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dezembro 10, 2009
Parceria com a Escola de Comunicação e Artes da USP leva exposição dos formandos de Artes Plásticas ao Paço das Artes
Além dos trabalhos de 22 formandos em Artes Plásticas da ECA/USP, Justapostos traz programação mesa redonda, depoimentos de artistas e apresentações de trabalhos de conclusão de curso, estreitando a parceria entre o Paço das Artes e a USP e ampliando as ações desenvolvidas nos anos anteriores
Com abertura em 14 de dezembro de 2009, a partir das 19h, e visitação de 15 de dezembro de 2009 a 10 de janeiro de 2010, Justapostos exibe no Paço das Artes trabalhos de conclusão de curso realizados pelos formandos do Departamento de Artes Plásticas (CAP) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade do Estado de São Paulo (USP), nas habilitações escultura, pintura, gravura, multimídia e intermídia, e licenciatura. Traz, também, discussões sobre o ensino e a formação em Artes Plásticas.
O projeto teve início antes mesmo da abertura da exposição: desde outubro foram realizados encontros com os professores do Departamento de Artes Plásticas e, no dia 01 de dezembro, às 19h, ocorreu uma mesa redonda com Milton Sogabe, Rafael Campos Rocha e Ricardo Basbaum. No dia 19 de dezembro, às 14h, ocorrem depoimentos de cinco artistas formados pelo CAP/ECA/USP, que falam sobre suas experiências profissionais. De 15 a 22 de dezembro, serão abertas ao público as apresentações dos trabalhos de conclusão de curso. Em 10 de janeiro de 2010, ocorre festa de encerramento do projeto Justapostos.
O público poderá ver em Justapostos o resultado de anos de aprendizado dos alunos de Artes Plásticas da USP. As obras, realizadas com materiais e em suportes diversos, são de autoria de Adriana Castilho Bento, Adriana Siqueira, Affonso Prado, Aline Antunes, Anderson Rei, Bernardo Glogowski, Breno Ferreira, Bruno Makia, Camila Spessoto, Camila Torrano, Giovanni Baraglia, Leilyanne F. M. da Silva, Ludmila Kaehler, Renato Pera, Maíra Vaz Valente, Marília B. Saft, Maura Grimaldi, Pedro Falcão, Renzo Assano, Theo Craveiro, Thiago Augusto M. S. e Tamara Andrade.
Com a intenção de propor uma discussão artístico-cultural mais ampla, a mesa redonda A formação do artista no contexto da universidade pública, com Milton Sogabe, Rafael Campos Rocha e Ricardo Basbaum, discutiu a contribuição da universidade para a prática do artista e o que está englobado na formação em Artes.
Os depoimentos dos artistas Ana Luiza Dias Batista, Eurico Lopes, Fátima Junqueira, Priscila Okino e Priscilla Ballarin, formados pelo CAP/ECA/USP, trazem suas experiências profissionais na arte e em áreas interligadas. As apresentações dos trabalhos de conclusão de curso pelos formandos reforçam o conteúdo reflexivo de Justapostos ao mostrar os conceitos envolvidos na realização das obras expostas e confrontar com o posicionamento dos professores-orientadores.
Justapostos indica uma ampliação da parceria com a ECA/USP e caminha em direção a um diálogo maior entre a universidade e o Paço das Artes, como demonstram a mesa redonda com convidados e os encontros com os professores do Departamento de Artes Plásticas que já foram realizados. Com isso, o Paço das Artes, que completará 40 anos em 2010, reforça sua missão de estimular a exibição e a reflexão sobre o que é feito e pensado no campo da arte contemporânea, construindo parâmetros de análise do seu intrincado sistema que extrapola cada vez mais os limites determinados pelas disciplinas clássicas da História da Arte e da Crítica de Arte.
O projeto tem como realizadores o Departamento de Artes Plásticas (CAP) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Paço das Artes e o Governo do Estado de São Paulo. Conta com patrocínio da Pró-Reitoria de Graduação da USP e Pró-Reitoria de Extensão Universitária da USP. A coordenação ficou a cargo da Profa. Dra. Monica Tavares do CAP/ECA/USP.
Em conjunto com a abertura da exposição, haverá lançamento do catálogo da exposição Grau Zero, que esteve em cartaz no Paço das Artes de 14 de julho a 13 de setembro de 2009 e apresentou obras em diversos suportes de artistas brasileiros e estrangeiros que se debruçavam sobre imagens e ícones da indústria de consumo selecionadas pelos curadores Priscila Arantes e Fernando Oliva.
Trilhas do Desejo com as obras dos selecionados no Rumos Artes Visuais
Flechas em grandes dimensões invertem sua função; uma batalha naval gigante convida a jogar; intervenções em fotos subvertem as formas; pinturas ganham novas matérias primas; imagens em vídeo distorcem paisagens. São 72 trabalhos realizados pelos contemplados no Rumos Artes Visuais 2008-2009; entre eles, seis do Rio de Janeiro, que fecham a itinerância da mostra exibidos, na integra, no Paço.
No dia 15 de dezembro, o Itaú Cultural abre Rumos Artes Visuais – Trilhas do Desejo no Paço Imperial, centro cultural do Iphan, no Rio de Janeiro. A mostra permanece em cartaz para o público do dia seguinte a 28 de fevereiro de 2010. Organizada por Paulo Sérgio Duarte, coordenador geral da comissão curatorial, ela exibe o resultado da edição 2008-2009 deste programa, cujo objetivo é garimpar, mapear, diagnosticar e fomentar o melhor da produção contemporânea em todo o Brasil. Na ocasião da abertura serão lançados também o livro Trilhas do Desejo – A arte Visual Brasileira, em parceria com a editora SENAC/São Paulo, e o DVD Trilhas do Desejo, uma produção do próprio instituto.
Entre pinturas, fotografias, esculturas, instalações, vídeos, performances, e videoinstalações, as obras realizadas pelos 45 contemplados nesta quarta edição do Rumos representam 11 estados e abrangem todas as regiões do Brasil: seis são do Rio de Janeiro, duas do Ceará, uma do Distrito Federal, uma de Goiás, três de Minas, cinco do Pará, duas do Paraná, três de Pernambuco, quatro do Rio Grande do Sul, duas de Santa Catarina e 16 de São Paulo. Para o curador, o resultado traduz a vitalidade da arte contemporânea brasileira, eminentemente urbana.
