|
fevereiro 25, 2008
Entrevista de Walmor Corrêa a Paula Ramos
Entrevista de Walmor Corrêa a Paula Ramos
Walmor Corrêa: o estranho assimilado
Os estranhos e bizarros seres de Walmor Corrêa ganham espaço em duas exposições que praticamente inauguram o calendário expositivo no Rio de Janeiro. A partir de 3 de março, o artista participa da mostra Trópicos, com curadoria de Alfons Hug, junto ao Centro Cultural Banco do Brasil. Um dia depois, inaugura individual na Galeria Laura Marsiaj Arte Contemporânea, que segue até 5 de abril.
Nascido em Florianópolis (1961) e radicado em Porto Alegre desde 1987, Walmor tem participado de importantes mostras de arte contemporânea desde o início da década. Em 2004, ganhou sala especial na 26ª Bienal Internacional de São Paulo. Um ano depois, participou de, pelo menos, quatro coletivas internacionais importantes, além do Panorama da Arte Brasileira, no MAM-SP. Em 2006, participou, ainda, da mostra Cryptozoology, nos Estados Unidos, ao lado de artistas como John Fontcuberta e Mark Dion. Na ocasião, exibiu pinturas da série Unheimlich, na qual dissecou cinco seres do imaginário popular brasileiro: a Ondina, o Ipupiara, o Curupira, o Capelobo e a Cachorra da Palmeira. Além de integrarem o folclore do país, esses seres guardam, em comum, o fato de serem híbridos de humanos com animais. Na fantástica dissecação, mesclando fantasia com ciência, o artista busca explicações para a existência desses seres. É esta mesma série que Walmor apresenta no CCBB-Rio. Já na Galeria Laura Marsiaj, expõe a instalação Memento Mori, um desdobramento de Unheimlich, mais outras duas pinturas em que disseca personagens das histórias em quadrinhos: o Homem Aranha e a Cheetah.
Nesta entrevista, Walmor Corrêa comenta o seu processo de criação, as origens de sua poética e as complexas relações entre ciência e fantasia, que a sua obra tanto suscita.
Entrevista concedida à jornalista Paula Ramos
O seu trabalho é marcado por uma espécie de fascínio pelo estranho. Como e quando surgiu isso?
O comum sempre me foi revelado com facilidade. E, de certa forma, desde quando criança, o meu olhar foi se direcionando para as coisas que eu desconhecia. Dos quatros irmãos, eu sou o filho mais novo e o único homem. E sempre fui muito quieto, no meu canto, mas observava demais, observava tudo com minúcia. E gostava do que era diferente, do surpreendente. Embora eu gostasse de jogar bola, por exemplo, eu me interessava muito mais em saber como era a bola por dentro... Eu tinha vários brinquedos e, com eles, acontecia o mesmo: eu queria desmontá-los e depois montá-los novamente, apenas para ver como funcionavam. Acredito que o meu pai me incitou muito isso. Lembro de que nós tínhamos uma fazenda e de que, muitas vezes, íamos lá, eu e ele. Aí, ele precisava vacinar o gado, dar banho no gado, etc, e nesse momento eu era uma criança muito exigente, porque estava sempre querendo saber das coisas, perguntava sem parar. E, lá pelas tantas, ele me dizia: “Vai lá atrás daquele morro e vê o bicho que tem lá. Ele põe um ovo dourado”. E eu ia. É claro que eu não via esse ovo dourado, mas eu imaginava... O curioso é que eu não me lembro de voltar daqueles passeios furioso com o meu pai. Acho que, pelo contrário, o passeio era muito rico, e eu realmente via muita coisa. Na verdade, eu imaginava sem parar... Se conto isso, é porque percebo que o meu trabalho guarda uma relação muito grande com essa infância e com as coisas que sempre me moveram: a curiosidade e a imaginação.
Qual foi o seu primeiro trabalho nessa linha?
