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setembro 24, 2004
Troca de arquivo, por Angélica de Moraes
Matéria de Angélica de Moraes sobre a catalogação da obra de Lygia Pape, publicada originalmente no Caderno Mais! da Folha de São Paulo do dia 19 de setembro de 2004.
Troca de arquivo
Angélica de Moraes
Projeto Lygia Pape irá catalogar toda a produção da artista, figura central dos movimentos concreto e neoconcreto morta em maio passado
Agora é oficial. O legado artístico de Lygia Pape (1927-2004), um dos principais nomes da arte brasileira contemporânea, já tem uma instituição para cuidar dele. Protagonista dos movimentos concreto e neoconcreto, ela realizou uma obra de constante tensão criativa e enorme competência desde os anos 1950 até a atualidade.
O projeto Lygia Pape surge organizado em sua estrutura básica pela própria artista, que foi uma das fundadoras da entidade pioneira no Brasil nesse tipo de atividade -o projeto Hélio Oiticica. Antes de ficar gravemente doente (ela morreu em maio), a artista escolheu e convidou um grupo de pessoas ligado a diversos segmentos das artes visuais para auxiliar a família na administração da sua obra e na visibilidade dela no circuito cultural.
Uma dessas pessoas foi o diretor do Paço Imperial, Lauro Cavalcanti, seu ex-aluno na Escola de Arquitetura da Universidade Santa Úrsula (RJ) e que, desde 1976, trabalhou como assistente dela em vários projetos, inclusive na histórica mostra "Projeto Construtivo Brasileiro", curadoria de Lygia Pape e Aracy Amaral, realizada em 1977 na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
"Minha colaboração será limitada por minhas dificuldades de tempo, mas nunca por falta de admiração, carinho e afeto por Lygia", afirmou Cavalcanti. "A obra de Lygia é importantíssima e, ao contrário de seus colegas de movimento concreto e neoconcreto, tem sua parte principal após o desligamento desses grupos", observa. Cavalcanti avalia que "Lygia é a bola da vez no circuito internacional e, com certeza, terá sua contribuição melhor entendida e dimensionada tanto no Brasil como no exterior. O projeto Lygia Pape terá um papel fundamental nisso."
Outra integrante da diretoria do projeto, a professora e historiadora Maria Clara Amado, analisa que "a artista teve uma capacidade de antecipação das questões dos movimentos artísticos de que participou no Brasil. A participação homem/obra, que será referência futura na obra de Clark e Oiticica, já são uma realidade na obra de Pape". Ainda conforme Amado, "o projeto Lygia Pape vai cumprir um papel bem maior do que a sobrevivência do acervo da artista: trata-se da preservação de uma cultura representativa de nossa história, a obra de uma grande artista contemporânea".
O galerista português José Mário Brandão, da galeria Graça Brandão (Porto, Portugal), antigo amigo da artista, fez sua primeira individual póstuma na Europa, em junho. Ele conta que, "no ano passado, Lygia telefonou-me a convidar para integrar o projeto. Evidentemente que aceitei, consciente da importância dessa iniciativa. Infelizmente, ela já não acompanhará nosso trabalho, mas o seu desejo será posto em prática". Pela família, falaram ao Mais! as duas filhas da artista, Cristina e Paula. A professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e artista plástica Cristina Pape, que disse: "Acho a iniciativa importante, porque a obra de Lygia Pape deve ser preservada, dada a sua importância histórica, nacional e internacional. Parabenizo a todos que dela participam".
O projeto tem como presidente a advogada e fotógrafa Paula Pape, que concedeu a entrevista abaixo.
Quando surgiu a idéia de fazer o projeto?
A idéia surgiu concretamente quando eu fotografava as obras de Lygia para o Livro "Gávea de Tocaia", (ed. Cosac & Naify). Mas já havia uma preocupação anterior por parte dela. O Hélio não existia mais. Ela não tinha mais um "acordo" com ninguém. Eu era a pessoa mais próxima de tudo o que ela fazia e um dia coloquei claramente que ela não se preocupasse: eu cuidaria de suas obras. Ela ficou feliz. A Cristina, minha irmã, já tinha dito para ela que não queria participar do projeto ou de qualquer coisa nesse sentido. Queria seguir o próprio caminho, penso eu... Se mudar de idéia, será muito bem-vinda.
