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novembro 16, 2011

Sobre a exposição 1911-2011 Arte Brasileira e Depois, na Coleção Itaú

Sobre a exposição 1911-2011 Arte Brasileira e Depois, na Coleção Itaú

Do quadro A Pequena Aldeã, óleo sobre cartão de autoria de Lasar Segall na primeira década do século XX, à instalação imersiva e interativa [Op_Era] Haptic Interface, realizada por Rejane Cantoni e Daniela Kutschat no começo do século XXI, a exposição 1911-2011 Arte Brasileira e Depois, na Coleção Itaú apresenta 186 obras de 137 artistas que dão um panorama da evolução na produção artística no país em um recorte de um século. Com curadoria de Teixeira Coelho, crítico de arte e curador-diretor do Museu de Arte de são Paulo (Masp), a mostra abre no dia 17 de novembro, em coquetel para convidados, no Centro Cultural Paço Imperial. Permanece em cartaz para o público de 18 de novembro de 2011 a 12 de fevereiro de 2012.

Daniela Thomas e Felipe Tassara assinam a expografia, e Carlito Carvalhosa a programação visual. A organização e realização são do Núcleo Artes Visuais e Acervo do Itaú Cultural. Todas as obras fazem parte da Coleção Itaú, que começou a tomar forma no início da história do grupo há mais de 60 anos. Atualmente esse acervo contém cerca de 3.600 peças representativas de todos os movimentos da história da arte nacional. Somado às mais de 6.800 peças da Coleção Numismática, com moedas, condecorações em medalhas, e aos mais de 2 mil itens da coleção Brasiliana, totaliza mais de 12 mil peças.

“Esta mostra faz parte do esforço permanente do Grupo Itaú para que o grande público tenha acesso aos diferentes recortes de sua coleção”, observa Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural.

Da marca humana a outras mídias
Diante da tamanha diversidade contida no acervo da Coleção Itaú, Teixeira Coelho optou por criar uma série de seis módulos que funcionam como fio condutor para o visitante. Eles tanto podem ser compreendidos isoladamente, como, se seguidos de ponta a ponta, traçam com definição o caminho percorrido pela arte brasileira desde as primeiras décadas do século passado até hoje.


Começa por A Marca Humana, que, como o curador observa, traz a primeira modernidade brasileira ainda amplamente representacional. Nela, a figura humana ainda é central, como nas obras Autorretrato, de José Pancetti, Seringueiros, de Cândido Portinari, a já citada A Pequena Aldeã, de Segall, ou o óleo sobre madeira Sem Título, de Vicente Rego Monteiro, entre as obras que compõem esse módulo.

Vale destacar aqui a série de maquetes para a pintura mural Ciclo Econômico, também de Portinari, que não entrou na mostra exibida em Belo Horizonte. Trata-se de estudos feitos para este mural sobre o ciclo econômico instado no Salão de Audiências do Palácio do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro.

Em seguida o visitante entra no módulo Irrealismos. Embora a figura humana e a paisagem ainda apareçam nessa etapa da produção brasileira, o registro é de composições que remetem a si mesmas entre o sonho incontrolado e o imaginário construído. "O tom vai do poético mais lírico, como em Cícero Dias e Sandra Cinto, ao surrealismo incisivo de uma verdadeira 'peça de museu' como O Impossível, de Maria Martins, e à ordem diversamente metafísica João Câmara e Leonilson", observa o curador.

Modos de Abstração é o próximo módulo, que também apresenta esculturas. De Alfredo Volpi a Abraham Palatnik, passando por Sérgio Fingermann, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Amílcar de Castro, entre outros, mergulha nos anos 50 quando, em decorrência da I Bienal de São Paulo (1951), a arte brasileira passou a se concentrar em temas interiores, livres de uma referência imediata ao mundo exterior – transitando gradualmente do figurativismo para a abstração. Os concretos dominaram a cena, seguidos dos neoconcretos, abstracionistas informais ou expressionistas e começaram um diálogo em pé de igualdade com a arte internacional.