Em 1997, fiz uma viagem. Lembro-me de que era primavera e de que eu fiquei numa cidadezinha do interior. E eu observava aquela natureza exuberante, a força dela, e foi como se ela também estivesse brotando em mim. Então comecei a escrever e a pesquisar mais sobre assuntos ligados à natureza, ao mesmo tempo em que relacionava aquilo tudo que eu via com a minha infância. Foi quando surgiram os primeiros híbridos. De certa forma, eu também me sentia um híbrido, um diferente. Aí, em 1999, fiz uma outra viagem, desta vez à Amazônia. E lá aconteceu algo semelhante. Eu ficava observando a mata, os animais, a riqueza dos minúsculos seres, dos insetos... e comecei a perceber, de uma forma muito pessoal, o quanto a natureza é surpreendente. Ao mesmo tempo, pensava que eu, como artista, poderia criar seres ainda mais surpreendentes. Por que não? E então fui visitar o Museu de Ciências Naturais da Amazônia, que tem uma incrível coleção de insetos. Fiquei olhando e percebi que muitos visitantes diziam que conheciam aqueles insetos, e eles contavam coisas absurdas sobre os bichos. E, para mim, nada do que eles diziam fazia sentido... E então percebi que as pessoas estavam mentindo. Percebi que tudo aquilo, ou pelo menos uma grande parte do que se dizia ali, era invenção. E, novamente: por que eu também não poderia inventar? Essa consciência, de certa forma, me mobilizou a criar os “meus” insetos. Assim, estudei a fisiologia desses animais e criei insetos que eram muito semelhantes àqueles do museu, mas que não existiam, e depois os apresentei com alfinetes, para dar uma ilusão de realidade. Isso foi em 2000. Nessa mesma época, fui surpreendido com o episódio do besouro...
Que episódio?
Bem, existe o chamado Número de Reynolds, que é uma espécie de fórmula matemática para saber se algo pode ou não voar. Pois o Número de Reynolds diz que uma galinha, por mais estranho que pareça, pode voar; que um avião também pode. Esse número atesta tudo o que conhecemos que voa, menos o besouro. Pela física e pela aerodinâmica, o besouro jamais poderia voar, entretanto ele voa!!! E eu, de repente, "me vi" como um besouro. Percebi que apesar de todos os problemas da situação do artista no Brasil, da situação do artista em Porto Alegre, apesar de ser solitário em meu trabalho, de estar distante dos outros artistas, apesar de várias barreiras, eu era um artista. Eu conseguia produzir. Tudo conspirava para que eu não conseguisse; as coisas estavam programadas para não funcionar, mas, em certa medida, estavam funcionando. Eu estava voando, tal como o besouro. E aquela consciência impulsionou o meu trabalho de uma forma sem igual.
E, em menos de seis anos, o seu trabalho deu um salto gigantesco...
Foi uma ruptura total. Aquela coisa de brincar de Deus, criando aqueles insetos, acabou me levando a animais maiores. Então eu reforcei as minhas pesquisas sobre os híbridos e comecei a fazer os bichos todos, só que sutilmente deformados. Por exemplo: olhando de longe, se enxergava uma galinha; mas aí, chegando perto, o espectador se dava conta de que o bico era muito pequeno, de que os pés também eram pequenos. Ou seja, era um animal inviável, mas que convencia as pessoas com um olhar menos atento, com um olhar mais rápido e instantâneo, coisa que eu nunca tive. Nesses momentos, como eu gostava de observar a reação dos espectadores diante dos meus quadros... “Ah, são galinhas...”, eles diziam. Não, não são galinhas, porque, se elas existissem, não poderiam comer, uma vez que o bico não serviria; elas também não conseguiriam caminhar, porque as patas não funcionariam... Eu gostava daquelas brincadeiras, elas me estimulavam. A minha idéia era mexer com as formas, brincar com as formas... Até um dia em que um senhor que estava observando essas mesmas obras me olhou e disse: “Olha, o seu trabalho é muito bonito, mas esses bichos vão morrer...” Ele tinha matado a charada!
Isso foi quando surgiu o texto nas suas obras, esse elemento que é tão importante na construção dessas verdadeiras armadilhas visuais.
