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outubro 8, 2007
16º SESC VIDEOBRASIL: Ensaio/ Trilogia Cognitiva de Arthur Omar, ou como expor estados mentais, por Joanne Martins
16º SESC VIDEOBRASIL
Ensaio/ Trilogia Cognitiva de Arthur Omar, ou como expor estados mentais, por Joanne Martins*
Como captar, filmar e expor "estados mentais"? Pensamentos sutis, comunicações alquímicas e incorporais? Arthur Omar fez algumas viagens longínquas para encontrar esse "interior" tão evidente e tão pouco visível e outras viagens sem sair do lugar, defronte da própria tela de TV, sem sair do quarto/ateliê. O resultado são as três instalações que estão no Videobrasil 2007: Dervix (2006) e duas instalações inéditas Ciência Cognitiva dos Corpos Gloriosos (2007) e Infinto Maleável (2007).
A Tecnologia é Mental
Dervix é o que vem de longe. A comunicação e o sentido fora do campo da representação e da significação. Uma experiência de imersão/emersão numa cerimônia filmada no Afeganistão, quando um grupo de "derviches" movimenta seus corpos em sincronia com sons e a respiração. Os corpos reais em sintonia com um espaço sonoro que produz o transe. Essa instalação é composta de 4 canais de vídeo projetados sobre quatro paredes representando o interior estilizado de uma mesquita, despojada de qualquer ornamento. O chão é forrado de tapete vermelho, e há diversas almofadas sobre ele, onde se pode sentar ou deitar. As imagens foram feitas em janeiro de 2002, numa comunidade de sufis nos arredores de Cabul, Afeganistão, dois meses depois do final da guerra, numa cidade ainda traumatizada por ela.
O visitante é convidado a participar de um ritual de "derviches", um ritual religioso de sábios sufis extremamente puro e fechado, num estilo pouco conhecido e particular apenas do Afeganistão, onde os homens sentados cantam e se movimentam ao ritmo da respiração, gerando um círculo de energia psíquica intenso e emocionante. A instalação confronta o espectador com experiência de tensão cultural, expondo-o à estranheza de corpos e rostos que se comportam de uma forma inesperada e enigmática. Sem procurar duplicar o lado religioso da cerimônia, as imagens apontam para a existência virtual de uma realidade que é atingida apenas por uma sofisticada técnica mental, colocando entre parêntesis nossas toscas indagações tecnológicas. Dervix versus Matrix. A tecnologia é mental.
Ao final do ritual, a instalação se abre para um hiper-aceleração e quase "destruição" dos corpos na sua integridade. Inconsciente ótico que mergulhamos num fluxo alucinatório de imagens e sons de extrema violência perceptiva, no limite do visível, as imagens fusionam e em frações de segundos "congelam" para vislumbrarmos fragmentos de retratos, rostos, corpos. Bombardeamento audiovisual que aponta para outros rituais, caros a imagem ocidental: o choque sensorial e o ataque perceptivo e cognitivo.
Arthur Omar esteve em diversas regiões do Afeganistão em 2002, por ocasião do seu trabalho para a 26 Bienal de São Paulo. O imenso material reunido, fotografias, vídeos e gravações sonoras, anotações de diários, continua e prolonga com novas dimensões o trabalho do autor no campo da sua antropologia fundada em práticas estéticas e experimentais.
Etnografia e antropologia líricas como método que já vinha utilizando nos seus filmes, vídeo e fotografias (Congo, Tesouro da Juventude, Tambores do Brasil, Coroação de Uma Rainha, Sonhos e Histórias de Fantasmas, Antropologia da Face Gloriosa, Dervix e Viagem ao Afeganistão).
Suspensão e Turbilhonamento
A segunda instalação da trilogia das imagens-pensamento é "Ciência Cognitiva dos Corpos Gloriosos" (finalizada em 2007). Como filmar o pensamento enquanto pensamos? Em Ciência Cognitiva dos Corpos Gloriosos essa experiência acontece a partir da imagem quase fixa, móvel/imóvel de um casal. Uma cena neutra de aparente imobilidade de um homem e uma mulher vestidos de forma semelhante, emergindo de um fundo noturno, da tela azul-negra. Dois atores, principio feminino e masculino, que não se olham, mas se comunicam envoltos em nuvens e fluxos de fagulhas e fogos contínuos, que criam uma dobra entre exterior e interior. Bodas alquímicas. Conjuntions. A exteriorização do pensamento, em micro movimentos do rosto e corpo, se dá de forma prosaica e cósmica. Fusão de princípios opostos e semelhantes, mulher e homem formam uma só mônada, comunidade intersubjetiva, trocam experiências num estranhíssimo encontro mente-mente.