O mergulho seguinte é em A Contestação Pop, cujas obras trazem a arte pop que se inspira na releitura de imagens de outros meios como os quadrinhos, a fotografia de jornal, as embalagens dos produtos comerciais e objetos da cultura de massa. É o que se vê, de modo claro, em obras como Passeata de Protesto, técnica mista sobre papel de Antonio Dias; Che Guevara, acrílica sobre papel de Rubens Gerchman, ou Protetor para Identidade, serigrafia e colagens de Paulo Brusky.

Na Linha da Ideia, mais um módulo, é dividido em seis subgrupos: Arte e Anti-arte, O Juízo Jocoso, Palavra Imagem, A Arte como Arte, Pintura Pós Pintura, Não Objetos e Anti Forma. Segundo Teixeira Coelho, eles correspondem a um vasto e aberto período da arte identificado como pós-moderno, iniciado no mundo na década de 60, e no Brasil na seguinte, apesar dos traços precursores de Oiticica ou Lygia Clark.

É um período, de acordo com o curador, em que toda funcionalidade e finalidade da arte são ignoradas. "O experimental parece ser a regra e não a exceção e mesmo quando uma proposta se assemelha exteriormente a algo do passado, o gesto do artista que comanda a ação é outro", explica ele. “A arte tornou-se aquilo que Da Vinci queria que fosse: uma coisa mental, que ocorre mais na cabeça de quem a faz e vê do que no suporte físico exterior de que se serve”. Entre os artistas que assinam as 56 obras desse conjunto, estão de Julio Plaza a Tunga e Iole de Freitas, passando por Mario Ishikawa, Evandro Carlos Jardim, Amélia Toledo, Regina Silveira, Leda Catunda e Nelson Leirner.

Por fim, o grupo Outros Modos, Outras Mídias reúne obras em diversos Sobre a exposição 1911-2011 Arte Brasileira e Depois, na Coleção Itaú

suportes e com propostas distintas – desde a ação sobre o corpo à interação com a obra, permitida pelas experimentações digitais. Esse núcleo apresenta os audiovisuais Marca Registrada e Coletas, respectivamente de Letícia Parente e Brígida Baltar; a holografia O Arco-Iris no Ar Curvo, de Julio Plaza e Moysés Baumstein; “Memória” Cristaleira, vídeo-instalação de Eder Santos; Reflexão #3, software customizado, com trilha e teclado interativos de Raquel Kogan, e a instalação [Op_Era] HapticInterfac, de Rejane Cantoni e Daniela Kutschat.
Recortes da Coleção Itaú
O Itaú Cultural tem organizado diferentes exposições com recortes do acervo de obras de arte do grupo para dar acesso ao grande público em São Paulo e em outras cidades do Brasil. A primeira foi a Coleção Itaú Contemporâneo Arte no Brasil 1981-2006, exibida no próprio Itaú Cultural. Em seguida, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (Masp) apresentou Coleção Itaú Moderno Arte no Brasil 1911-1980.

No ano passado, a Coleção Brasiliana Itaú passou pela Pinacoteca do Estado, em São Paulo, pelo Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e pela Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte. Em 2011 foi vista na Universidade de Fortaleza dentro do Espaço Cultural Unifor, da Fundação Edson Queiróz e no Museu Nacional do Conjunto Cultural da República, em Brasília. Atualmente está em cartaz no Museu Oscar Niemeyer, MON, onde permanece até 29 de janeiro de 2012. Até o final desse ano, será trasladada para um espaço criado especialmente no Itaú Cultural, ao lado do Itaú Numismática, com exposição que ficará aberta ao público permanentemente.

Na mesma linha, um recorte da fotografia modernista, também na coleção Itaú, tem sido vista em itinerância por cidades brasileiras e dos países vizinhos, como Argentina e Chile. Todas elas, no conjunto, foram vistas por mais de 70 mil pessoas. O instituto trabalha, ainda, em parceira estreita com o Espaço Memória, do Itaú, que agora abrirá mais uma mostra com a coleção de peças do Egito.

Posted by Gilberto Vieira at 11:52 AM

novembro 4, 2011

Sobre a exposição de Manuel Caeiro e Pincilada

Sobre a exposição de Manuel Caeiro e Pincilada

Baró Galeria apresenta a exposição individual do português Manuel Caeiro.