Quando o projeto foi estruturado juridicamente?
Tudo começou, de fato, quando percebemos que a sua saúde não andava muito boa. Entendi que ela queria uma coisa mais concreta. Então sugeri a criação formal de uma pessoa jurídica, com poderes de gerenciar o acervo na sua ausência. Foi quando larguei definitivamente tudo que fazia e passei a me dedicar inteiramente a Lygia e à criação do projeto.
Depois de muita pesquisa, o projeto finalmente chegou à sua forma perfeita, com a ajuda de Álvaro Clark (filho de Lygia Clark), que foi muito simpático e me deu uma orientação de como realizar o estatuto de acordo com o novo Código Civil. Lygia Pape chegou a constar como a presidente na primeira minuta do estatuto, mas logo depois seria internada no hospital. Foi uma pena... Queria muito que ela visse tudo pronto.
Qual foi a participação de Lygia Pape na organização desse projeto? Sabemos que ela tinha idéias muito definidas sobre esse tipo de trabalho e contribuiu de forma decisiva para a criação do projeto Hélio Oiticica, primeira iniciativa do gênero.
A participação de Lygia na organização foi crucial. As questões iniciais foram as mesmas da época do projeto H.O., não digo no sentido teórico, porém prático: onde guardar, como guardar, como manter etc. Agora existe uma forma muito mais concreta e objetiva, a partir do amadurecimento e da própria experiência obtida anteriormente. Ela tinha o grande desejo de que as obras ficassem eternamente na sua casa da rua Inglês de Souza, no Jardim Botânico [no Rio de Janeiro]. Queria transformar o local em pólo cultural. O projeto da casa foi dela e realmente seria o local perfeito. Vamos tentar obter recursos para realizar esse sonho.
Lygia não era contra a família tomar conta de um legado artístico sozinha?
Lygia era absolutamente contra. Aliás, esse ponto de vista ela defendeu sempre. Ela achava que a participação de pessoas de fora da família sempre enriquecia a obra, não deixando de lado o vigor do diálogo com ela. No final, ela já aceitava a participação da família como um combustível a mais no processo, e não como uma coisa que fechasse a obra.
Creio que a minha intervenção e convivência foi mudando um pouco seu ponto de vista. Foi um processo difícil, mas foi aceito. Ela pôde perceber algo mudando na administração desses acervos. Prova disso foi que, há um ano e pouco, ela colaborou novamente com o projeto H.O., fazendo uma carta de indicação a pedido de César Oiticica Filho. Ela sempre ajudava quem a procurava. Era uma pessoa extremamente generosa.
Quais os critérios de escolha utilizados para chegar aos integrantes da diretoria do projeto? São pessoas representativas de diversos segmentos das artes: dirigente, historiadora de arte, crítica de arte e galerista. A intenção foi criar um amplo leque de diálogo do projeto com o meio?
Foi a própria Lygia quem escolheu os integrantes. Ela convidou a crítica de arte Esther Emilio Carlos, Lauro Cavalcanti (diretor do Paço Imperial), Maria Clara Amado (professora universitária que defendeu tese de mestrado sobre a obra de Lygia Pape) e José Mario Brandão. Ela começou a pensar quem seriam elas há uns dois anos. Essas pessoas, inclusive, se dão muito bem comigo... Nada mais natural que chamasse pessoas de que gostava, conhecedoras da sua obra e que estiveram muito presentes em sua vida. Coincidentemente, cada uma delas atua mais em uma dessas áreas descritas. Acho que ficou bem interessante.
Há quanto tempo você vem trabalhando na organização da obra dela? O que já foi possível fazer nesse período e o que falta para que o acervo fique preservado com segurança?
A organização, no sentido literal, começou em 1998. Antes, por volta de 1994, eu já a ajudava em tudo. Fazia fotos das obras que iriam viajar, embalava as coisas, arrumava as prateleiras... Ou seja, pegava no pesado mesmo... Embora, claro, tudo faça parte do mesmo processo. Conseguimos catalogar, posso dizer com certeza, todo o acervo dela. Faltam poucas obras, muito poucas. Fizemos até documentos para cada obra, autenticados por ela, que aceitou assinar diversos trabalhos. Ela não gostava de assinar nada... As que não assinou, ficaram como documento.