Na verdade, alguns trabalhos anteriores já tinham texto, mas, geralmente, eles não tinham nada a ver com a imagem. Por exemplo: às vezes eu colocava uma anotação, inventava uma bobagem qualquer e dizia algo do tipo: “Um dia chuvoso de luz clara na aurora boreal...” Era uma brincadeira mesmo. Mas, quando comecei a fazer os híbridos de um modo mais sistemático, comecei a pensar nos nomes dos animais, nas famílias das quais eles descendiam... Eu criava uma história para aqueles animais que não existiam. E essas histórias eram muito engraçadas, completamente inverossímeis. E era curioso ficar observando como as pessoas liam aquilo e pareciam realmente acreditar, principalmente os estrangeiros... e aí vem a recorrência do imaginário do fabuloso que o Brasil ainda suscita, daquele mesmo imaginário que os antigos artistas viajantes exploravam. Os artistas viajantes faziam o quê? Eles vinham aqui, faziam os seus percursos, ouviam os relatos dos habitantes e, muitas vezes, sem conhecer direito os animais, sem conhecer direito a flora e fauna, eles faziam os desenhos. E esses desenhos eram difundidos na Europa como verdade. Sobre isso, eu me lembro bem de que, há muito tempo, eu vi um desenho estranhíssimo num livro sobre artistas viajantes... parecia ser um animal com rosto humano. E eu realmente não conseguia entender o que era aquilo. Aí, li o texto e me deparei com a informação: era um bicho-preguiça. Então, se imaginamos que aquela imagem bizarra era difundida como verdade, a coisa toma outra proporção. É muito curioso e, ao mesmo tempo, divertido. Nos meus trabalhos, eu proponho algo semelhante.
Na série Unheimlich, o papel do texto já é diferente. Ele não é mais uma brincadeira, mas, pelo contrário, ajuda a “sustentar” a existência científica desses seres.
Sim, nesses trabalhos os textos estão muito próximos do que poderia ser descrito pela ciência. Para criar os textos, eu fiz entrevistas com médicos e especialistas. Fui atrás de respostas o mais factíveis. Era engraçado, porque eu marcava a hora com o médico, sentava diante dele e fazia as minhas perguntas. A maioria "entrava" na minha história de cara, achava divertido e também ficava procurando as explicações fisiológicas para a existência desses seres, para a existência da Ondina, do Capelobo, do Ipupiara, do Curupira e da Cachorra da Palmeira. A minha intenção com a série sempre foi a de provocar o estranhamento, resgatando esses seres do imaginário popular e trazendo-os para a luz da ciência – dessa mesma ciência que se engana a todo momento, que a todo instante descobre que aquilo que era verdade não é mais, e vice-versa... Quando eu pego esses seres do imaginário popular e faço a dissecação, é como se a ciência mostrasse o funcionamento deles, a fisiologia; é como se a ciência atestasse a existência deles. Ora, se aquele ser é uma sereia e se uma sereia vive no fundo das águas, ela deve ter um dispositivo para evitar a embolia! E eu explico isso na obra, a partir da dissecação, e vou comprovando, assim, a existência desse animal. É claro que não é a minha idéia discutir com um médico aquele órgão, mas eu tento, à minha maneira, descrever como seria na versão científica. Quando tu descreves como é a gestação da sereia, como é a laringe do Ipupiara, essa descrição em si encerra uma coisa quase científica e, ao mesmo tempo, impossível. E quando eu tiro esse animal da vida das pessoas, lá da dona Maria, da Amazônia, que viu uma sereia e tal... quando eu tiro essa informação do cotidiano e a coloco num formato que remete ao compêndio de ciências, estou dizendo à dona Maria que aquilo no qual ela acredita é verdade.
Os Atlas, feitos a partir da série Unheimlich, no seu próprio formato, ajudam ainda mais a “comprovar” essa verdade.
Na realidade, as pinturas da série Unheimlich foram feitas para chegar aos Atlas. Todo o processo foi para chegar aos Atlas: a pesquisa, o desenho, a pintura, tudo. Quanto a isso, eu me recordo que sempre tive vontade de ter os Atlas que havia no colégio. Aqueles desenhos me fascinavam... Era um desejo de reproduzir os Atlas da infância sob a luz de uma novo olhar.
Os Atlas, as bizarras caixinhas de música com esqueletos, o relógio cuco com o passarinho substituído pelo esqueleto... Você já tinha feito esqueletos na série Apêndices, só que na tela. Agora, em Memento Mori, além dos Atlas, você apresenta esqueletos “reais” e, ao mesmo tempo, imaginários, desenvolvidos a partir de fragmentos de esqueletos de pássaros. E tudo num ambiente de respeitável gabinete...
Aí vem a importância de inserir a obra num espaço que potencialize o que estou querendo dizer. Tudo, ali, tem um ar severo: o papel de parede, o ambiente de antigos laboratórios, o gabinete de respeitáveis doutores... Quanto aos esqueletos, todos foram feitos a partir de ossos de animais que realmente existiram. A diferença é que, para alguns desses esqueletos, eu crio bicos mais exóticos, impossíveis na natureza. Aí é uma conversa que eu tenho com trabalhos de anos atrás, da série dos Apêndices e dos Dioramas, quando eu criava aqueles bichos impossíveis da Terra Brasilis, numa relação com os artistas viajantes. Então, eu pego os ossinhos e vou montando os esqueletos.