“Quando o mundo rural aparece nestas obras, o que é raro, é tratado por linguagens urbanas e as preocupações estão mais voltadas por uma perspectiva influenciada pela ecologia e as questões ambientais”, observa Paulo Sergio Duarte. Ele também detecta um esvaziamento na abordagem de temas sociais: “Quando presentes, com freqüência estão ligados à existência mais imediata e individual, outro traço comum à arte contemporânea nessa época globalizada, já um capítulo na história que vem sendo designado como ‘arte & vida’.”
Do Rio de Janeiro vêm as pinturas de Jaqueline Vojta: Noite Sutil; Número 1 de Novo, e Até que o Céu Caia Sobre Mim. São colagens de tecidos pintados pela artista com relevos sutis e cores escuras – obras que pedem tempo para serem entendidas. A série de pinturas – Paisagem, Paisagem 1 e Paisagem 2 –, do também carioca Álvaro Seixas, desafiam o espectador com espessas camadas de tinta, que recobrem e escorrem da superfície das obras e revelam construções geométricas parecidas com formas arquitetônicas.
Em Contra-muro, videoinstalação da carioca Ana Holck, três filmes são projetados em uma sala, de modo que cada um ocupe toda uma parede e apresente a construção de um mesmo muro de tijolos de concreto em diferentes etapas do processo. À medida que este espaço murado vai sendo erguido de um lado, vai sendo destruído do outro. Ainda do Rio, Amália Giacomini provoca o visitante com Entre, uma série de setas gigantes. Colocadas em sentido contrário do percurso a ser seguido pelo público, elas criam um curto circuito entre a atração espacial e a repulsão simbólica do espaço da arte.
O capixaba Rafael Alonso apresenta Desktop; Linhas em uma Mesma Direção Justapostas; e Objeto Autodestrutível. Trabalhando com aquilo que parece, mas não é, estas obras são entendidas à primeira vista como pinturas, porém, elas foram executadas com milhares de elásticos de escritório coloridos e com durex, ao invés de pincel e tinta.
Fechando a lista dos artistas do Rio, o coletivo Gráfica Utópica + O Circo dos Sonhos, apresenta o vídeo O Circo dos Sonhos, no qual instaura um estado de suspensão diante da realidade com o uso de recursos de luz e elementos apropriados de diferentes práticas espirituais.
Pinturas, Esculturas, Fotos e Instalações
Duas das obras que dão uma pista da reflexão urbana encontrada no conjunto da mostra são Série Rua do Futuro, do pernambucano Kilian Glassner, e Galeria Boliche, do mineiro Tiago de Carvalho. Na primeira, Glassner apresenta fotografias que são parte de um projeto pessoal de prospecção urbana, no qual inicia o trabalho escolhendo um imóvel abandonado. O artista o ocupa, realiza nele intervenções com pintura, para depois destruí-las parcialmente a golpes de marreta e fotografá-las.
A obra de Carvalho tem como base um trabalho anterior realizado pelo artista em visitas feitas às casas de moradores em Caladinho, bairro de sua cidade natal, Coronel Fabriciano. As histórias que ele foi capturando informalmente e de modo intimista mapeiam poeticamente o cotidiano dessas pessoas para serem expostas na “Galeria Boliche”, espaço criado temporariamente por ele para abrigá-las e posteriormente fotografado. A obra é apresentada nesta exposição em fotos e catálogo.
Entre as demais obras, dois óleos sobre tela (sem título) do curitibano Felipe Scandelari brincam com o olhar do espectador. De longe, a imagem que se vê em uma delas forma borboletas, na outra, se vislumbram copos. Elas são perfeitamente visíveis, mas quando o observador se aproxima, o conjunto é desfocado.
Grafite sobre papel vegetal é a matéria prima do gaúcho Gabriel Netto, em Desenho Instalado nº 2. Esta obra ocupa sete metros do piso e migrando para as paredes, onde é copiada e colada por fitas adesivas.
Alegre e colorido, o trabalho do paulistano Nino Cais, sem título, apresenta finas colunas que, do nada, parecem empurrar capitéis de cores diferentes para o teto. Em mais uma provocação à gravidade, e também ao tempo, o gaúcho Ernani Chaves traz as esculturas em madeira, Topos de Goiabeira Escorados e Caixilhos Empilhados. Com ambas, ele faz torres sem sustentação. Vê-se que elas cairão, mas, na ótica do artista, as obras perduram na disposição desordenada das peças após a queda da estrutura.
A xilogravura sobre papel do santista Fabrício Lopes, Rema, Rema, Remador, é feita de várias matrizes coladas sobre a parede e de cuja colagem surge a obra, ao mesmo tempo única e múltipla. O paulistano Diego Belda traz uma mescla de escultura com pintura, em Sinuca de Bico e em Sinuca: Bola Seis atrás da Cinco. A sua conterrânea Alice Shintani faz uma intervenção também pictórica, cor-de-rosa: Quimera, onde tudo é tomado pela cor em uma demonstração do território expandido da pintura.
Em um ímpeto lúdico, o também paulistano Laerte Ramos faz uma versão gigante em três dimensões da Batalha Naval, na obra que leva o mesmo nome. A instalação de cerâmica traz o quadriculado no chão e os destróieres, cruzadores e submarinos são transformados em esculturas que permitem ao público travar uma competição. Luciano Zanette, nascido em Esteio (RS) também brinca com as referências do observador. Com Vale Ter Ser Tesa e com Hábitos Insuficientes (ambas da série Mobiliário Melancólico), ele apresenta duas mesas às quais nada falta, mas que não podem nunca cumprir a função à qual estão destinadas. Uma escorrega para o chão, a outra se contorce para dentro.
De São José do Rio Preto, interior de São Paulo, Marcelo Moscheta traz a singela instalação Estudo para Espaço. Composta de caixas transparentes de bombons Ferrero Rocher, que abrigam flocos de algodão iluminados por uma base com luz vinda de baixo, esta obra traz leveza e transparência evidenciando a busca do artista pela captura do tempo e do espaço.
Trabalho antropológico de autoria da brasiliense Bárbara Wagner, a Série Zona da Mata é composta de 10 fotografias em cores. Cinco delas mostram a geração de mestres do maracatu com mais de 50 anos; a outra metade mostra os da nova geração. Em vez de mostrar a permanência de uma tradição, a artista – também autora da série de fotografias Brasília Teimosa, realizada em 2005 na favela de Recife que leva este nome -- revela as adaptações destes mestres e suas transformações numa sociedade dinâmica.
