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julho 19, 2005
Catálogo do Salão da Bahia: A arte muda. E ainda somos os mesmos por Daniela Bousso
Catálogo do Salão da Bahia: A arte muda. E ainda somos os mesmos
DANIELA BOUSSO
Desde o final do SEC XIX, com as propostas do Impressionismo seguidas da fotografia; passando pelas teorias da arte formalista com as vanguardas russas, pelas mudanças de representação nas propostas de Cezanne, Matisse e Picasso, até as proposições Duchampianas e as dos Surrealistas, a Modernidade provocou uma série de alterações estéticas na arte.
Mas é na passagem da Era Moderna para a Era Contemporânea, a partir do segundo pós guerra,que a arte começa a enfrentar uma outra mudança de paradigma.O consumo de massa e os valores por ele veiculados difundem-se por todas as classes sociais, promovendo o gosto pela novidade,o estímulo à futilidade e o culto do bem estar. A idéia de sedução passa a circular de forma fluida na esfera pública e privada.
No campo da cultura e da arte, inicia-se a busca do tangenciamento entre cultura Pop e erudita. A busca de uma abrangência maior nesse campo, traduziria a alta cultura como uma forma de resistência: inclua-se aí o assentamento das reflexões da Escola de Frankfurt. A cultura Pop por sua vez-contaminada-ficaria no âmbito das celeumas que se criaram a partir do advento da Pop Art nos anos 60, com as proposições de Andy Warhol.
Partindo de Duchamp e do Dadaísmo, Warhol rapidamente podia ser reconhecido como um Neo Dadaísta: introduziu a imagem serial na arte e a utilização dos meios eletrônicos de impressão e reprodução. Aquelas imagens contaminadas pela cultura de massas nada mais eram que um prenúncio de afirmação do advento das redes.
O fluxo das imagens televisivas nos anos 60, somado aos inúmeros desdobramentos da arte nesse período, trouxe importantes contribuições para a posterior transformação do sistema de representação em sistema de imagens.
Se "fluxo" pode ser entendido por uma sucessão de relações que jorram sem conexão entre elas, sem ponto de partida nem de chegada, no fluxo televisivo temos a mescla aleatória de noticiários, programas de auditório, filmes de todos os tipos,telenovelas,tudo entrecortado por uma avalanche de comerciais,dissociado,numa invasão sem fim da vida doméstica.Os artistas da Pop Art, que tinham como referência a linguagem da publicidade, foram formados por um outro fluxo visual ainda marcado por uma visualidade menos frenética.Andy Warhol foi um dos poucos artistas de sua geração que atuou associando o universo Pop com a televisão.
Foi a partir dos anos 70, com a chegada do homem à Lua e as transmissões via satélite que a cultura eletrônica se consolidou alterando muito mais a visualidade. É na esfera do processo de globalização que a percepção se altera; com a chegada dos computadores, as redes informáticas se assentam e promovem a diluição de fronteiras entre próximo e distante, local e longínquo. Juntamente com a TV, a Internet, no início dos anos 80, gerou uma nova realidade no mundo das artes visuais, alterando sua forma de recepção e produção . Com o assentamento das redes informáticas, assistimos a inúmeros desdobramentos artísticos e o sistema da representação migrou para o sistema das imagens. Imagens numéricas, imagens algorrítmicas rompiam, a partir dos anos 70, com a idéia de "grande arte" proposta por Adorno e Horkheimer no final da Modernidade.
A cibercultura, favorecida pela entrada dos PCs nos lares, integrava a vida familiar propriamente dita, inaugurava a vida e a arte na rede. Conseqüentemente a arte se hibridiza e a fruição artística deixa de ser contemplativa; o corpo humano passa a ser o grande produtor de interfaces entre homem e máquina. Velocidade, transformação, mutação, interatividade e imersão, a partir dos anos 80 seriam fatores contundentes para a compreensão e absorção de uma arte que então se expressaria por vias transdisciplinares. As fronteiras entre suportes e meios sofrem um sensível apagamento e a interssecção entre as linguagens do cinema, das artes visuais, da música, da literatura e do documentário passam a integrar vídeos, ambientes imersivos e a arte nas redes. A imagem eletrônica codifica o simbólico, o real e o imaginário e se lança num espaço de infinita capacidade de transformação, fundindo seres e coisas de espécies diferentes, produzindo uma meta-arte em que o sujeito não elabora mais conteúdos românticos, voltada às funções expressivas da linguagem, mas produz paradoxos e interação com outras linguagens. O uso da voz, do tato e do olhar atuam como interface entre homem e máquina.A manifestação expressiva pluridisciplinar traça uma nova cartografia artística que inclui a emergência de um sujeito contemporâneo que irá contribuir de maneira decisiva para uma posterior ressemantização da arte e dos postulados filosóficos.
