüente estagnação. O Rumos é submetido a sucessivas correções de rumo no sentido de aperfeiçoar o processo de trabalho.
Reflete esse desenvolvimento do programa a própria composição da equipe de colaboradores. Nessa edição – além do curador / coordenador geral – foi composta por quatro curadores de diferentes regiões do país: Alexandre Sequeira, de Belém; Marília Panitz, de Brasília; Christine Melo, de São Paulo; e Paulo Reis, de Curitiba. Cada um dos curadores foi responsável pela supervisão do trabalho de uma região diferente da sua. Oito assistentes de curadoria ficaram com a tarefa de difusão e prospecção em suas respectivas regiões: Armando Queiroz, de Belém, com a Região Norte; Bitu Cassundé, de Fortaleza, com Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba; Clarissa Diniz, de Recife, com Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia; Janaína Melo, de Belo Horizonte, com Minas Gerais e Espírito Santo; Guilherme Bueno, do Rio de Janeiro, com Rio de Janeiro; Marcio Harum, de São Paulo, com São Paulo; Gabriela Mota, de Porto Alegre, com Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; last but not least Veronica Moreira Neto, de Brasília, com o Centro-Oeste. Acrescente-se, ainda, Guy Amado que coordenou todas as mesas redondas de apresentação do projeto – o único membro da equipe a percorrer de norte a sul, de leste a oeste, toda a atividade de difusão do programa em 2008.
A esses colaboradores se soma a estreita e rica colaboração da equipe interna do Itaú Cultural que me surpreendeu não apenas pela elevada competência técnica e discernimento como por manifestar um humor que favorece um ótimo clima de trabalho. Ao longo de décadas de experiência nesse campo raramente encontrei reunido numa mesma instituição um espírito profissional e harmonioso como este. Um termômetro da importância deste programa é dado pelo número de inscrições: 1617 artistas e coletivos inscritos em 2008. O longo e nada fácil processo de seleção durou várias jornadas de trabalho em duas etapas. Na primeira fase, envolvendo toda a equipe de curadores e assistentes, foram selecionados cerca de 300 dossiês. Na segunda etapa, com a participação somente dos curadores, chegou-se ao número final de 45 artistas e coletivos.
A importância estratégica dos programas de artes visuais no contexto cultural brasileiro
A sociedade em geral e os estratos do poder público e privado em particular não se dão conta da importância estratégica dos programas de artes visuais na construção de uma nação com as dimensões e a complexidade do Brasil. Querem um exemplo? Passados quase cinqüenta anos da inauguração da nova capital do país, treze presidentes da república entre democratas e ditadores, onde se encontra seu museu de arte? Em lugar ermo, agora povoado por um conjunto hoteleiro de arquitetura pífia, no prédio que sediou o antigo Clube das Forças Armadas na época da construção da cidade. E não me venham com essa de que a música é a marca de nossa identidade e que a arte não ocupa o mesmo lugar no imaginário popular. Poucas músicas de origem popular influenciaram mais o universo sonoro do século 20 que o blues, o jazz e o rock, e nem por isso os americanos deixaram de investir na formação do olhar de seus cidadãos com a constituição de poderosas coleções de arte sediadas em museus de dezenas de cidades.
Não falemos de Washington, Nova York, Filadélfia ou Chicago. Visite-se o Museu de Arte de Cleveland, uma cidade com menos de 500.000 habitantes, no centro de uma região metropolitana com a população de cerca de 2.250.000 pessoas. Com seu acervo, um professor pode ensinar a história da arte dos etruscos ao contemporâneo Kiefer. Apesar de Hollywood, da Broadway, das grandes redes de televisão, das milionárias estrelas pop, os americanos não confundem arte com entertainment, show business e indústria cultural. Ao contrário, ganham muito dinheiro com essa indústria e investem em arte.
Aqui, dirigentes de museus de arte passam anos negociando com autoridades pela conquista de espaços que permitam melhor equipar suas instituições e apresentar suas coleções. Colecionadores generosos assistem à precariedade com que são acolhidas e guardadas suas obras quando cedidas em comodato em instituições públicas. É hora de reverter esse quadro em políticas públicas permanentes e suprapartidárias.
O programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais, um exemplo bem sucedido de parceria entre o público e o privado, se inscreve dentro do que deve vir a se constituir numa estratégia maior de nossas políticas públicas de reversão do estatuto da arte no campo da cultura brasileira. Não somente deve receber apoio como deve ser complementado, por políticas específicas que fortaleçam as infra-estruturas dos museus existentes, a formação e remuneração de profissionais com salários dignos e, acima de tudo, programas de apoio ao artista com bolsas de trabalho e políticas de aquisição de obras de arte para a constituição de acervos locais e nacionais.
