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abril 7, 2006
Nuno Ramos x Vanda Klabin: Diálogo de aferição
Nuno Ramos x Vanda Klabin: Diálogo de aferição
Entrevista de Nuno Ramos a Vanda Klabin
Vanda Klabin - A sua carreira artística se inicia com questões da pintura, trabalhando sempre com situações limite, quase um rompimento com o plano bidimensional da tela. Planos volumosos, a matéria pictórica se comprime, passam a acumular diversos materiais, com seus desdobramentos no espaço, onde a forma jamais se desprende totalmente da superfície, jamais se deixa abstrair como um fenômeno ótico. Atualmente o seu trabalho aponta para uma retomada da pintura, cujo eixo se expressa através de uma relação sempre tensa com a idéia da matéria, que é densa, anárquica, nunca apaziguada. Esse seu processo de investigação constante sugere que você vivencia uma espécie de volúpia do prazer, uma pulsão do fazer e ao mesmo tempo uma forma de enfrentamento do mundo, uma necessidade interna de investigação, de uma interioridade que se constrói. A sua forma plástica de pensamento potencializa um sentido ético no discurso da sua obra?
Nuno Ramos - Fiquei feliz de poder retomar, ano passado, meu trabalho de pintura - há muitos anos não me dedicava com constância a ele. Para meu espanto, os quadros voltaram muito mais organizados e estruturados, mais distanciados daquela "action painting" meio pantanosa que os caracterizava de início. Acho que talvez meu trabalho esteja agora no pólo oposto às suas intuições iniciais - há formas e linhas por toda a parte e a matéria, que antes procurava correr solta, estrutura-se a partir de um desenho externo. É curioso, no entanto, como alguma coisa não formada, que sempre esteve no centro de tudo, permanece - só que não tanto na matéria, no tratamento da matéria (instável, molhada, quase viva, como antes), mas no todo do trabalho. Sinto que aquilo que eu procurava fazer em cada um de meus quadros do final dos anos 1980, começo dos 1990, agora devo fazer no meu trabalho inteiro - pinturas, desenhos, escritos, filmes, instalações etc. O chassi de madeira transformou-se neste conjunto de obras, buscando e adiando um sentido comum. A característica central do que eu faço - manter o trabalho vivo, numa espécie de formação inesgotável, que nunca se forma verdadeiramente - migrou da matéria para a arquitetura do trabalho. Por isso cada obra agüenta agora uma individualização muito mais nítida - porque o conjunto delas adia infindavelmente o todo a que cada uma delas pertence. Por isso preciso variar tanto e empregar recursos tão diversos - para que nenhum sentido predomine, dirigindo os demais.
VK - As suas esculturas de areia queimada, fundida e socada, de aparência frágil e instável, parecem guardar uma imediaticidade da experiência, reter o singular. Os elementos de dissolução parecem ser uma constituinte do seu processo de trabalho. Mas permanece um aspecto ambíguo, presidido por dois movimentos: saber se impregnar / saber se desmanchar. Você busca uma permanência, uma fixação do efêmero ou quer apagar a experiência da ação?
NR - Não faço nenhuma apologia do efêmero - aliás, detesto essa história de arte efêmera desde que a Mira Schendel me falava disso, há quase 20 anos. Trabalho muitas vezes com a matéria numa situação limite, que exige grandes cuidados e precauções. Mas nunca quis que meus trabalhos se desfizessem. Tenho, como tantos outros artistas, desenhos e indicações de montagem para cada um de meus trabalhos, que podem sempre ser refeitos. Procuro levar o trabalho ao instante imediatamente antes de uma grande transformação ou catástrofe - não tenho nenhum interesse na catástrofe mesma. Acho que procuro liberar uma grande energia para poder controlá-la. Neste sentido, há em tudo o que eu faço um desejo de reconciliação - como naquelas gravuras do Goeldi onde, depois da tempestade e da ventania, os bichos, as luzes, as coisas espalhadas e os homens desvairados parecem finalmente ter encontrado o seu lugar.
VK - Seu processo de trabalho tem como ponto de partida algumas obras literárias como as de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa entre outros e, atualmente, a sua produção literária, como também a musical, adquiriu uma grande força. A palavra passou a integrar a sua obra como um elemento substantivo dela, adquiriu uma potencialidade, um vocabulário e um universo próprio dentro do seu trabalho. Qual a importância da palavra, em detrimento da matéria, para a formulação dos fundamentos do seu trabalho?
NR - Acho que precisaria de meu trabalho inteiro, o que já fiz e o que farei ainda, para responder a esta pergunta. Há talvez uma intersecção entre matéria e discurso autêntica nas coisas que faço. Dei, literalmente, voz aos materiais, empastelei palavras com materiais viscosos, escrevi como se procurasse o peso de cada substantivo - esta relação impossível entre corpo e palavra está sempre ali presente, se apresentando e fugindo de mim (os quadros sendo a parte onde esta relação é menos densa). Sempre que produzo um trabalho de repente um verso, uma frase que falo alto, um pedaço de canção se dirige àquilo que estou bolando e redistribui as forças, impondo-se. Sem isto, sinto que o trabalho não funciona direito (a exceção, repito, são os quadros, tão orgulhosos que nem mesmo seus próprios títulos eles me dizem). O peculiar é que esta relação é sempre meio arbitrária e aberta, e nunca sei a qual cadeia de palavras pertencem as soluções plásticas em que estou mexendo. Não há quase nunca um horizonte simbólico, um fundo alegórico ou um tema que venha da ciência organizando tudo. Preciso encontrar essa relação a cada passo. Mas sinto que quando um mundo não cutuca o outro, perturbando a sua órbita, alguma coisa no trabalho se enrijece e perde força.
VK - Você sempre teve uma forma muito flexível e heterogênea de pensamento, que não tende a se especializar e que adquire um ritmo de expansão muito intenso pelo seu confessado interesse pela música, literatura e filosofia. Esse seu movimento expansivo pelas mais diversas esferas artísticas - pintura, escultura, desenho, gravura, instalação, land art, cinema, vídeo, música, literatura - independentemente da sua atividade como artista plástico, se encaixam entre si, articulando um todo, ou funcionam de forma autônoma?
NR - Como disse antes, acho que procuro manter os elementos com os quais trabalho em suspensão, como alguma coisa que fosse se anunciando indefinidamente, e por isso acabo diversificando bastante os meus recursos. Como artista, prefiro prometer a cumprir (a Arte não deixa de ser uma promessa auto-satisfeita) e por isso, sempre que sinto que realizei algo, tento desfocar, buscar energia em outra parte. Acho que não há nisso nenhuma astúcia culturalista (seria injusto atribuir isto a mim), ou exibicionismo lingüístico (eu não teria sequer condições técnicas para proceder assim). Sinto apenas que o progresso e o retrocesso, o futuro e o passado, as conquistas e as perdas parecem vertiginosamente entrelaçados. Diante disto, parar a frase no meio, não permitir que os materiais se estabilizem, identificar-se com a natureza e com a técnica, com o Carnaval e com as Cinzas, recuar para o momento que precede a ação, saber desviar do olhar de quem te solicita, aparecer desaparecendo, enfim, não se deixar formar inteiramente, talvez seja uma astúcia válida para construir um abrigo onde ainda dê pra ser um pouco livre. No meio de tanta gente sabida, de tanta palavra de ordem disfarçada, o melhor talvez não seja bater de frente, mas estar sempre em outro lugar.
Entrevista realizada em 20 de março de 2006.