Ainda na década de 80, a arte transcendeu os muros institucionais expandindo-se para a rua em performances, "grafittis" nos trens dos metrôs nos grandes centros urbanos e ressurgem grupos de ativismo artístico com outras características em relação à arte sócio política ou ativista dos anos sessenta. Ao contrário do que se propaga em geral na maior parte dos textos críticos, a arte dos anos 80 não se resumiu à pintura da Transvanguarda Muito menos no Brasil, a arte dos anos 80 e do início dos 90 também não se restringiu à materialidade e à representação, como quisera um grupo de artistas e críticos que pretendeu resgatar uma pretensa tradição moderna em nossa cultura: ocultando toda e qualquer manifestação artística que não se ativesse às especificidades da pintura ou da materialidade, mesclou-se à idéia mercantilista da transvanguarda realizando uma imensa reserva de mercado. Toda a produção artística que se expressasse pelas vias da imagem ou que contivesse significado ou fosse produzida com os novos meios era excluída. Abria-se espaço para a pintura e para a escultura, reservando-se o limbo e o anonimato às outras produções. A produção de vídeos, a arte produzida em grupos e as iniciativas independentes se difundiam no boca a boca e mais tarde pelas redes.
Sobrepondo-se à tirania da arte restrita às circunscrições das especificidades da estética, a arte da passagem dos anos 80 para os 90 recupera a dimensão simbólica, a subjetividade e a auto-referência, que desaparecera no circuito dos adeptos da "grande arte", como que num acordo tácito.Uma outra produção artística foi se instalando entre nós à medida em que a década avançava. Se,d e um lado, não podemos produzir arte com recursos tão sofisticados quanto os que utilizam os artistas estrangeiros, de outro lado a produção de arte tecnológica brasileira conta com forte dimensão simbólica e conteúdos vigorosos.Distantes do formalismo bem comportado da tradição pós concreta, essas obras estão impregnadas das mais férteis discussões da arte contemporânea. Pesquisas com softwares, internet móvel, bio arte, telefonia celular, desenvolvimento de caves, interações computacionais, integram os interesses da produção de arte contemporânea brasileira. Voltadas à criação de uma consciência crítica, criam uma evocativa em comunicação direta com o espectador. As novas assemblages, tensões e deslocamentos residem na experimentação, na criação do paradoxo pelas vias do humor e da ironia e adentram especulações entre o público e o privado. Investigam as possibilidades da arte afinadas com grandes artistas tais como Bill Viola, que propõe que a arte seja "um território de segurança para a introdução do espectador em regiões da mente ainda inexploradas, um convite aos confins do "EU" ".
A arte produzida na passagem do SEC XX para o SEC XXI é o retrato vivo da nossa condição antropológica.O redesenho de novas cartografias artísticas é constante e acelerado, na velocidade do sistema das redes. Entre os anos cinqüenta e 80 foram os vídeos, os objetos cinéticos, a fotografia, o ingresso dos computadores os happenings e as performances; a poesia visual. Entre os 90 e 2000 integram-se os ambientes imersivos, a bio arte, as nanotecnologias, as simulações computacionais, as comunidades virtuais e os games, o cinema se move, abrindo espaço para "outros cinemas", que tomam forma nas manifestações de Dj e Vjs; diminui a distância entre arte e entretenimento.