Desde os anos 50 do século passado, a arte brasileira vem dando evidentes aportes à história da arte. O reconhecimento internacional das contribuições de diversos artistas e movimentos se faz sentir não somente na bibliografia estrangeira como em exposições e significativas aquisições. Agora mesmo, no momento em que se realizam as exposições do Rumos 2008 / 2009, uma grande exposição de Cildo Meireles, percorre importantes instituições: depois de magistralmente montada na Tate Modern, em Londres, onde gozou de espaço e destaque idêntico a uma grande e simultânea exposição de Mark Rothko, segue para Barcelona, Houston, Los Angeles e Ontário.
Essa edição do Rumos 2008 / 2009 testemunha a vitalidade da arte contemporânea brasileira que se encontra diante dos mesmos desafios e impasses que toda a arte de nossa época. É necessário que os estratos do poder tenham consciência disso: não existe grande nação sem uma grande demonstração de sua própria arte. E fica a pergunta: algum presidente da república já levou algum visitante estrangeiro para visitar o Museu de Arte de Brasília.
A notável diversidade dos meios
Fala-se muito na diversidade cultural brasileira. No campo das artes visuais o que mais chama a atenção, é a notável diversidade dos meios utilizados como veículos e material de expressão que não discrimina lugar ou região, não importa o local que se percorra, as diferenças geográficas e climáticas, os diversos sotaques, as variações gastronômicas, os diferentes ritmos musicais, sempre a mesma preocupação com a busca de diferentes meios de expressão que escapa à rigidez acadêmica.
Se os meios tradicionais, principalmente a pintura e a gravura, pode-se sentir mais presentes, nunca são hegemônicos e sempre estão acompanhados de certa preocupação com o que os italianos chamam de aggiornamento e que a palavra atualização não traduz todo o sentido. Estar em dia com o que se identifica como o “contemporâneo” às vezes traz surpresas agradáveis, outras nem tanto. Se é notório o uso inteligente e criativo da fotografia por artistas de Belém do Pará, a febre da instalação raramente traz bons resultados em qualquer região.
Clarissa Diniz, com sua sagacidade, denominou a essas manifestações desajeitadas de artistas ávidos por se manifestarem por meios que ainda não dominam de “efeitos colaterais da arte contemporânea”. E Clarissa, no seu trabalho de prospecção em visitas a ateliês pode testemunhar os pequenos desastres causados pelo remédio da “arte nova”. Um artista lhe apresenta um projeto de instalação sem pé nem cabeça, depois de alguma discussão e em contato com o percurso do artista descobre que o “instalador” tem um excelente trabalho em xilogravura, mas que não enviou para o concurso porque pensa que aquilo não é “contemporâneo”.
O melhor da arte hoje é não privilegiar nenhum meio e tratá-los, todos, horizontalmente, procurando a potência poética dos trabalhos, por isso a quase milenar xilogravura pode conviver lado a lado com vídeos que fazem uso de avançados recursos de computação gráfica. Isto seria a maior conquista daquilo que vem sendo chamado – a partir de Rosalind Krauss – de “arte na era pós-medium”. Nenhum meio seja pintura, gravura, escultura, instalação, fotografia ou vídeo, nunca foi nem vai ser garantia de talento poético e qualidade artística. A dificuldade do meio não impede que artistas jovens o dominem quando a sensibilidade do autor está afinada com a linguagem que vai fazer uso para materializar suas preocupações poéticas. E a mostra traz testemunhos de domínio tanto na ocupação do espaço e apropriação de lugares em instalações, como no uso da imagem fixa ou em movimento, em fotografias e vídeos, quanto em pinturas e gravuras.
Se a mesma Rosalind Krauss sublinhou, desde a década de 1970, a dilatação do campo da escultura, é preciso, igualmente, notar a expansão das experiências pictóricas. A persistência da pintura, para além das técnicas tradicionais que fazem uso do pincel e das telas é uma das contribuições que chama a atenção nessa edição do Rumos. A inteligência das oposições cromáticas não se encontra apenas virtualmente dentro dos tubos de tintas, mas no uso de diferentes materiais, desde objetos tridimensionais até nas instalações. Uma tradição recente, bem assentada nas obras de Alfredo Volpi e Eduardo Sued, tem continuidade. Dessas novas relações cromáticas e da ampliação do campo pictórico participa menos uma investigação das teorias da cor ou a simples experiência empírica da tentativa e erro que o mundo pós-industrial da publicidade e do medium eletrônico.