De forma paralela propõe “pincelada: mostra coletiva de pintura contemporânea brasileira”: André Andrade, Bruno Baptistelli, Daniel Lannes, Eduardo Srur, Fabio Baroli, Fabiano Gonper, Felipe Barbosa, Jorge Menna Barreto, José Spaniol, Luciano Deszo, Luiz Martins, Marcone Moreira e Paulo Whitaker

Baró Galeria inaugura no dia 10 de novembro a mostra individual do artista português Manuel Caeiro, com uma seleção de pintura e escultura de suas últimas produções.

A pesquisa de Manuel Caeiro (Évora, Portugal, 1975) é produto de uma reflexão que abarca várias disciplinas artísticas. Arquitetura, desenho e pintura são confrontadas na construção do espaço, que colocam o espectador não como mero assistente, mas como usufruidor e construtor.

Em Caeiro a casa e as suas ramificações ocupam um lugar de destaque. Desde as suas primeiras pesquisas é notória a atenção que o artista confere “aos sinais do fazer e do fazer do tempo. Nos seus trabalhos mais recentes concretizados com estruturas de segurança existentes em canteiros de obras, o artista procura ampliar o seu potencial pictórico e escultórico. O objetivo é a criação de espaços pictoricamente funcionais, que aproximem o espectador, de estruturas arquitetônicas que apelem à contemplação.

Em 1999, Caeiro inicia o seu percurso ainda enquanto estudante da escola de Belas Artes de Lisboa. Desde então tem participado em diversas exposições, destacando as individuais “Reconstruction and Rebuilding”, Guimarães, Portugal (2006); “Reconstruyendo el Vacío”, Léon, Espanha (2007); e “Paredes Ocas”, Barcelona, Espanha (2008), e coletivas “Exposição/exhibition Terceira Metade”, MAM Rio de Janeiro (2011), “Surrounding Matta-Clark”, Lisboa, Portugal (2006) e “Parangolé”, fragmentos desde os anos 90 - Brasil, Portugal e Espanha. Caeiro também está presente em feiras internacionais como ARCO Madrid, VOLTA New York, SPARTE São Paulo, Arte Lisboa, e na primeira edição de ARTRIO no passado mês de setembro.

No mesmo espaço da galeria, no galpão da rua Barra Funda, serão apresentadas uma seleção de pintura brasileira contemporânea. Com o intuito de mapear as propostas mais recentes da produção artística atual a Baró vem realizando uma serie de exposições coletivas: “Arsenal” em 2010 e “20 poucos anos” e “Álbum: coletiva de fotografia contemporânea” em 2011.

Com o nome de “Mostra”, essa vez o foco é técnica pictórica, analisando as procuras que desde a abstração até o naturalismo estão surgindo na última década no panorama com obras de artistas de varias gerações: André Andrade, Bruno Baptistelli, Daniel Lannes, Eduardo Srur, Fabio Baroli, Fabiano Gonper, Felipe Barbosa, Jorge Menna Barreto, José Spaniol, Luciano Deszo, Luiz Martins, Marcone Moreira e Paulo Whitaker.

O artista Jorge Menna Barreto foi convidado a intervir na mostra propondo o título e também exibindo seu mais recente trabalho composto por um jogo de palavras que estará em exibição em um tapete de capacho ao centro da mostra: “gosto da ideia de pensar uma obra enquanto uma cilada, ou uma emboscada, que exige um desvelar. na origem da palavra cilada, há cellare, que significa ocultar. as boas obras têm um veneno, guardam um perigo. à espreita, esperam para picar ou morder. inverte-se aqui a ideia da pintura como revelação, para pensá-la enquanto velamento. com a pincelada, opera-se então um ocultamento sob camadas, muito distante da pintura histórica ou documental. a prática é repensada no mundo atual da hipertransparência e da tirania da visibilidade. vale pelo que vela, pelo que não diz, pelo que esconde sob a pincilada”.

