|
maio 12, 2007
I Fórum Nacional de TVs Públicas: Manifesto pela TV Pública independente e democrática
Encerramento do Fórum de TVs Públicas
Após quatro dias de debates, que reuniram 1.500 representantes do campo público de TV, profissionais e estudiosos do tema, o I Fórum Nacional de TVs Públicas foi encerrado na tarde desta sexta-feira numa solenidade que contou com as presenças dos ministros da Cultura, Gilberto Gil, e da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins; do secretário executivo do MinC, Juca Ferreira; do secretário do Audiovisual, Orlando Senna; do assessor especial do ministro da Cultura e coordenador do Fórum, Mario Borgneth; e do presidente da Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), Jorge da Cunha Lima.
Ao final do encontro, os participantes aprovaram a Carta de Brasília, documento que traz recomendações estratégicas para o planejamento das políticas voltadas para a construção e desenvolvimento de um sistema de comunicação e informação no país, por meio da articulação entre os canais públicos de televisão.
I Fórum Nacional de TVs Públicas: Manifesto pela TV Pública independente e democrática
Nós, representantes das emissoras Públicas, Educativas, Culturais, Universitárias, Legislativas e Comunitárias, ativistas da sociedade civil e militantes do movimento social, profissionais da cultura, cineastas, produtores independentes, comunicadores, acadêmicos e telespectadores, reunidos em Brasília, afirmamos, em uníssono, que o Brasil precisa, no seu trilhar em busca da democracia com igualdade e justiça social, de TVs Públicas independentes, democráticas e apartidárias.
Nove meses transcorridos desde o chamamento para o 1º Fórum Nacional de TVs Públicas, uma iniciativa pioneira do Ministério da Cultura, por meio da Secretaria do Audiovisual, com apoio da Presidência da República, podemos afirmar que este nosso clamor soma-se aos anseios da sociedade brasileira. Neste processo, o Brasil debateu intensamente a televisão que quer e pretende construir, quando estamos à porta da transição para a era digital.
Nesse período, superamos a dispersão que nos apartava de nós mesmos e descobrimos uma via comum de atuação, que tem como rota o reconhecimento de que somos parte de um mesmo todo, diverso e plural, complementar e dinâmico, articulado em torno do Campo Público de Televisão. Um corpo que se afirma a partir da sua heterogeneidade, mas compartilha visões e concepções comuns.
Os participantes do Fórum afirmam:
- A TV Pública promove a formação crítica do indivíduo para o exercício da cidadania e da democracia;
- A TV Pública deve ser a expressão maior das diversidades de gênero, étnico-racial, cultural e social brasileiras, promovendo o diálogo entre as múltiplas identidades do País;
- A TV Pública deve ser instrumento de universalização dos direitos à informação, à comunicação, à educação e à cultura, bem como dos outros direitos humanos e sociais;
- A TV Pública deve estar ao alcance de todos os cidadãos e cidadãs;
- A TV Pública deve ser independente e autônoma em relação a governos e ao mercado, devendo seu financiamento ter origem em fontes múltiplas, com a participação significativa de orçamentos públicos e de fundos não-contingenciáveis;
- As diretrizes de gestão, programação e a fiscalização dessa programação da TV Pública devem ser atribuição de órgão colegiado deliberativo, representativo da sociedade, no qual o Estado ou o Governo não devem ter maioria;
- A TV Pública tem o compromisso de fomentar a produção independente, ampliando significativamente a presença desses conteúdos em sua grade de programação;
- A programação da TV Pública deve contemplar a produção regional;
- A programação da TV Pública não deve estar orientada estritamente por critérios mercadológicos, mas não deve abrir mão de buscar o interesse do maior número possível de telespectadores;
- A TV Pública considera o cinema brasileiro um parceiro estratégico para a realização de sua missão e enxerga-se como aliada na expansão da sua produção e difusão;
- O Campo Público de Televisão recebe positivamente a criação e inserção de uma TV Pública organizada pelo Governo Federal, a partir da fusão de duas instituições integrantes do campo público e promotoras deste Fórum (ACERP e Radiobrás);
E recomendam:
- A nova rede pública organizada pelo Governo Federal deve ampliar e fortalecer, de maneira horizontal, as redes já existentes;