Durante o exame de dossiês, pude observar, mesmo em artistas que fazem uso dos recursos técnicos tradicionais como a tela e o pincel com temas locais em regiões remotas do Noroeste, a influência da percepção cotidiana da cor produzida pelo tubo de raio catodo da televisão e dos monitores de computadores.
Se para a minha geração, aquela que nasceu logo no início do segundo pós-guerra, a primeira página dos jornais era a “paisagem” a ser contemplada ao amanhecer todos os dias, a nova “natureza” mais experimentada pelas gerações mais recentes é a imagem eletrônica e o outdoor publicitário. À nova percepção corresponde uma paleta diferente de cores que não vacila e que se impõe mais decidida, com a contrapartida da perda de nuances e sutilezas nas relações cromáticas.
Gramáticas urbanas em rupturas e continuidades
Algo que se pode notar, não somente nessa edição do Rumos, mas em diferentes mostras de arte contemporânea no Brasil, é o amplo predomínio do mundo urbano sobre o mundo rural. Este, quando aparece, e é raro, é tratado por linguagens urbanas e as preocupações estão mais voltadas por uma perspectiva influenciada pela ecologia e as questões ambientais que aquelas propriamente rurais. A arte responde ao deslocamento brutal provocado pelo processo anárquico da urbanização no país. De 45% da população residente em áreas urbanas em 1960, passamos a 81% no ano 2000.
É importante notar que parte da produção apresentada não mantém contato com uma memória, mesmo do passado recente. É um traço de parte da arte contemporânea no Oriente e no Ocidente, no Norte e no Sul, e de uma porção significativa da arte brasileira atual. A história pareceria terra arrasada se esse processo, já datado de cinco décadas não tivesse sua própria história; a insistência na disjunção sobre a conjunção com o passado, foi uma marca das vanguardas modernas do início do século 20 e um dos traços marcantes do alvorecer do que chamamos de arte contemporânea nos anos 60. Essa pulsão pelo esquecimento para buscar a inovação às vezes funciona, às vezes não, não é uma fórmula que possa garantir, a priori, bons resultados. Entretanto estão presentes obras que mantém laços estreitos com o passado moderno, principalmente com a tradição construtivista, muito viva na história recente da arte brasileira. Essas preservam um evidente rigor formal nas suas poéticas no espaço e na superfície. Às vezes resultam em bem sucedidas simbioses de recursos híbridos típicos da arte mais recente com o esforço de formalização que se traduzem em belas surpresas.
A ausência de temáticas sociais mais fortes é outro traço que chama a atenção, não apenas entre os artistas selecionados, mas entre todos os inscritos. Não vi nenhum trabalho que fizesse mesmo referência indireta ao Movimento dos Sem Terra ou à favelização do país, por exemplo. Os temas, quando presentes, com freqüência estão ligados à existência mais imediata e individual outro traço comum à arte contemporânea nessa época globalizada, já um capítulo na história e que vem sendo designado como “arte & vida”. Mas esta não é exclusividade da arte, me parece ser também uma característica da música, da poesia, da ficção e do teatro contemporâneos. De forma indireta, e a certo nível de abstração, o elemento comum que se pode constatar é uma exploração libertária das linguagens artísticas para dar conta da vida nas metástases urbanas em que se tornaram as grandes cidades. São as trilhas do desejo.
Seriam as questões existenciais no seu tratamento quase coloquial da vida e muito voltado a questões cotidianas uma nova forma de realismo no complexo e confuso mundo do fim das utopias e das macro-explicações da história? Um realismo necessariamente confuso porque estão ausentes as falsas certezas que permitiam a certas vertentes da arte do passado tomar perspectivas críticas tendo como horizonte as grandes miragens de transformação da vida e do mundo? Essas perguntas latejam por baixo da epiderme de muitos trabalhos que vemos nessa edição do Rumos Artes Visuais.
É mais pelas perguntas do que pelas respostas, perguntas que se manifestam de modo poético de norte a sul, de leste a oeste, que a arte contemporânea traduz, de modo às vezes precário, outras potente, mas quase sempre com vitalidade, a época que vivemos.
Esse programa Rumos Itaú Cultural terá rastreamento e seleção de projetos para o ano de 2009?