A Sala dos Procurados, obra do paraense Alan Campos, transita igualmente pelo registro etnoantropológico ao apresentar imagens, que representam minorias da região amazônica, predominantemente indígenas. Elas preenchem totalmente uma sala, do chão ao teto. O artista reflete sobre o ocultamento e a desconfiguração das tensões étnicas, onde a violência tácita e o esmagamento da diversidade fazem parte do cotidiano amazônico e do Brasil.
Já o curitibano C. L. Salvaro trata da reconfiguração do espaço com as obras Cal e Carvão; e Isolamento – obra constituída de isopor, com a qual ele interrompe uma passagem que seria natural para o público transitar pelo espaço expositivo. À frente dele, em tamanho diminuto, encontra-se Cal e Carvão.
Bom humor e crítica são as marcas da Série Eclipses (Ocupações). Nestas fotografias feitas entre os prédios da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, Yana Tamayo – nascida naquela cidade – articula objetos plásticos de uso cotidiano em primeiro plano e altera a escala de modo a provocar a um efeito ilusório que distorce o ponto de vista.
Ricardo Mello, nascido em Santiago (RS) traz imersão noturna #047 (360 horas) e imersão noturna #053 (424 horas). Nesta série de pinturas, ele se debruça sobre imagens estáticas fotografadas ou projetadas da tela da televisão, e estabelece um processo de pintura minucioso e demorado para representar suas linhas e distorções. Trata-se de uma contraposição do tempo do fluxo veloz e contínuo da televisão ao tempo demorado e lento da pintura.
O paraense Flávio Araújo apresenta três obras com representação pictórica: Aparelho Singular: Cama I, Aparelho Singular: Cama II e Aparelho Singular: Cama III. Com a pintura, ele potencializa o efeito das imagens veiculadas nos meios de comunicação de massa e as contrapõe a este discurso que banaliza a morte e empobrece a vida.
Em três óleos sobre tela sem título, o paulistano Rafael Carneiro trabalha a pintura deslocando o foco tradicional para um ponto de vista panorâmico e de cima. As imagens que ele registra são as captadas por câmeras de vigilância em galpões industriais e laboratórios. Os olhos do espectador assumem o olhar da máquina.
A obra de Ilma Guideroli, de Ribeirão Preto – Espaços Afluentes e Lugares Imaginários – questiona o espaço geográfico. Nestes dois trabalhos, ela mescla ao acaso mapas de viagem e plantas baixas de casas e cria um terceiro elemento, híbrido e inesperado, que remete a espaços indeterminados.
A instalação e site specific Memorabilia, da paulistana Amanda Mei, é mais uma obra que trabalha com a memória. A artista organiza o ambiente de um espaço de cerca de 16m2 com fragmentos, objetos, móveis e sobras que coleta em trajetos realizados pela cidade. A isso, ela mistura imagens projetadas, e também uma espécie de diário stop motion de desenhos narrados a partir de escritos em seu caderno de anotações.
Felipe Cohen, de São Paulo, contrapõe peso e leveza, luz e sombra, nas obras Série Meio-dia e Regaço (2006). Paulistana residente em Florianópolis, Júlia Amaral, traz Sapo, Aranha, Lacraia, Besouro e Pássaro. Nestas cinco pequenas esculturas, a artista investiga noções de perda, morte, peso, leveza e, metaforicamente, a idéia de transcendência.
De Ribeirão Preto, Sofia Borges, apresenta uma série de quatro fotografias em cores. A luz barroca as representa como pinturas do século XVI ou XVII, e as naturezas mortas, mas as imagens são contemporâneas, confundindo as referências do observador.
De outra ponta do Brasil, Elieni Tenório, nascida em Mazagão, no Amapá, traz Série Sobre a Pele, quatro obras que unem a artesania da costura e a pesquisa de materiais para remeter às discussões contemporâneas sobre corporalidade e a vestimenta como referências que estabelecem as relações entre o sujeito e o mundo.
Retrato Paisagem é uma série de fotografias em cores do cearense Vitor César, nas quais ele é personagem principal, embora escondido por diferentes toldos dos ombros para cima, tornando-se uma figura anônima. A paulistana Laila Terra ingressa em outro território com a instalação Caixa de Som. Trata-se de um espaço tridimensional, formado de 80 altofalantes instalados nos cinco planos para emanar música de modo que o ouvinte, ao vesti-lo como se fosse um capacete, tenha uma percepção espacial do som. Ao amplificar sons sintéticos diversos que simulam deslocamentos ao redor da cabeça do ouvinte, proporciona uma estranha experiência visual e sonora.
O questionamento de A Saudade e de Cada Mudança é um Esforço de Permanência, de Tiago Romagnani, nascido em Florianópolis, trata dos ciclos que se repetem indefinidamente na natureza, mesmo que urbanizada. No primeiro uma estrutura de madeira deixa cair água constantemente. O segundo é composto por vasos de plantas e um vídeo.
Vídeos, Performances e Videoinstalações
É bem poético o vídeo Cercania, realizado pela paulistana Carlota Mazon. A obra também brinca com o olhar do visitante. Começa com a silenciosa exibição de um fim de tarde sobre a qual a artista passa a interferir lentamente com uma fita metálica transformando a imagem inicialmente percebida.
Dois vídeos acompanham a escultura do mineiro Daniel Herthel, também no térreo. Na obra Desenhos Funcionais#2 o arame risca o espaço e produz um estranho croqui do interior de um ônibus. Em Casa de Máquinas, um dos vídeos, um aparelho projetado pelo artista faz uma bailarina dançar. No outro, com o mesmo nome, ele mostra a construção da máquina. Já no vídeo Efêmera Paisagem o paraense Alberto Bitar remete à memória e à saudade, ao refazer, hoje, o caminho que percorria com a família com destino a Mosqueiro, ilha a 70 km de Belém, sua terra natal, quando ele era criança.
A paulistana Marina de Botas apresenta a performance Pretinho Básico – a ser realizada a partir das 19h, somente no dia da abertura – acompanhada das obras Manual Técnico para a Alteração do Pensamento Lógico e Revista Pretinho Básico. A artista usa um vestido preto de veludo que se prolonga ocupando todo o espaço da sala. Para ver as outras duas obras expostas, o público é obrigado a passar por cima do tecido, como se fosse um tapete.
Já Revista Pretinho Básico é composta de um par de desenhos que o público poderá levar para casa, no qual a figura de uma mulher deve ser vestida com a mesma roupa usada pela artista. O Manual..., por sua vez, traz um passo-a-passo descrito por delicados desenhos, subvertendo os dos manuais originais, de como transformar procedimentos cotidianos em resultados mágicos; como o mito de Ícaro.