As propostas mais formalistas vem da mão de José Spaniol e Paulo Whitaker, ambos participantes em diferentes Bienais de São Paulo, e figuras de grande presença e influencia no panorama artístico nacional. Spaniol (São Luiz Gonzaga, RG, 1960) expõe nesta mostra as pinturas que formaram parte de seu projeto para a última Bienal de São Paulo. Usando a mármore como tela, a qualidade do material se revela como uma proposta de um olhar diferente sobre os formatos clássicos da pintura, e por extensão, da intervenção artística. Whitaker (Sao Paulo, 1958), artista que representou ao Brasil na Bienal de São Paulo de 2002, mostra nesta coletiva a proposta mais objetiva e a pintura com o único intuito da pintura. Com um vocabulário de gabaritos e paleta de cor restringida as preocupações de Paulo se enquadra no discurso formal além de qualquer metáfora: a formação de planos, a relação de figuras ou a tensão entre o vazio e o cheio.

Luiz Martins, (Machacalis, MG, 1970, mora em São Paulo), expõe como primícias obra da serie que será exibida em Santa Catarina, Goiás, Rio de Janeiro e Belo Horizonte durante 2012 e 2013. Continuando sua linha de trabalho baseado em literatura, nesta ocasião Nietzsche e Saramago, para representar uma simbologia aonde o objeto e a escrita na pintura falam de arqueologia e etnologia do homem.

Felipe Barbosa, Eduardo Srur e Fabiano Gonper são ligados a uma linguagem figurativa com um olhar sobre a sociedade atual. Barbosa recolhe em suas pinturas a investigação sobre as falhas dos processos da logica nossa vida diária. Através da construção geométrica de imagens simplificadas de objetos comuns (setas, casinhas de pássaros), as pinturas de fortes cores criam novos sistemas de sinalização que transmitem a mirada lúdica do artista. Eduardo Srur (São Paulo, 1974), conhecido por seus projetos de intervenção na cidade como ‘Âncora’, no Monumento as Bandeiras; ‘Touro Bandido’, na Cow Parade; ‘Caiaques’, no rio Pinheiros; e ‘Acampamento dos Anjos’, no Hospital da Mulher, na cidade de São Paulo, desenvolve através da pintura uma faceta mais introspectiva de seu trabalho. Na serie “Celestial” retoma desde a abstração com a pincelada pastosa o tema da solidão da viagem. E Fabiano Gonper apresenta suas obras em preto e branco que através da silhueta do sujeito. Em esse uso mínimo do material o artista reflexiona sobre os poderes e atitudes que articulam as relações contemporâneas.

As mais novas propostas estão representadas por Fabio Baroli, André Andrade, Luciano Deszo Daniel Lannes e Marcone Moreira.

Nos novos óleos de Fábio Baroli, (Uberaba, MG 1981) recorta, reorganiza e une diferentes imagens extraídas de fotos pessoais, albumes de família, flirck e blogs. Em maior formato e com pincelada vibrante mostra o olhar do voyeaur no âmbito domestico aonde revela o estranhamento e a perversidade.

André Andrade (Rio de Janeiro, 1969), apresenta um trabalho baseado na recepção da imagem interferida, já seja pela luz (retratando os reflexos na agua) como pela eletricidade (com imagens captadas nas falhas de transmissão da tv).
Luciano Deszo procura o confronto com tradução material em pintura de fotografias. Essa tensão entre o artista e a técnica se traduz em perspectivas de parques de atrações que transmitem a vertigem e incerteza de sua labor.

Marcone Moreira (Pio XII, MA, 1982) reúne também em sua proposta pictórica suas raízes nordestinas. Sua serie “Acúmulos” é uma abstração do desgaste pelo passo do tempo nas superfícies dos utensílios de trabalho da economia informal desenvolvida na sua região.

Daniel Lannes, jovem artista carioca que já ocupo o foyer do MAM neste ano, propõe uma releitura dos clichés da pintura brasileira que seguia os conceitos da arte clássica europeia, em uma investigação do mistério existente na imagem da historia reconstruída.

E por fim, Bruno Baptistelli que vai além da canvas apresentando um site-specific no espaço da galeria que dialoga diretamente com o processo de construção de suas pinturas de paisagens geométricas, criando uma linha ‘invisivel’ que distancia o publico das peças exibidas.