- A regulamentação da Constituição Federal em seu capítulo sobre Comunicação Social, especificamente os artigos 220, 221 e 223;
- O processo em curso deve ser entendido como parte da construção de um sistema público de comunicação, como prevê a Constituição Federal de 1988;
- A construção e adoção de novos parâmetros de aferição de audiência e qualidade que contemplem os objetivos para os quais a TV Pública foi criada;
- A participação decisiva da União em um amplo programa de financiamento voltado para a produção de conteúdos audiovisuais, por meio de mecanismos inovadores;
- Promover mecanismos que viabilizem a produção e veiculação de comunicação pelos cidadãos e cidadãs brasileiros;
E propõem em face do processo de migração digital:
- Garantir a construção de uma infra-estrutura técnica, pública e única, que viabilize a integração das plataformas de serviços digitais por meio de um operador de rede;
- A TV Pública considera que a multiprogramação é o modelo estratégico para bem realizar a sua missão;
- A TV Pública deve ser promotora do processo de convergência digital, ampliando sua área de atuação com as novas tecnologias de informação e comunicação e promovendo a inclusão digital;
- A TV Pública deve se destacar pelo estímulo à produção de conteúdos digitais interativos e inovadores;
- O apoio à continuidade de pesquisas com vistas à criação de softwares que garantam a interatividade plena;
- Os canais públicos criados pela Lei do Cabo devem ser contemplados no processo de migração digital, passando a operar também em rede aberta terrestre de televisão;
- A TV Pública deve estar presente em todas as formas de difusão de televisão, existentes ou por serem criadas;
- Trabalhar em conjunto com o BNDES para encontrar mecanismos de financiamento, por meio do fundo social do banco de fomento, da migração digital das TVs Públicas;
- Fomentar o debate sobre a questão da propriedade intelectual no universo digital, buscando ampliar os mecanismos de compartilhamento do conhecimento.
A força e a solidez do 1º Fórum Nacional de TVs Públicas são reflexos do envolvimento das associações do campo público de televisão brasileiro - Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec), Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCom), Associação Brasileira de Emissoras Universitárias (ABTU) e Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legislativas (Astral) - e das organizações da sociedade civil, que ao tomarem parte deste processo dele se apropriaram, difundindo-o e ampliando-o.
Ao cabo destes quatro dias de reunião, sob o signo da fraternidade e de uma harmonia construtiva que só se vivencia nos grandes momentos históricos, todos saímos fortalecidos.
Acima de tudo, emerge fortalecido o cidadão brasileiro, detentor de um conjunto de direitos que jamais se efetivarão sem a ampliação e o fortalecimento do espaço público também na televisão brasileira; Pelos motivos que se depreendem da leitura desta carta, é consenso, por fim, que o Fórum Nacional de TVs Públicas deve se transformar em espaço permanente de interlocução e de construção de políticas republicanas de comunicação social, educação e cultura, institucionalizando-se na vida democrática do País.
Brasília, 11 de maio de 2007
I Fórum Nacional de TVs Públicas
maio 2, 2007
Viver juntos ou lutar juntos? Convivência e conflito nas estéticas contemporâneas, por Barbara Szaniecki
Viver juntos ou lutar juntos? Convivência e conflito nas estéticas contemporâneas
Réplica de Barbara Szaniecki à crítica de Lisette Lagnado, originalmente publicada na Folha de São Paulo, no dia 18 de março de 2007
A proposta de introduzir numa Bienal o instante fugaz em que a potência política se alia ao gesto estético é de uma pretensão à altura da incompreensão da natureza desses fenômenos acontecimentais. Quais são os dispositivos teóricos e práticos que permitem apreender o evento estético-político? Como abrir espaço e tempo para a criação estético-política? Como transformar a instituição de espetáculo em um terreno de experimentação? Em outros termos, como deixar acontecer? Não seria justo afirmar que na última Bienal o imprevisível não deu as caras. Pois ele aconteceu sim na relação de força entre os artistas convidados e a instituição: a censura aos bloqueadores de celulares de Marcelo Cidade, ao projeto do mexicano Hector Zamora, e ao Guaraná Power do Superflex foi o melhor que a Bienal produziu. O embate político liberou a criação artística.