E como surgiram as caixas de música?
De um modo muito natural. Certo dia, encontrei uma antiga caixa de música, que estava quebrada, porém com a máquina funcionando. E como eu já estava trabalhando com esqueletos, pensei em colocar a engrenagem do animal na engrenagem da máquina, fazendo com que aquilo girasse como se fosse uma unidade e fazendo também com que pensemos que aqueles animais têm vida. Há uma asa do pássaro que levanta, como se o animal fosse dançar; outra, como se ele fosse voar. Então, há um jogo também lúdico. E isso, para mim, é um memento mori. Agora, não no sentido de uma apologia à morte, como muitos pensam. Pelo contrário, eu penso nisso como um recado: “Aproveita a vida, porque todos vamos morrer!” Então, o esqueleto se envolve na melodia como algo da vida. A mesma coisa essa dissecação que faço na série Unheimlich. A questão das vísceras, na minha visão, está relacionada a questões de vida, e não de morte. As representações de Atlas remetem ao estudo, ao reconhecimento da vida. Então, essas obras são como uma celebração da possibilidade da vida.
Você é muito controlador, cuida de todas as etapas de produção da obra. Numa época em que a maioria dos artistas passa tarefas a terceiros, você assume praticamente todo o processo...
Tem muita coisa no meu trabalho que só eu consigo entender, que é difícil explicar para alguém. Funciona mais ou menos assim: eu sei o que quero fazer, mas, muitas vezes, nem eu sei como fazer. Então, se eu ainda não sei o como, não há como passar isso para outra pessoa. Por outro lado, sou muito perfeccionista, eu penso em tudo, em todas as etapas, e gosto de ter controle sobre tudo. E esse longo processo também faz parte da obra. Assim, o preciosismo que tenho quanto à obra, quando ao desenho, por exemplo, eu tenho também quanto à maneira como a obra é apresentada, quanto à caixa de madeira que a sustenta, quanto à redoma que protege o esqueleto...
Em 2006, você integrou a exposição Cryptozoology, nos Estados Unidos, da qual participaram outros aristas que vêm trabalhando questões relacionadas à ciência, aos mitos e à imaginação. Como você percebe a relação do seu trabalho com o de outros artistas, que têm discutido aspectos similares?
Muito bem situado. E eu pude perceber isso nessa mostra Cryptozoology, para a qual o curador juntou artistas do mundo inteiro que trabalham essas questões. E eu encontrei nesses artistas os meus pares, digamos assim. E eu tive conversas ótimas, a partir das quais novas possibilidades de investigação se abriram. Participar desta exposição também confirmou o quanto o meu trabalho traz reflexões da ordem do contemporâneo.
O que você busca, como artista?
Essa pergunta me remete a algo que aconteceu há pouco tempo. "Impossível! Impossível!" Foi a frase dita recentemente por entomologistas diante da comprovação, por parte dos biólogos, de que os insetos bicho-pau haviam perdido as asas e, surpreendentemente, tinham-nas recuperado durante a jornada evolutiva, contrariando a idéia de evolucionistas de que partes descartadas durante a evolução jamais seriam recuperadas. Esse aspecto da ciência foi o que me levou a pensar até que ponto o saber abraça a enorme diversidade de fenômenos do mundo natural. Acredito que a arte me possibilita compreender as perguntas que sempre permearam a minha vida, sobretudo a minha infância. Por meio da arte, posso abrir os olhos e realizar o mundo como penso que ele poderia ser, como ele se apresenta para mim, construindo uma natureza fantástica que desconhece a própria impossibilidade. A oferta de um outro olhar – não como questão, mas como denúncia divertida, porém nunca frívola ou inconseqüente – me permite a apropriação de um diálogo lúdico entre o rigor científico e a perspectiva do pensamento que transcende. Não me proponho a explicar, apenas apresento o meu olhar libertário de artista sobre uma ínfima parte da complexidade do universo e sobre as questões fundamentais para a sobrevivência, motivado pela consciência e também surpresa de ser livre. Só a arte pode transcender conceitos e revisar códigos rígidos e, por fim, só ela pode gritar: "Possível! Possível!"