Letícia Ramos, nascida em Santo Antônio da Patrulha (RS), apresenta Cronópios, videoinstalação em looping. É o registro de imagens capturadas pela artista, durante um dia inteiro, no Largo de Pinheiros, em São Paulo. Sobrepostas, elas propõem outros ângulos e registros diferentes da realidade.
Em Mar-Marau, o mineiro Ariel Ferreira, de Montes Claros, exibe uma vídeoinstalação acompanhada de uma cadeira para o observador se sentar, um aparelho de vídeo-cassete, um televisor e um par de xícaras amarradas por cordões de algodão presas juntos ao vídeo, mas dissociadas do restante dos equipamentos. Deste modo, a obra desloca o observador de um ambiente urbano apresentado na TV, a uma paisagem ficcional.
Estados Temporários vem do Rio Grande do Sul e é uma performance misturada ao vídeo assinada pelo Coletivo Mergulho. Nela, os artistas realizam quatro ações em lugares públicos registradas em vídeo, primeiro individualmente, e, depois, em coletivo. A performance é finalizada com uma instalação deste processo no espaço expositivo. Criam-se, assim, situações em que se vivencia a simultaneidade de ações e cuja experiência é renovada, por fim, junto ao espectador.
O grupo Empreza, coletivo de Goiás, apresenta Itauçu (pedra-grande). São seis performances a serem realizadas simultaneamente no mesmo espaço, a partir das 19h30, por duas horas, no dia da abertura. O público (maiores de 18 anos) é recebido em uma sala de aproximadamente 100m2 por 3m de altura recheado por uma coluna, um pilha de seixos, uma placa de granito, tijolos, televisores, caixa de som, projetor multimídia. Enquanto são servidos queijos de trança e cachaça de engenho, surge uma série de situações inusitadas promovidas pelo grupo. As performances deixarão resíduos no local, que ficarão expostos durante toda a mostra.
O paraense Dirceu Maués apresenta o vídeo...feito poeira ao vento..., realizado a partir da edição de uma sequência de 991 fotografias captadas por câmeras artesanais do tipo pinhole em uma única ação de um giro de 360°. A obra registra o universo da feira de Ver-o-peso, de Belém, sua agitação, a movimentação dos feirantes, o ciclo do tempo e das marés, em imagens fluidas e enevoadas.
A videoinstalação da pernambucana Juliana Notari, Redentorno projeta nas quatro paredes de uma sala imagens simultâneas de um cachorro de brinquedo preso a um mastro, girando incessantemente até que se desprende. Graças a um aparato tecnológico criado pela artista, as imagens permitem que o observador capture o ponto de vista do animal aprisionado.
No dia da abertura, a partir das 20h, o paulistano Shima apresenta uma das três performances e uma instalação – Colapso, Zona de Conforto/Zona de Confronto, Leito e Contenção. Sempre vestido “a caráter” (“terno, gravata, relógio e aliança”, em suas palavras), o artista usa fitas de isolamento para reconfigurar o espaço. Em uma, isola dois pilares. Em outra, confecciona uma rede onde permanece deitado por meia hora. Em Contenção, embrulha bancos, cadeiras e mesas que, isolados, continuam disponíveis para uso normal. Já em Colapso, ele próprio se enrola com a fita, e feito um casulo, permanece imóvel por uma hora.
dezembro 9, 2009
Rumos Artes Visuais 2008 / 2009 – Trilhas do Desejo por Paulo Sérgio Duarte
Rumos Artes Visuais 2008 / 2009 – Trilhas do Desejo
Por Paulo Sergio Duarte
O programa na edição 2008 / 2009
Trata-se de um programa de prospecção da arte brasileira contemporânea sem privilegiar locais ou linguagens e focalizado naqueles artistas que ainda não emergiram e se afirmaram. O norte orientador das escolhas finais é o da busca da excelência, da investigação pelo trabalho exemplar. É também um projeto de debate de idéias e formação por meio de palestras, cursos, oficinas (workshops) e contribuições para acervos de bibliotecas, portanto tem um forte viés educativo. No momento em que visitamos uma exposição ou temos à mão o catálogo do programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais estamos diante de momentos privilegiados, mas apenas momentos, de um longo e complexo processo de trabalho. Complexidade exigida pela consciência do próprio caráter da cultura brasileira extremamente diversificada sobre um imenso território.
Essa 4ª edição do programa é privilegiada pela experiência acumulada pelo Instituto Itaú Cultural nas edições anteriores. Persistência e permanência são palavras chaves desse trabalho numa época muito dada ao furor reformista, à avidez de mudanças, à velocidade para ir do nada a lugar nenhum, na qual continuidade e permanência são características raras. Isto não significa absolutamente a cristalização de métodos e a conseqüente estagnação. O Rumos é submetido a sucessivas correções de rumo no sentido de aperfeiçoar o processo de trabalho.
Reflete esse desenvolvimento do programa a própria composição da equipe de colaboradores. Nessa edição – além do curador / coordenador geral – foi composta por quatro curadores de diferentes regiões do país: Alexandre Sequeira, de Belém; Marília Panitz, de Brasília; Christine Melo, de São Paulo; e Paulo Reis, de Curitiba. Cada um dos curadores foi responsável pela supervisão do trabalho de uma região diferente da sua. Oito assistentes de curadoria ficaram com a tarefa de difusão e prospecção em suas respectivas regiões: Armando Queiroz, de Belém, com a Região Norte; Bitu Cassundé, de Fortaleza, com Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba; Clarissa Diniz, de Recife, com Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia; Janaína Melo, de Belo Horizonte, com Minas Gerais e Espírito Santo; Guilherme Bueno, do Rio de Janeiro, com Rio de Janeiro; Marcio Harum, de São Paulo, com São Paulo; Gabriela Mota, de Porto Alegre, com Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; last but not least Veronica Moreira Neto, de Brasília, com o Centro-Oeste. Acrescente-se, ainda, Guy Amado que coordenou todas as mesas redondas de apresentação do projeto – o único membro da equipe a percorrer de norte a sul, de leste a oeste, toda a atividade de difusão do programa em 2008.