Nas redes multimídias, a comunicação interpessoal gera cada vez mais autonomia para a criação e difusão da diversidade de expressões e pensamentos e a arte hoje conta com a possibilidade de estar colocada em tempo real. Finalmente adentramos em uma nova era, estamos em plena era digital e proliferam novas formas de arte que atendem às necessidades de socialização e ludicidade dos nossos tempos. Games, comunidades virtuais, ativismo artístico, simulações computacionais, criam uma tessitura híbrida cada vez mais densa e plena de complexidades. Em arte, não existem mais camadas puras. Há uma zona de interstício que gera a premência de um pensamento crítico capaz de ler, articular e situar esses novos modos de criação artística. O sistema da arte precisa se atualizar. Djs e Vjs, games, coletivos, comunidades digitais ou visuais não integram os regulamentos dos nossos salões e dos nossos programas de exposições e premiações em geral.
Com todas essas mudanças no campo da arte, observamos que a criação se adianta ao sistema de gestões culturais e públicas em nosso país. Não seria essa a hora exata de revermos as nossas ações para melhor acolher e abrigar as demandas artísticas do nosso tempo? Não se trata somente de munir os artistas de condições e ferramentas adequadas a uma nova produção de arte. Trata-se de discutirmos novas formas de fomento, de participação e de inserção, novos formatos de debate. Nesse sentido, vejamos: quais as formas vigentes de inserção para artistas recém chegados ao circuito? Quais as formas de absorção e acolhida à produção artística madura? Eu diria que, de certa forma, cabe às instituições culturais, em conjunto com o mercado de arte, pensarem maneiras de apoio, de produção teórica e de reflexão sobre a produção mais amadurecida. Exposições dignas, bons textos críticos e catálogos substanciosos seriam as formas mais imediatas - mas não as únicas - de se atender a essa urgência.
Quanto à produção emergente, sabemos que os programas de exposições, as temporadas de projetos e os salões de arte são as formas mais recorrentes de atendimento a essa demanda. Mas elas precisam de revisão e adequação aos novos formatos da arte. Os salões são os espaços mais concorridos entre artistas que desejam se apresentar ou permanecer no circuito de arte. Não somente porque são uma maneira de dar visibilidade ao artista, mas também porque possibilitam (ainda que raras) algumas viagens, encontros e intercâmbios. Dessa forma os salões, cujos formatos e regulamentos ainda são pautados em sua forma de concepção inicial - que remonta ao Séc XVIII - tem uma importância relevante para a difusão e a circulação de obras recentes entre nós. Reconhecendo essa prática como fundamental, então porquê não alteramos seus regulamentos, porquê não os adequamos às práticas atuais, às ferramentas do nosso tempo; porquê, afinal, essa discussão não cresce em nosso meio?
Essas são perguntas relativamente fáceis de responder, aparentemente...na verdade, essas readequações exigem subsídios e vontade política. Os primeiros exercícios já vêm sendo realizados pela Bolsa da Pampulha em Belo Horizonte e pelo Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, agora em sua segunda edição. O Prêmio Sergio Motta de arte e tecnologia - já em sua 5ª edição - atualiza o seu regulamento constantemente em interlocução direta com o meio artístico. Bolsas estímulo são oferecidas e seguidas de interlocução entre artistas e críticos, propiciando a riqueza do diálogo, da reflexão, incidindo diretamente sobre os resultados das obras. Se, de um lado, essas novas práticas tem sido um exemplo feliz, de outro lado percebe-se ainda um alto grau de resistência em romper com o sistema vigente dos salões para se implantar novas formas de atuação, principalmente na instância das gestões públicas. Essas práticas requeririam que se mexesse em leis, que editais fossem refeitos, que especialistas pudessem prestar consultorias, para depois se alterarem os regulamentos.
A burocracia parece ser o maior impedimento para a implantação e a consolidação de novas ações nesse campo, mas ela é apenas um dos lados dessa frágil moeda. O outro lado somos nós mesmos, o circuito. Ou, por quê não dizer, somos um curto-circuito. A falta de organização e de um debate mais consistente em nosso meio e a desarticulação entre os atores dessa cena é, sem dúvida, a mão mais pesada para a não efetivação das nossas demandas. "Da adversidade vivemos, dizia Oiticica". Mas como? E até quando?