Pensamentos sutis atravessam os rostos, mente e corpo se fundem numa imersão/emersão figurada nas luzes e explosões que desenham e extraem essas faces gloriosas da escuridão. Nuvem vermelhas, amarelas explodem e formam halos sobre os orgãos do sentido. No fundo a imagem azul-gelada, que tende a imobilidade suspendendo o tempo e o movimento.
Como filmar a suspensão e a relação do corpo com dimensões incorporais? Como criar experiências psíquicas vazias de conteúdos prévios? Nuvens de pensamentos flutuantes e explosivos, intensos. Que tecnologias mentais dispomos? As imagens de explosões e fagulhas coloridas são fulgurações desses estados sutis. Música eletrônica original, uma suite de piano acompanha as explosões, fogos de artifícios que se abrem e fecham como galáxias. Nada se repete e tudo está imóvel e em turbilhonamento. Loop. Sem começo nem fim.
Os Incorporais
Arthur Omar: "Gosto da idéia de 'efeitos de superfície' que ocorrem no limite dos corpos e das coisas. Dá idéia dos incorporais dos estóicos, encontrar na prática, na criação conceitos tão difíceis de intuir (nunca tinha entendido até recriar eu mesmo o que tinha lido e esquecido lá num antigo livro do Deleuze). Incomoda profundamente essa enxurrada de psicologismos, causalidades. Gosto de paradoxos, ressonâncias, constelações e correspondências sem causas"
Esses efeitos de superfície chegam há uma velocidade e edição alucinatórias em Infinito Maleável (2007). Edição (dos três vídeos) trabalhada de forma obsessiva por Arthur Omar e Evangelo Gasos durante meses de fatura. Meses vivendo entre imagens e com as imagens. É preciso um enorme esforço para brincar com os "incorporais". Afinal, como chegar a esses acontecimentos paradoxais que não possuem as características de uma coisa e nem de um estado de coisas?
Acontecimentos que são de natureza diferente dos corpos, o incorporal não é um ser, mas um "extra-ser", dizem os estóicos (veja em Deleuze lembra Ivana Bentes), que já pensavam por imagens. É nesta direção difícil de expressar que aparecerão as conexões reais e as conjugações virtuais. Pois nesses trabalhos de manipulação infinita, a comunicação entre acontecimentos resulta numa lógica que trata o sentido fora do campo da representação e da significação.
Os corpos possuem limites em seus contornos, ações e paixões que emanam de suas profundidades. Os incorporais são ilimitados, impassíveis, efeitos que acontecem na superfície dos corpos.
Aqui chegamos a questão da relação entre corpo e imagem. Jogos de intensificação, corpos unificados pelo flou e pelo movimento da câmera, produzindo elementos incorporais, micro acontecimentos que aparecem e desaparecem.
Infinito Maleável, traz um confronto com as próprias imagens. Absolutamente low tech na sua captura é o registro de imagens de carnaval transmitidas pela TV, inteiramente filmado da tela da televisão. Imagens analógicas, linhas visíveis, textura e pixels explodidos na superfície da tela. A câmera rente ao vidro da TV, "vidro contra vidro". Não mais desconstruir de fora, mas reconstruir o que a TV banalizou e destruiu, a potência das imagens e a potência do espetáculo. "No fundo das imagens só existem imagens" (Deleuze) e são elas que é preciso investigar, abrir, violar para voltar a uma "virgindade reconstruída". Operação para cirurgiões e estetas.
O vídeo é puro fluxo alucinatório, ao que se cola um fluxo sonoro, música de piano original, improvisada, repetitiva que vão compor uma máquina de dissolução, associação. Movimentos vertiginosos, cores, pixels, turbilhonamento, rastros. Fluxos abstratos e figurativos, num resultado formal produzido com a câmera na mão, rente a tela. Sem distância da tela da TV, intensificando, operando diretamente sobre as imagens transmitidas ao vivo durante o carnaval. Como arrancar novas potências dessas imagens domésticas e domesticadas das transmissões de carnaval madrugada adentro?
Arthur Omar que durante décadas apostou num "corpo a corpo" com o Carnaval da rua, metodologia singularizada na série fotográfica Antropologia da Face Gloriosa e no longa em digital Esplendor dos Contrários (em progresso), captura um Carnaval longe de seu ambiente, chapado na tela de TV. Desfilam as imagens sob o solo de um piano, que repete células musicais. Todas as Escola de Samba se tornam um só fluxo. Como re-singularizar essa imagem-multidão mais do que pasteurizada e homogeneizada nas transmissões televisivas?