A esses colaboradores se soma a estreita e rica colaboração da equipe interna do Itaú Cultural que me surpreendeu não apenas pela elevada competência técnica e discernimento como por manifestar um humor que favorece um ótimo clima de trabalho. Ao longo de décadas de experiência nesse campo raramente encontrei reunido numa mesma instituição um espírito profissional e harmonioso como este. Um termômetro da importância deste programa é dado pelo número de inscrições: 1617 artistas e coletivos inscritos em 2008. O longo e nada fácil processo de seleção durou várias jornadas de trabalho em duas etapas. Na primeira fase, envolvendo toda a equipe de curadores e assistentes, foram selecionados cerca de 300 dossiês. Na segunda etapa, com a participação somente dos curadores, chegou-se ao número final de 45 artistas e coletivos.
A importância estratégica dos programas de artes visuais no contexto cultural brasileiro
A sociedade em geral e os estratos do poder público e privado em particular não se dão conta da importância estratégica dos programas de artes visuais na construção de uma nação com as dimensões e a complexidade do Brasil. Querem um exemplo? Passados quase cinqüenta anos da inauguração da nova capital do país, treze presidentes da república entre democratas e ditadores, onde se encontra seu museu de arte? Em lugar ermo, agora povoado por um conjunto hoteleiro de arquitetura pífia, no prédio que sediou o antigo Clube das Forças Armadas na época da construção da cidade. E não me venham com essa de que a música é a marca de nossa identidade e que a arte não ocupa o mesmo lugar no imaginário popular. Poucas músicas de origem popular influenciaram mais o universo sonoro do século 20 que o blues, o jazz e o rock, e nem por isso os americanos deixaram de investir na formação do olhar de seus cidadãos com a constituição de poderosas coleções de arte sediadas em museus de dezenas de cidades.
Não falemos de Washington, Nova York, Filadélfia ou Chicago. Visite-se o Museu de Arte de Cleveland, uma cidade com menos de 500.000 habitantes, no centro de uma região metropolitana com a população de cerca de 2.250.000 pessoas. Com seu acervo, um professor pode ensinar a história da arte dos etruscos ao contemporâneo Kiefer. Apesar de Hollywood, da Broadway, das grandes redes de televisão, das milionárias estrelas pop, os americanos não confundem arte com entertainment, show business e indústria cultural. Ao contrário, ganham muito dinheiro com essa indústria e investem em arte.
Aqui, dirigentes de museus de arte passam anos negociando com autoridades pela conquista de espaços que permitam melhor equipar suas instituições e apresentar suas coleções. Colecionadores generosos assistem à precariedade com que são acolhidas e guardadas suas obras quando cedidas em comodato em instituições públicas. É hora de reverter esse quadro em políticas públicas permanentes e suprapartidárias.
O programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais, um exemplo bem sucedido de parceria entre o público e o privado, se inscreve dentro do que deve vir a se constituir numa estratégia maior de nossas políticas públicas de reversão do estatuto da arte no campo da cultura brasileira. Não somente deve receber apoio como deve ser complementado, por políticas específicas que fortaleçam as infra-estruturas dos museus existentes, a formação e remuneração de profissionais com salários dignos e, acima de tudo, programas de apoio ao artista com bolsas de trabalho e políticas de aquisição de obras de arte para a constituição de acervos locais e nacionais.
Desde os anos 50 do século passado, a arte brasileira vem dando evidentes aportes à história da arte. O reconhecimento internacional das contribuições de diversos artistas e movimentos se faz sentir não somente na bibliografia estrangeira como em exposições e significativas aquisições. Agora mesmo, no momento em que se realizam as exposições do Rumos 2008 / 2009, uma grande exposição de Cildo Meireles, percorre importantes instituições: depois de magistralmente montada na Tate Modern, em Londres, onde gozou de espaço e destaque idêntico a uma grande e simultânea exposição de Mark Rothko, segue para Barcelona, Houston, Los Angeles e Ontário.
Essa edição do Rumos 2008 / 2009 testemunha a vitalidade da arte contemporânea brasileira que se encontra diante dos mesmos desafios e impasses que toda a arte de nossa época. É necessário que os estratos do poder tenham consciência disso: não existe grande nação sem uma grande demonstração de sua própria arte. E fica a pergunta: algum presidente da república já levou algum visitante estrangeiro para visitar o Museu de Arte de Brasília.
A notável diversidade dos meios
Fala-se muito na diversidade cultural brasileira. No campo das artes visuais o que mais chama a atenção, é a notável diversidade dos meios utilizados como veículos e material de expressão que não discrimina lugar ou região, não importa o local que se percorra, as diferenças geográficas e climáticas, os diversos sotaques, as variações gastronômicas, os diferentes ritmos musicais, sempre a mesma preocupação com a busca de diferentes meios de expressão que escapa à rigidez acadêmica.
Se os meios tradicionais, principalmente a pintura e a gravura, pode-se sentir mais presentes, nunca são hegemônicos e sempre estão acompanhados de certa preocupação com o que os italianos chamam de aggiornamento e que a palavra atualização não traduz todo o sentido. Estar em dia com o que se identifica como o “contemporâneo” às vezes traz surpresas agradáveis, outras nem tanto. Se é notório o uso inteligente e criativo da fotografia por artistas de Belém do Pará, a febre da instalação raramente traz bons resultados em qualquer região.
Clarissa Diniz, com sua sagacidade, denominou a essas manifestações desajeitadas de artistas ávidos por se manifestarem por meios que ainda não dominam de “efeitos colaterais da arte contemporânea”. E Clarissa, no seu trabalho de prospecção em visitas a ateliês pode testemunhar os pequenos desastres causados pelo remédio da “arte nova”. Um artista lhe apresenta um projeto de instalação sem pé nem cabeça, depois de alguma discussão e em contato com o percurso do artista descobre que o “instalador” tem um excelente trabalho em xilogravura, mas que não enviou para o concurso porque pensa que aquilo não é “contemporâneo”.
O melhor da arte hoje é não privilegiar nenhum meio e tratá-los, todos, horizontalmente, procurando a potência poética dos trabalhos, por isso a quase milenar xilogravura pode conviver lado a lado com vídeos que fazem uso de avançados recursos de computação gráfica. Isto seria a maior conquista daquilo que vem sendo chamado – a partir de Rosalind Krauss – de “arte na era pós-medium”. Nenhum meio seja pintura, gravura, escultura, instalação, fotografia ou vídeo, nunca foi nem vai ser garantia de talento poético e qualidade artística. A dificuldade do meio não impede que artistas jovens o dominem quando a sensibilidade do autor está afinada com a linguagem que vai fazer uso para materializar suas preocupações poéticas. E a mostra traz testemunhos de domínio tanto na ocupação do espaço e apropriação de lugares em instalações, como no uso da imagem fixa ou em movimento, em fotografias e vídeos, quanto em pinturas e gravuras.