Posted by Gilberto Vieira at 5:21 PM

Anotações Sobre a Pintura, de Alice Vinagre por Fernando Cocchiarale

Anotações Sobre a Pintura, de Alice Vinagre

Fernando Cocchiarale

Esta é a quinta versão de Anotações sobre pintura, de Alice Vinagre. As edições anteriores — expostas, respectivamente, na Paraíba, no Recife, em Alagoas e novamente, em agosto passado, na capital pernambucana —, ainda que fundadas nas mesmas questões pictóricas e orientadas por uma mesma lógica de ocupação espacial, vêm permitindo à artista produzir trabalhos não só inéditos, como também experimentalmente encadeados com seus desdobramentos processuais precedentes.

Concebida para tornar o espaço da Galeria do Centro Cultural do Banco do Nordeste (CCBNB), na cidade de Fortaleza, um ambiente pictórico imersivo, ainda que formado por dezenas de pinturas sobre cartão independentes, essa mostra radicaliza o transbordamento do trabalho de Alice do quadro (simultaneamente autônomo e modular) para o espaço expositivo, já evidente nas Anotações que a precederam, sobretudo a última, realizada no Santander Cultural – Recife. Essas duas versões, mais do que as anteriores, deslocam-nos da contemplação estética estrita para a experimentação sensório-poético-pictórica. Se a primeira exige a clara demarcação de campos de observação — por exemplo, o quadro —, a segunda suscita um lugar ambientado para a experiência poética.

Diferenças à parte, todas as versões desta série possuem características comuns: as centenas de trabalhos sobre cartão produzidos pela artista a partir de 2008 possuem um mesmo e único formato (120 x 115 cm). Neles, o tratamento é monocromático, de predomínio ora azul, ora vermelho. Característica que favorece não só sua montagem modular, como também, por meio dela, a criação de ambientes pictóricos sempre renovados, graças à necessária reedição sequencial das pinturas em função do espaço expositivo.
A tensão entre obra única (cada cartão) e sua montagem modular (permitida pelas mesmas dimensões de seus formatos e pela monocromia) é, portanto, parte fundamental do cerne poético dessas Anotações. Ela introduz na montagem uma tensão maior, de teor histórico: à época da revolução industrial, processos de produção artesanais e métodos de construção mecanizados eram tidos como incompatíveis.

Há que se considerar, no entanto, que todo o processo de produção de Alice é manual, da pintura dos cartões à sua disposição no espaço, e que essa tensão só aparece no trabalho por meio de uma operação poética: seus cartões distinguem-se uns dos outros graças aos impulsos específicos que os singularizam e qualificam como obras, e a modulação concede às partes que a formam uma função modular restrita apenas à sua formatação e à monocromia.

Feitas pela mão e por algumas outras decisões correlatas da artista – como a atribuição de dimensões iguais para todos os cartões, o predomínio evidente de uma cor e a montagem/edição das pinturas sobre cartão no próprio espaço expositivo –, as Anotações resultam em trabalhos ambientais únicos, que, no entanto, preservam a potência própria e autônoma das pinturas que os constroem. Cada versão é, se tomada em seu conjunto, uma pintura significativamente provisória formada por dezenas de quadros singulares e perenes. Nesse sentido, uma possível associação com a azulejaria ou com o papel de parede deve ser descartada. Nestes, a repetição regular da padronagem é quase uma exigência; aqui, ao contrário, a busca é inversa: formar um conjunto a partir da diversidade.

Há nestas montagens um transbordamento que nos remete a um dos momentos conclusivos da história recente da pintura – história que, em um sentido estritamente operacional, começa na protorrenascença e se expande, conseguindo contornar as recorrentes declarações de sua morte, iniciadas no século XIX e que perduram até nossos dias.

Se, ao afirmar o teor bidimensional objetivo da tela, a pintura moderna colocou em crise a construção perspectivada e pictórico-ilusionista (pintura a óleo), seus desdobramentos (a partir dos primórdios da produção contemporânea, na passagem da década de 1950 para a de 1960) passaram pela crítica ao quadro, explícita nos trabalhos de alguns artistas.

Os quadrados negros sobre fundo branco suprematistas (c. 1913) de Kasimir Malevitch já anunciavam o fim da representação e o começo da era da pura sensibilidade na arte. Seu teor monocromático significava, para o artista, a sensibilidade da ausência do objeto (representado), que favoreceu a emergência de uma nova consciência a respeito do sentido da pintura: em lugar do ilusionismo, o teor objetual do quadro.