No entanto, a incapacidade de perceber a possibilidade aberta no conflito que se instaurava levou a curadoria a uma posição equivocada. Refugiou-se atrás do presidente da instituição que, preocupado com os constrangimentos que toda censura acarreta, disse que a instituição "não é o palco adequado para discutir relações de caráter comercial" (UOL. 04/10/2006). Ora, instituições como Bienais não estão no epicentro das relações comerciais - materiais e imaterias - que permeiam o campo da Arte, dos artistas e dos discursos que os legitimam? Por que em vez de travestir a instituição em palco de falsa convivência - num viver juntos - não assumi-la como palco dos necessários conflitos que podem provocar o acontecimento criador?
O evento Foucault e Negri ou como juntar força conceitual com militância política
Após duas décadas de sonolência, o ativismo social encontrou novo fôlego num ciclo de lutas globais: manifestações contra o G8, a OMC, o FMI e, desde 2003, contra a invasão do Iraque. Desde Seattle em 1999, houve um renascimento dessas lutas inspiradas em maio de 68, período no qual os jovens da Europa e dos Estados Unidos iniciaram um processo que contagiou o mundo. Infelizmente, na nossa América Latina, frente à irrupção de potência daqueles anos, os poderes constituídos efetuaram o golpe que inaugurou o ciclo mais terrível de nossa história recente. Terrível, mas resistente: Oiticica parangoleia, Clark experimenta, gerando uma anti-Arte. Retornando à Europa: naqueles anos de "imaginação no poder", contrariando intelectuais que, nas clausuras das academias, preocupavam-se com universais que não davam conta da ebulição social, Foucault, na França, e Negri, na Itália, conjugaram em suas mentes e em seus corpos fertilidade intelectual com ativismo político. Militantes de todas as classes sociais alimentaram suas práticas com as inovações teóricas desses autores.
Algumas dessas práticas tinham efetivamente grande força estética, apesar da inexistência de pretensão Artística. Participar da liturgia dos museus não fazia parte de suas preocupações. Entre as manifestações iconográficas daquele momento, destaco os cartazes do Atelier Populaire de Paris: em maio de 68, estudantes e operários realizaram inúmeros cartazes de grande impacto visual. Em sua luta contra as instituições do poder e do saber, certamente não cogitavam outro lugar de exposição que não fosse a rua. Não se tratava de uma "anti-arte", mas de uma tática ambígua de um "nem Arte, nem Anti-arte". Uma produção inclassificável porque sempre em movimento: nômade. Inclassificável porque sempre heterogênea: monstruosa. Deleuze e Guattari também contribuíram dando a esses expressivos militantes o vigor teórico de que precisavam; eles retribuíram, dando a força estética que esses autores desejavam. Estetização da política (não aquela promovida pelo fascismo e denunciada por Benjamim, mas uma estética produzida por muitos e reproduzível para muitos) e politização da arte avançaram juntos em 68.
Foucault morreu em 1984, mas sua "artilharia" teórica - forjada nas suas lutas públicas e privadas - continua disponível a todos que pretendem compreender os mecanismos de poder e resistência nos discursos. Negri reconhece a influência de Foucault que deve ser incluído entre os autores que traçam a linha "maldita" de seu pensamento, pensamento que é hoje referência para os movimentos globais e locais, sejam eles artísticos ou não. Em última instância, são esses movimentos (e não os vassalos das instituições) que poderão confirmar se essa artilharia teórica é potente ou não.