Como era a convivência na organização do material?
Era uma convivência muito natural. Conversávamos muito. Era um diálogo permanente. Tínhamos um objetivo: organizar a sua obra. Era meio velado... Não se falava nisso toda hora, mas eu sentia que ela gostava do meu interesse e participava ativamente. Tinha uma energia fantástica e nunca reclamava ou se lamentava disso ou daquilo. Foi a pessoa mais corajosa que já conheci. Então fui aprendendo o que era o quê, os movimentos, as teorias desses movimentos, as obras, como elas surgiam ...Pude perceber como se dava o seu processo criativo, o "faber" artístico... Ela me dava verdadeiras aulas de história da arte sem ser explícita... Foram momentos muito bons, delicados e inesquecíveis.
Quais os objetivos mais imediatos do projeto?
O projeto pretende ser um paradigma das idéias de Lygia. Um modelo de referência de sua obra. Além de ter os sócios colaboradores, terá um conselho ainda não definido. É algo a ser pensado mais adiante. Outros objetivos imediatos são terminar a organização do acervo, ou seja, arrumar a parte documental, fazer a restauração de vários filmes e fotos, organizar as obras em locais adequados e, principalmente, conseguir um local definitivo para o projeto.
Quais os objetivos a médio e longo prazos?
São muitos. Principalmente divulgar a obra de Lygia no Brasil e no exterior. Esses dois objetivos andam juntos. A proposta é que, depois da organização estrutural do projeto, se realizem cursos e palestras com curadores e professores convidados, reedição das performances e a edição de alguns livros que ela tinha em mente. Um deles será dos poemas que escreveu.
Há intenção de exibir esse acervo em caráter permanente em algum museu? Como você planeja dar visibilidade constante à sua obra?
Isso, eu não sei. Ficar trancada não faz muito o "estilo Lygia Pape". Creio que a própria obra dirá o que fazer. Essa coisa de planejar muito é complicado, acho mais interessante deixar as coisas acontecerem.
Convites para expor não faltam, e creio que a obra de Lygia ainda tem muito para mostrar, tanto no Brasil como no exterior. Coincidentemente, a maior parte das pessoas interessadas na obra que têm me procurado ultimamente é estrangeira. É importante perceber que teremos boas exposições de Lygia não só aqui mas em outros países também.
Quais os próximos compromissos internacionais de exibição de obras de Lygia? Há alguma grande exposição retrospectiva em breve no Brasil? Ou você pensa ser essencial primeiro consolidar ação do projeto?
Temos a participação de Lygia na exposição coletiva itinerante "Tropicália", com curadoria do Carlos Basualdo, uma mostra em 2005 em Bordeaux (França) e uma individual e uma homenagem que serão feitas em Munique (Alemanha), com os filmes realizados por ela, ainda neste ano. Por enquanto, é só. Preciso parar um pouco para fazer o essencial: terminar a organização do projeto. Uma retrospectiva irá acontecer no momento e nos locais certos. Não tenho pressa. Espero ter condições de organizar tudo com muita calma.
Lygia tinha uma convivência muito estreita com seus alunos e com as novas gerações. Grande parte da vitalidade de sua obra deve-se a essa permanente curiosidade, a esse constante diálogo com os jovens. Há intenção do projeto em promover a continuidade desse contato?
A idéia será sempre manter esse diálogo, para que os jovens possam conhecer melhor a sua obra e dela tirarem proveito. A idéia é ter um local de fácil acesso para consulta, além de promover eventos em conjunto com jovens artistas. É importante manter essa troca que ela sempre apreciou. De que forma ou que estratégias serão utilizadas, não sabemos ainda. Mas estão todos convidados a participar, cada um como puder, tanto os artistas e curadores jovens quanto os já estabelecidos. Não pretendemos fazer do projeto uma ilha. Lygia Pape é um oceano.
Entre o Paraíso e o Inferno
Texto de Reynaldo Roels Jr. para a exposição "Entre o Paraíso e o Inferno", de Walter Goldfarb, no Centro Cultural Correios, entre os dias 29 de setembro e 31 de outubro de 2004.
Reynaldo Roels Jr.