Se a mesma Rosalind Krauss sublinhou, desde a década de 1970, a dilatação do campo da escultura, é preciso, igualmente, notar a expansão das experiências pictóricas. A persistência da pintura, para além das técnicas tradicionais que fazem uso do pincel e das telas é uma das contribuições que chama a atenção nessa edição do Rumos. A inteligência das oposições cromáticas não se encontra apenas virtualmente dentro dos tubos de tintas, mas no uso de diferentes materiais, desde objetos tridimensionais até nas instalações. Uma tradição recente, bem assentada nas obras de Alfredo Volpi e Eduardo Sued, tem continuidade. Dessas novas relações cromáticas e da ampliação do campo pictórico participa menos uma investigação das teorias da cor ou a simples experiência empírica da tentativa e erro que o mundo pós-industrial da publicidade e do medium eletrônico.
Durante o exame de dossiês, pude observar, mesmo em artistas que fazem uso dos recursos técnicos tradicionais como a tela e o pincel com temas locais em regiões remotas do Noroeste, a influência da percepção cotidiana da cor produzida pelo tubo de raio catodo da televisão e dos monitores de computadores.
Se para a minha geração, aquela que nasceu logo no início do segundo pós-guerra, a primeira página dos jornais era a “paisagem” a ser contemplada ao amanhecer todos os dias, a nova “natureza” mais experimentada pelas gerações mais recentes é a imagem eletrônica e o outdoor publicitário. À nova percepção corresponde uma paleta diferente de cores que não vacila e que se impõe mais decidida, com a contrapartida da perda de nuances e sutilezas nas relações cromáticas.
Gramáticas urbanas em rupturas e continuidades
Algo que se pode notar, não somente nessa edição do Rumos, mas em diferentes mostras de arte contemporânea no Brasil, é o amplo predomínio do mundo urbano sobre o mundo rural. Este, quando aparece, e é raro, é tratado por linguagens urbanas e as preocupações estão mais voltadas por uma perspectiva influenciada pela ecologia e as questões ambientais que aquelas propriamente rurais. A arte responde ao deslocamento brutal provocado pelo processo anárquico da urbanização no país. De 45% da população residente em áreas urbanas em 1960, passamos a 81% no ano 2000.
É importante notar que parte da produção apresentada não mantém contato com uma memória, mesmo do passado recente. É um traço de parte da arte contemporânea no Oriente e no Ocidente, no Norte e no Sul, e de uma porção significativa da arte brasileira atual. A história pareceria terra arrasada se esse processo, já datado de cinco décadas não tivesse sua própria história; a insistência na disjunção sobre a conjunção com o passado, foi uma marca das vanguardas modernas do início do século 20 e um dos traços marcantes do alvorecer do que chamamos de arte contemporânea nos anos 60. Essa pulsão pelo esquecimento para buscar a inovação às vezes funciona, às vezes não, não é uma fórmula que possa garantir, a priori, bons resultados. Entretanto estão presentes obras que mantém laços estreitos com o passado moderno, principalmente com a tradição construtivista, muito viva na história recente da arte brasileira. Essas preservam um evidente rigor formal nas suas poéticas no espaço e na superfície. Às vezes resultam em bem sucedidas simbioses de recursos híbridos típicos da arte mais recente com o esforço de formalização que se traduzem em belas surpresas.
A ausência de temáticas sociais mais fortes é outro traço que chama a atenção, não apenas entre os artistas selecionados, mas entre todos os inscritos. Não vi nenhum trabalho que fizesse mesmo referência indireta ao Movimento dos Sem Terra ou à favelização do país, por exemplo. Os temas, quando presentes, com freqüência estão ligados à existência mais imediata e individual outro traço comum à arte contemporânea nessa época globalizada, já um capítulo na história e que vem sendo designado como “arte & vida”. Mas esta não é exclusividade da arte, me parece ser também uma característica da música, da poesia, da ficção e do teatro contemporâneos. De forma indireta, e a certo nível de abstração, o elemento comum que se pode constatar é uma exploração libertária das linguagens artísticas para dar conta da vida nas metástases urbanas em que se tornaram as grandes cidades. São as trilhas do desejo.
Seriam as questões existenciais no seu tratamento quase coloquial da vida e muito voltado a questões cotidianas uma nova forma de realismo no complexo e confuso mundo do fim das utopias e das macro-explicações da história? Um realismo necessariamente confuso porque estão ausentes as falsas certezas que permitiam a certas vertentes da arte do passado tomar perspectivas críticas tendo como horizonte as grandes miragens de transformação da vida e do mundo? Essas perguntas latejam por baixo da epiderme de muitos trabalhos que vemos nessa edição do Rumos Artes Visuais.
É mais pelas perguntas do que pelas respostas, perguntas que se manifestam de modo poético de norte a sul, de leste a oeste, que a arte contemporânea traduz, de modo às vezes precário, outras potente, mas quase sempre com vitalidade, a época que vivemos.
dezembro 2, 2009
Museu de história natural de linha por Guilherme Bueno
O trabalho de Wanda Pimentel guarda uma particularidade desde o momento em que começa a ganhar visibilidade na segunda metade da década de 1960. Trata-se de um caso único de conseguir fazer uma linha reta possuir a sensualidade de um arabesco. O mesmo se atesta em suas cores e no desenho minuciosamente precisos: a artista confere a cores chapadas e a um traço vizinho à linguagem do desenho técnico um grau de pessoalidade, diria de intimidade, singulares, se comparado à “visualidade imediata” de alguns de seus pares geracionais. É uma gráfica introspectiva e evidente, que nasce do paradoxo do caráter supostamente “frio” de seu tratamento. Mas, por isso mesmo, suas obras causam no espectador um impacto profundo, ao desconcertarem-no com sua tensão entre a nitidez e o que lhe escapa. Tomemos, por exemplo, alguns trabalhos mais antigos: cenas de interiores, fragmentos urbanos... – tal repertório fora uma das bases da pintura moderna, ao fundar um espaço privado, destinado a uma vivência subjetiva. Em Wanda, duas coisas decorriam simultaneamente dali: a primeira, a capacidade de reverter todo e qualquer objeto para esta dimensão pessoal. A segunda dela sempre se apresentar como pedaço de uma história em suspenso que suga o espectador; ele entra nesta narrativa impossível de ser recomposta, até certo ponto impassível, inflexível em sua descrição cuidadosa e, por isso, vedada à objetividade interpretativa. É uma superfície delicadamente exterior, que intermedeia pelo eixo do desenho uma subjetividade pública e uma privada.