Diz Arthur Omar: "Propomos a retransmissão do carnaval reinventando a forma de olhar para essas imagens da TV. Desencravar, escavar as imagens banais e encontrar sua potência latente. O fluxo é alternado por congelamentos, fixidez, imagens fotográficas isoladas que interrompem a imagem-movimento. Epifanias, aparições, operações de "salvamento" de um fluxo indiferenciado. Essas imagens de TV passam diante de milhões de pessoas e não são vistas. O Infinito Maleável das imagens busca na imagem suas possibilidades e potências infinitas, uma imagem-percepção. Não se trata de buscar efeitos, mas de uma forma quase naif e inaugural, roçar o vidro da lente contra a superfície da tela de TV. Raspar o vidro de uma TV analógica para inventar uma imagem-tela. Pintura digital, que mergulha na bidimensionalidade da tela. É o corpo e a posição da câmera, de quem filma e vê que cria um novo acontecimento. Essa mesma metodologia e experiência foi usada no vídeo Noite Feliz e Abstrações."
O "reconstrutivismo" seria isso? É reencontrar o êxtase carnavalesco numa experiência de segundo grau, diante das imagens despontencializadas, diante da filtragem do carnaval pelos clichês da transmissão. Sem som ambiente, sem locução, sem rastros do real. O que foi destruído na transmissão será reconstruído numa experiência diante da tela.
Explorar a nossa relação de ex-espectador diante de uma tela de TV, diante das linhas da imagem analógica capturadas pela câmera digital: traços, cores, desfocagens, realismo do instante da captura, em que algo acontece. O Olho escava a tela. Além da captura, um insano trabalho de edição, extremamente complexo e lento. Tudo para deslizar num sentido fulgurante que escapasse do massacre do real.
* Esse texto é o resultado de uma conversa/depoimento entre Arthur Omar, Joanne Martins e Ivana Bentes. Texto final de Joanne Martins
outubro 1, 2007
16º SESC VIDEOBRASIL: Entrevista Arthur Omar
16º SESC VIDEOBRASIL
Entrevista Arthur Omar
Do hiper-formal ao super-informal ou Reconstruir a experiência no Oceano da Linguagem
1. A fusão, a montagem, a pulsação luminosa, o fluxo torrencial, a câmera lentíssima e o hiper-acelerado, a intensificação musical, as metáforas visuais, são algumas das figuras de linguagem nos teus filmes e vídeos. São essas as bases de um pensamento audiovisual e sensorial que você busca ?
Eu vejo três diferentes níveis de elaboração no meu trabalho. As figuras de linguagem organizam a imagem, formalizam, forjam a matéria seja do filme, vídeo, fotografia, são a forma de atingir o cérebro diretamente através dos órgãos do sentido. Sou fascinado por interferências e remixagens sonoras, ultra edição, fusão, tudo o que ultrapasse o imediatismo da imagem e o verbal. Palavra, depoimento, fala, para mim tudo é matéria para ser modulada. Não me interessa a transmissão de nada preexistente às imagens, mas a produção de uma experiência com a imagem, na imagem, como uma reação química cerebral, que só ocorre ali. Então, se na instalação Dervix, filmo a cerimônia Sufi num estilo absolutamente pessoal, não se trata de desejo de interferir na linguagem. Ali estou dialogando com a experiência direta do próprio Sufismo, com o êxtase, e fazendo com que o vídeo introduza contribuição para sua percepção. Deixando para atrás o cinema, com o meio vídeo descobri outra figura, o tempo real, o continuum, a deriva da imagem e meus últimos vídeos inéditos são ultra informais.
Num segundo nível teríamos não mais as figuras de linguagem organizando a imagem, mas um reagrupamento dos trabalhos a partir de orientações conceituais: a antropologia, o êxtase, o ato, o anti-documentário. São plataformas, bases que atravessam diferentes trabalhos.
E finalmente a questão central que sempre me ocupou, que é a relação sujeito e objeto, é uma reflexão teórica, metodológica mesmo (uma fenomenologia sui generis), investigada na prática dos trabalhos. Como produzir experiências perceptivas, posições subjetivas, explodindo os clichês? Esse é o maior desafio. Como me colocar em outro lugar, inventar posicionamentos, fugir dos lugares que reservaram para mim, inclusive pela crítica e pelos historiadores. É o mais vital e difícil.
2.Passagem entre os meios. O que diferencia e qual a linha de continuidade entre a tua obra de curta-metragens dos anos 70, os vídeos dos anos 80 e 90, a fotografia, a música e o desenho e as instalações atuais?