Décadas mais tarde, nos anos 1950, as telas cortadas de Lucio Fontana, as Combine paintings de Robert Rauschenberg (produzidas com tinta e objetos apropriados pelo artista) e as pinturas azuis e o Vide (mostrado em 1958 na Galeria Iris Clert, em Paris, vazia e pintada de branco) de Yves Klein, entre outros, marcam o avanço da crítica ao quadro como suporte único da pintura.

Nessa mesma época, surge no Brasil a proposta de uma pintura depois do quadro, elaborada por Hélio Oiticica em seus escritos e obras. Para levá-la adiante, ele precisou buscar alternativas para esse suporte convencional de modo a permitir a expansão do campo pictórico para o espaço real. Essa operação poética, no entanto, precisa assumir uma definição clara do que é a pintura, já que sua existência deve ser preservada com o abandono do quadro. Caso contrário, a proposta em questão não se sustentaria. Oiticica não titubeia na resposta:

A experiência da cor, elemento exclusivo da pintura, tornou-se para mim o eixo mesmo do que faço, a maneira pe­la qual inicio uma obra. [...] A cor é uma das dimensões da obra. É inseparável do fenômeno to­tal, da estrutura, do espaço e do tempo, mas como esses três é um elemento distinto, dialético, uma das dimensões. Por­tanto possui um desenvolvimento próprio, elementar, pois é o núcleo mesmo da pintura, sua razão de ser. Quando, porém, a cor não está mais submetida ao retângulo, nem a qualquer representação sobre este retângulo, ela tende a se “corporificar”; torna-se temporal, cria sua própria estrutu­ra, que a obra passa então a ser o “corpo da cor”.[OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. 5 out. 1960. p. 23.]

Se a cor é mesmo um elemento exclusivo da pintura (e isso importa menos do que o triunfo dessa ideia na obra do próprio Hélio), então é lógico supor sua existência em outros campos espaciais que não o do quadro, argumento que assegura a proposta de uma pintura expandida para além do quadro praticada por Oiticica, abrindo um novo campo de possibilidades para o artista brasileiro.

Ao investigar novas possibilidades de uma pintura expandida, Alice Vinagre movimenta-se, ainda que não deliberadamente, nesse campo aberto ainda no modernismo, mas que só se consolidou na contemporaneidade. Isso não quer dizer que sua pintura seja herdeira do construtivismo brasileiro – seus cartões transbordam a formalização estrita graças à evocação icônica que esses trabalhos não cessam de promover. A aproximação dessas Anotações com a herança histórica citada se torna, entretanto, inevitável quando se trata da criação de ambientes pictóricos.

Na versão atual de Anotações sobre pintura, os cartões escolhidos por Alice para impregnar cromaticamente o espaço podem ser visualmente separados em dois conjuntos: um predominantemente vermelho, pintado em 2008 e retrabalhado agora para a mostra de Fortaleza; outro formado por cartões azuis, produzidos em 2011 (teias e redes que fizeram parte da edição das Anotações no Santander, tecidas a pincel com uma paciência feminina que evoca Penélope).

A montagem na Galeria do CCBNB assume a distinção cromática entre esses dois conjuntos de cartões, dispondo-os separadamente para criar um espaço único: um cubo central recoberto inteiramente com cartões azuis é o foco cromático principal da instalação, já que uma, duas ou três de suas cinco faces (a face voltada para o piso não pode ser vista) são passíveis de serem vistas, dependendo da localização do observador. Complementando o ambiente pictórico, uma das paredes da sala que contém o cubo de tramas azuis sustenta a virtual projeção de uma de suas faces, sugerida pela modulação de cartões vermelhos.

Essas faces permitem a expansão da trama em rede de cada pintura para o conjunto em que se integram. São configurações gráficas de redes que podem ser referidas aos atravessamentos descontínuos das tramas de um cartão para as tramas dos outros. Podem ser também tomadas como atravessamentos de categorias e práticas estanques — desenho, pintura e escultura — voltadas para a preservação dos ofícios num mundo em rede, no qual, inversamente, eles estão ameaçados.

Posted by Gilberto Vieira at 4:52 PM