A série apresentada na Galeria Anita Schwartz significa uma continuidade e um novo ponto de partida em sua obra. Ela prossegue naquilo que seu método conjuga o refinamento com a capacidade dele infiltrar senão um mistério, ao menos a reiterada dúvida sobre a lucidez e clareza visual. Um desdobramento, por eles nascerem de uma conjugação entre o espaço pictórico e aquele outro objetual. É bem verdade que podemos remontar este encontro até a inflexão que deu origem à “pós”-modernidade, mas, no caso dos trabalhos recentes, isto ganha um outro contorno, ao fazer do mundo uma grande linha onde aquelas esferas acima mencionadas se condensam. Antes, suas telas buscavam o mundo; agora se passa o contrário – ele se agrega à superfície e se transforma numa linha matisseana que poderíamos dizer (quase) in natura, com as serpentes artesanais que se adequam aos traços realizados pela artista. Um desenho natural, se tal acepção é possível, por migrarem para o âmbito da cultura (desenho) os objetos tal como eles se apresentam no real. Ainda assim convém insistir na idéia deste “desenho natural” ser uma metáfora: não só porque a artista incorpora figuras que são imagens derivadas (as cobras por si só são desenhos – interpretações feitas a partir de uma memória gráfica do artesão), mas ainda pela sobreposição de dois desenhos – aquele nascido da apropriação da artista, ao incorporar tais objetos como linha e o outro nascido de sua própria mão (este último com sua familiaridade com as grades perspectivas e as modernas, outras duas invenções do real), como, finalmente, na própria suposição de existir um desenho que simule não nascer como cultura, pensamento objetivo sobre o mundo. Dispostos lado a lado, como uma grande enciclopédia de taxionomia, eles colocam ao espectador a dúvida de quando aquelas linhas passaram a existir. Dito de outro modo, qual o limite entre a espontaneidade de suas torções ou do quanto elas precisam se enrijecer para ficarem contidas no sistema gráfico meticuloso de Wanda. Nesta manobra sutil, percebemos a familiaridade destes trabalhos com o permanente estranhamento lúcido de seu universo poético. Há, de um ponto de vista, este impacto e infiltração corrosiva, quase magrittiana, que igualmente habita suas telas: um tempo narrativo sempre a ser preenchido, imiscuído pelo olhar, mas também rebatido pela parede pictórica compacta. Os vazios em suas telas são um outro espaço de projeção, no qual o espectador se situa, como em um mapa ou uma planta baixa para percorrer o terreno. Em sua instalação, aquele imaginário ganha solidez, ele passa a ocupar um espaço tátil, ao se fazer um desenho-objeto. Os vãos entre as serpentes e as malhas gráficas que as sustentam, acabam, com sua espessura inconsútil e imaterial, se moldando como o espaço de negociação entre estes dois desenhos, desenhos materiais na própria origem. A diferença entre eles e as pinturas está justamente no modo como cada um dos trabalhos lida com o jogo reflexivo entre espectador e obra: se o plano da pintura é um emparedamento que o olho desejante a todo custo tenta transpor, na instalação é um furor do arabesco tornado coisa a lhe acometer. Linha-objeto-tabu, sua história natural é o mal-estar de uma civilização pictórica, mas também o inventário de seu princípio do prazer. Em última instância, elas “mimetizam” a própria visualidade nascida de um mundo pós-industrial para desnaturalizá-la – não por qualquer apelo à espontaneidade, nem para humaniza-la – para forçar o espectador a um olhar inquieto. Densidade da superfície, superfície infinita, mas compactada em uma discreta caixa de vidro e madeira.
DE A. CERVENE PICTORE por Giancarlo Hannud
“Talvez a alguns, o fato desta nota estar encabeçada por um título em latim possa parecer pouco usual, ou, pior de todos os crimes, uma simples afetação de estilo. No entanto, ao tratar do trabalho de Alex Cerveny, este obsoletismo talvez possa ser perdoado, pois estamos aqui lidando com um artista que serve-se de uma linguagem que se não é propriamente arcaica, é inegavelmente arcaizante. No sistema estético Cerveniano encontramos motivos patentemente contemporâneos que nos são apresentados envoltos em um véu imemorial, em um não sei quê de secular. Nesse sistema, o que interessa são as características fundamentais; nele o contemporâneo é tratado de forma prototípica e para compreendê-lo (seria isso realmente desejável?) teríamos que nos aproximar antes da razão dos mitógrafos do que a dos sociólogos. Isso acaba por aproximar a obra de Cerveny – e torná-la tão fugitiva quanto – da arte de latitudes e séculos que nos são inteiramente estrangeiros, como a dos livros dos mortos egípicios, das ilustrações mogóis, ou dos afrescos pompeanos, onde tudo parece nos afastar, impedindo uma compreensão tranquila a partir de parâmetros correntes. Para empregar uma símile literaria, sua obra opera dentro do mesmo princípio estético que a decisão de verter a série de livros do feiticeiro Harry Potter para o latim; poderia existir título mais arcaizante que Harrius Potter et Philosophi Lapis ou Harrius Potter et Camera Secretorum?
A leitura de obras em latim, sejam elas de autoria de J. K. Rowling, Santo Agostinho, ou Petrônio, constitui nos dias de hoje um prazer solitário e borrifado de formol. O mesmo acontece com a pintura narrativa, e por conseguinte, com a pintura de A. Cerveny. Essa pintura tantas vezes declarada morta, que tem como alicerce historial um legado que remonta às pinturas rupestres de Lascaux e compreende a pintura ocidental em sua quase totalidade, personifica, de certa maneira, a questão da linhagem e da tradição. Essas duas particularidades são fundamentais para uma apreensão mais fluente do códice visual de A. Cerveny, pois ele mesmo pertence a uma tradição artística diametricalmente oposta àquela apresentada pelo ensino contemporâneo das artes em faculdades e universidades: àquela do aprendiz lentamente convertido em artista no interior da oficina de um algum mestre; do sistema de aprendizagem imposto pelas guildas medievais com seus muitos estágios e gradações; da tradição que criou as Academias setecentistas e a hierarquia dos gêneros. Um treinamento que inegavelmente gerou grandes novos mestres, mas que nunca carregou dentro de si uma inclinação nem ruptiva nem renovadora, mas antes uma predileção pelo desenvolvimento e dilatação das formas preexistentes, por um fazer e um narrar continuamente refinados.