Nem Foucault e nem Negri debruçaram-se demoradamente sobre a Arte. Contudo, sua teoria e sua prática política prestam-se à análise da constituição desse campo específico. O simples dizer "o que é" e "o que não é Arte" é disciplinamento e controle do espaço e do tempo dessa curiosa forma de conhecimento. Seleção da área e do momento de exposição, seleção dos artistas, das obras e de seus suportes e, finalmente, seleção dos discursos que legitimam a todos. Como evitar uma construção autoritária? Como evitar, por exemplo, a delimitação eugênica de um campo que reduz a "jargão" toda teoria julgada inconveniente pela crítica despótica e arrogante? É evidente que o problema não pertence unicamente às Artes. Ocorre também no design. Pois a constituição de todo campo se dá através do exercício dos podres poderes constituídos, cuja característica fundamental é a redução da multiplicidade de discursos a um só discurso legitimado. É possível escapar a esse estéril exercício? Manter o campo aberto à relação com outros campos é um começo. Manter o campo aberto à relação com outros movimentos sociais, artísticos ou não, é uma boa continuação. Em todas e entre todas essas situações, a pluralidade de experimentações preparou o terreno para o possível acontecimento do novo: novos saberes, novos discursos, novas imagens, novos olhares.
Estética da multidão
Em Estética da Multidão, analisei processos que, por serem muitos, são avessos a toda forma de classificação e que, por estarem sempre em mutação, são avessos a toda forma de captura. O avesso do avesso do avesso do avesso: subversões, inversões, carnavalizações e semiofagizações propostas pelas lutas sociais globais no império contemporâneo. Mimetizando seus movimentos, transitei da teoria política às práticas estéticas experimentando, para além das aparências acadêmicas, um tateamento despretensioso dos terrenos estético e político que me permitiu evitar as certezas totalitárias de cada campo específico. Ao final do livro, baseando-me em Poder Constituinte de Negri (ou seja, a partir de um "fora" do campo constituído das Artes), abordei a subversão de um espetáculo midiático (a legitimação da guerra do Iraque pelas imagens catódicas da queda da estátua de Saddam em Bagdá) em evento multitudinário (a crítica da guerra através do irreverente tombamento de uma falsa estátua de Bush em Londres). Do ritual ao inesperado: procurei o léxico adequado para dizer o que até então era indizível ou mal-dito.
Nem "Arte social engajada", nem "Arte-ativismo" e nem "práticas Artísticas colaborativas" satisfaziam, na medida em que "aquilo", para mim, não era necessariamente Arte, nem necessariamente anti-Arte. Simplesmente essa questão não me interessava. O até então indizível foi designado como o ansiado acoplamento entre uma expressão estética e uma potência política, como o imprevisível encontro da estetização da política (mais uma vez, não se trata daquela que angustiava Benjamin, ou seja, de uma fonte única, totalitária e manipuladora de massas) com a politização da arte: uma estética de potência para além da representação do poder, uma estética da multidão.
Ora, essa estética constituinte, por ser um excesso sempre em mutação - um monstro, no maravilhoso vocabulário negriano - felizmente não "cabe" num livro. E ainda menos numa Bienal, pois o problema da última edição em São Paulo não foi certamente a quantidade de espaço disponível, mas a falta de qualidade na relação entre teoria praticável e prática teorizável. Coletivos de Artistas são eventualmente cooptáveis e cooptados, mas seus monstruosos processos de cooperação e o comum que deles resulta resistem vivamente na polis real e virtual. Esse monstro é a própria vida que não "cabe" nem mesmo dentro de um enorme pavilhão, orientado por duas interessantes linhas oiticicanas e sob um título espetacularmente sedutor. O projeto é louvavelmente ambicioso, os recursos são poderosos, no entanto o evento vital escapa por todos os lados pois não é possível reduzir as práticas sociais dos muitos para muitos a uma Arte de poucos para poucos. A vida resiste nos conflitos políticos dos quais procurei apreender as livres expressões estéticas nas ruas das cidades e nas páginas da internet. Nesses espaços comuns, a questão que se coloca à multidão contemporânea não é um "como viver juntos", mas um "como lutar juntos". Para conseguir abordá-la, só assumindo abertamente o conflito em vez de camuflá-lo numa hipócrita convivência.