Vejo duas linhas, duas séries, nesses trabalhos , que muitas vezes se encontram, outras vezes se bifurcam em direções distintas: a desconstrução e o êxtase. Nos curtas dos anos 70, há um impulso desconstrutor, em cada filme buscava uma especificidade, algo singular, caro a percepção cinematográfica. Em Congo, por exemplo invertia as hierarquias e dava a palavra escrita, ao grafismo, ao letreiro mais importância que à imagem, desconstruindo a estrutura demonstrativa do documentário clássico e seu regime de verdades, propondo o anti documentário. Em Vocês, criamos um dispositivo artesanal que simulava a luz estroboscópica e fizemos um flicker filme político, sobre a iconografia do guerrilheiro e sua paródia, com uma metralhadora de pau e cuja pulsação luminosa (guerra e cinema, luz que fere a retina) interfere na própria sala de cinema, na arquitetura mesmo, fazendo a sala escura pulsar. É um videoclip avant la lettre, estruturado inteiro sobre uma versão de Bob de Carlo de uma música cantada por Michel Polnareff. Em Tesouro da Juventude trabalho o found footage, filmes encontrados no lixo de uma emissora de TV, e pela primeira faz penso em uma antropologia visual, lírica, com o uso desses pedaços de filmes antropológicos dos anos 20.
Para mim, cada filme deve conter uma plataforma de percepção. Como o Triste Tropico de 1974. Não é Cinema Novo, não é cinema marginal. É uma proposta de hipertexto, de intertexto radical, em 1974. Nos vídeos dos anos 80 a desconstrução mais radical cede ao fluxo, ao fluido, passagem do cinema ao vídeo, a idéia de êxtase, a captura da experiência, aparecem como uma reconstrução (do ceticismo a crença na imagem, de Congo a Coroação de Uma Rainha). Essa mudança tem a ver com minha formação musical, componho música eletrônica desde Tesouro da Juventude, penso o sampler como método, mergulho no oceano sonoro 24 horas. Desde 77 quando fiz a música de Tesouro em um dos primeiros sintetizadores analógicos que chegavam ao Brasil, penso música . Na minha última exposição, Zooprismas, de 2006, em que apresentei dez novas instalações de vídeo na Oi Futuro, no Rio, misturo as séries, com vídeos hiper editados e manipulados e esse fluir. Passo por elementos altamente formais mais visando reencontrar a experiência no oceano da linguagem.
Isso aparece também na minha contribuição ao documentário experimental. No longa Sonhos e Histórias de Fantasmas, por exemplo, os quilombos negros de Minas e o funk carioca se tornam não o tema de um documentário, mas os rostos, corpos, cores, formas, trazem expressões, sensações novas sobre o tema. Não de trata de lirismo ou poesia (nem do clichê da videoarte borrada em câmera lenta) mas criar uma iconografia nova, produzir conhecimento pelo sensorial, coisa que nenhuma sociologia ou antropologia pode fazer sem passar pelas imagens e sons. Etnografia estética. "Calei" os meus personagens para que o espectador possa experimentar a sua presença sensorial, descer a outros níveis. Essa é a minha contribuição e a minha diferença.
3. Como você situaria hoje três textos/manifestos. O Anti-documentário provisoriamente (1972), Kodak-gnose (1988), depois da fotografia digital, e Foto, Cine, Video: a questão do artista (BHZVídeo. 1992) sobre a passagem entre os meios? Que questões desses textos te mobilizam?
Todos esses textos são resultado de um corpo a corpo com os filmes, vídeo, fotografia, música. No anti-documentário trabalho para desconstruir o documentário sociológico, mostrando como documentar é demonstrar e ficcionalizar, usando inclusive as regras da ficção clássica. Em Kodak Gnose, investigo o êxtase na fotografia, a relação de exibição, exposição e sincronia entre fotógrafo e fotografado. No texto A Questão do Artista começo a pensar o artista digital tornado amador, não-especialista, trabalhando com o tempo real e o continuum espacial. Chego no informal. Se eu parasse de filmar hoje poderia ficar dez anos produzindo vídeos, fotografias, imagens, sem parar. Edito diariamente, pensar,editar,filmar, fotografar, samplear, desenhar virou um só fluxo.
* Entrevista para o catálogo do Festival Videobrasil 2007 em que Arthur Omar é um dos artistas convidados, com três instalações e dois programas de filmes e vídeos.
16º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil
30 de setembro a 25 de outubro de 2007
SESC Avenida Paulista
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