Essa mesma tradição defendia a pintura histórica como pináculo de sua prática, pois ela era uma pintura moralmente edificante, inspiradora, uma pintura que ensinava os homens a bem viver. As pinturas e aquarelas apresentadas na exposição Paraguay e outras pinturas, se enquadram na categoria de pintura histórica; uma pintura histórica um pouco canhestra, blasfêmica, impostora até, pois ela não nos ensina coisa alguma e não serve de exemplo a ninguém, mas uma pintura todavia histórica. O palco dos relatos, invariavelmente, é o deserto, apresentado aqui como território fértil, propício para a revelação, criação ou invenção – deixo a escolha do termo ao leitor –, da triplice aliança formada pelas religiões monoteístas. Um deserto de devoção tongue-in-cheek, ocupado por cactos façanhudos, oliveiras fantásticas, montes que se assemelham a torres nuraguicas com embocaduras capiteladas e grandes mares que poderiam desaparecer a qualquer momento. Habitado por homens barbados e onças-pintadas meio minosas meio mimosas, esses desertos nos contam histórias que não servem de exemplo, não somente pelo fato de se tratarem de versões incrivelmente pessoais da história, repletas de devaneios e digressões por vezes incompreensíveis, mas também por serem histórias mais próximas, de um passado mais fantasticamente local. Se antes Cerveny versou sobre a Arcadia e o passado biblíco, ele agora parece se interessar mais pelo Paraguai, por Eliza Lynch e Solano López, pelos poemas mais tipicamente novecentistas de Castro Alves, por whisky e cigarro contrabandeados e lindas melodias em guarany. É inevitável que o empreendimento da pintura histórica por estas bandas resulte em narrativas um pouco baralhadas, pois como escreveu Alejo Carpentier, aqui “tudo é fábula: contos de Eldorados e Potosís, cidades-fantasmas, esponjas que falam, carneiros de velocino vermelho, Amazonas com uma teta a menos, e orejones que se alimentam de jesuítas.” Para parafrasear uma frase do compositor artífice do dodecafonismo e pintor domingueiro Arnold Schönberg, ainda existem muitas boas histórias a serem contadas à óleo.
A Invenção de um Mundo, Parceria Itaú Cultural e Maison Européenne de la Photographie
Texto curatorial de Eder Chiodetto e Jean-Luc Monterosso
Fotografar não para certificar o visível, mas para criar outras dimensões possíveis do espaço-tempo. Olhar e registrar não a aparência do entorno, mas a vertigem dos desejos, dos temores, dos sonhos segredados. Fotografar não o que os olhos veem, mas a imaginação criadora, onírica, irracional, subjetiva. Instaurar a dúvida, a dialética e a ironia onde reinava a aparência volátil de realidades fortuitas. Fotografar, inventar um mundo e, assim, representar o homem em todos os seus matizes.
Transfigurar a objetividade documental, o rigor formal e o flagrante para dar primazia à subjetividade, à abstração e à construção da cena foi atitude transgressora que sempre existiu de forma pulverizada na história da fotografia, mas que passou a dominar uma determinada produção fotográfica, sobretudo a partir dos anos 1960. Tais pesquisas recrudesceram nas décadas seguintes motivadas pela evolução dos modos e costumes da sociedade, pelo invento de novas tecnologias, pelas teorias de pensadores que desconstruíram o conceito de “verdade” e de “realidade” nas imagens técnicas, que se somaram à crise da representação nas artes visuais, escancarada pelo pós-modernismo.
Diversos artistas, deixando de lado a ideia da captura de momentos decisivos, optaram pela construção de cenas, realizando uma espécie de teatro ou ato performático para os quais a câmera escura passou a simbolizar um palco de representações e a imagem resultante, a síntese de uma narrativa dirigida com forte aporte estético e ideológico. A ideia de uma verdade totalizante, pura e isenta passou a ser repudiada. Vigora, desde então, o pensamento de que todo conhecimento é relativo. Dicotomias, incertezas, ironia e lirismo preenchem, assim, outros planos que se justapõem à aparente bidimensionalidade das fotografias.
A Invenção de um Mundo, exposição que faz um pequeno recorte dessa produção a partir do vasto acervo da Maison Européenne de la Photographie, faz um apanhado de obras e artistas que se tornaram referência desse tipo de fotografia construída, por vezes denominada por pesquisadores como pós-moderna, contemporânea, encenada, expandida, contaminada etc.
Tais denominações buscam, na verdade, revelar a capacidade desse tipo de fotografia de se mesclar com outras linguagens como o cinema, a pintura, a gravura e o teatro, por exemplo, num movimento que tende a tornar mais complexas e desafiadoras tanto sua simbologia quanto sua classificação.
O fato é que a produção dos artistas contemporâneos aqui representados, ao quebrar diversos tabus, conferiu definitivamente à fotografia um grau de autonomia e originalidade que fez dela a linguagem mais discutida das últimas décadas, seja no âmbito da arte, no meio acadêmico e em outras instâncias sociais.
Contra a combalida ideia da assunção do real na fotografia, os artistas investiram fundo na simulação, na busca de uma representação genuína de seus estados de ânimo ou de sua observação crítica do mundo pela via ficcional.
Determinante para alavancar essa postura dos artistas, as novas tecnologias ofereceram nos últimos anos uma infinidade de ferramentas para que eles conseguissem ampliar o repertório de suas pesquisas pós-fotográficas. As cópias em grandes formatos com grande qualidade pictórica, por exemplo, fizeram reacender o eterno debate dos limites entre fotografia e pintura.
Nas últimas três décadas, essa produção explodiu no circuito das grandes exposições de arte, tornando-se um fenômeno de mercado, como nunca havia ocorrido na história. Com o crescimento exponencial dos computadores pessoais e programas de tratamento de imagem, a manipulação do conteúdo das imagens torna-se cada vez mais algo corriqueiro, sepultando de vez a crença do senso comum de que as imagens necessariamente fazem emergir um real inquestionável.
São esses usuários também que cada vez mais buscam imagens idealizadas, retocadas, construídas, ficcionais para ilustrar seus perfis, por exemplo, nos sites de relacionamento na internet. A Invenção de um Mundo, por esse prisma, não inventa um mundo paralelo e distante da realidade, mas, sim, reflete e potencializa de forma poética e metafórica o comportamento também cambiante da sociedade em que está inserida.
Com tantas transformações de ordem conceitual e técnica, a fotografia da virada do século XX para o XXI tem conseguido de forma enfática e original representar os anseios e as contradições do homem contemporâneo, ampliando suas fronteiras de representação.