Apesar da velha idéia de que os problemas da pintura são os problemas da pintura, e apenas isso, paira sempre uma dúvida a respeito destes problemas: afinal de contas, quais são eles? Claro, já houve várias respostas, a começar pelo problema da representação; passando pela famosa disputa, velha de quase dois séculos, entre o desenho de Ingres e a cor de Delacroix; pelo "olho do pintor" - Monet (herdando em parte as teses, caras a Ruskin, sobre o olhar inocente) -; pelo arranjo decorativo de formas e cores - Maurice Denis e, depois, Matisse -; pela estrutura bidimensional do suporte - Cézanne, seguido pelos cubistas -; pelos delírios do inconsciente - surrealismo, naturalmente -; até chegarmos à pintura dos anos 1980, que reaparecia depois de duas décadas de abandono com a idéia não muito segura mas infinitamente positiva de que a pintura é a pintura, e isso é tudo.
Se a posição bem mais sóbria de Greenberg, em defesa da integridade do plano pictórico, continua sendo pertinente para dar conta de boa parte do que se passou na primeira metade do século XX, há muito que permanece não-resolvido, e não só porque a arte de hoje se tenha distanciado da pintura. Ao que parece, pelo menos. Permanece o fato (ainda que em grande parte negligenciado) de que os problemas da pintura não correspondem a nada de realmente concreto; a priori, eles são uma abstração, e tão-só uma abstração. Eles serão todos aqueles que o pintor puder, legítima e convincentemente, formular. Qualquer que seja a maneira pela qual um pintor decida interrogar a pintura, esta maneira será apenas um problema da pintura, um dos muitos permitidos ao artista: pois problemas da pintura são interrogações em torno de sistemas de valores, não coisas preexistentes que se possam procurar e encontrar na materialidade do mundo ou da arte. Pode haver casos onde o questionamento seja infundado, ou ilegítimo, ou simplesmente pouco adequado; mas isso não altera em nada o fato de que podemos ter tantos problemas da pintura quanto sejam os artistas que lidam com a pintura. O prospecto pode não ser simples, mas isso é algo com que sempre teremos que enfrentar: não há tese capaz de reduzir a complexidade do real à sua própria lógica.
Também é uma idéia quase que do senso comum a de que, depois dos anos 1960, a pintura recuou para os fundos do cenário artístico - os anos 1980 sendo um "interregno", uma exceção (o que naturalmente prova a regra ) - , de forma que pintores novos sempre são olhados com certa suspeita. Tal em parte é verdade, embora ainda estejamos muito distantes da "morte" definitiva da pintura. Talvez nenhuma outra forma de arte tenha tido tantas certidões de óbito ao longo dos últimos cem anos, mas de uma ou outra maneira a pintura sempre conseguiu se reafirmar como uma das heranças mais ricas que o Ocidente construiu para si mesmo e que Modernismo levou quase ao máximo antes de nos legar. O que ocorreu de diferente nas últimas cinco décadas foi que o lugar hegemônico que a pintura teve durante séculos, na prática dos artistas tanto quanto nos textos e na história de arte, tornou-se insustentável, indesejável mesmo, e a antiarte, com sua rejeição do objeto de arte como objeto, recusou quase todas as formas que punham ênfase em sua materialidade, fosse ela a pintura ou qualquer outra coisa (desenho ou escultura, para ficarmos só nestas). Com isso, e em oposição à especificidade estrita com que a obra de arte era antes tratada, assistiu-se ao aparecimento do objeto "genérico" no cenário da arte, ou até mesmo, em casos mais radicais, de objeto nenhum. E durante o último meio século a antiarte quase invariavelmente deu a última palavra sobre o assunto. Como sugeriu Danto, a arte contemporânea se tornou filosofia da arte. Ou, pelo menos, a arte mais pertinente que surgiu nos últimos tempos tendeu a ser uma forma extremamente refinada, e por vezes etérea, de reflexão sobre si mesma, seus objetivos e seus métodos.
Dito isto, o que podemos é apenas reconhecer que foram poucos dentre os artistas de interesse surgidos nos últimos dez anos que assumiram a pintura como meio privilegiado. E é de exatamente dez anos de que trata esta exposição. Uma produção que começa em 1994 e se estende até hoje. E que, ao longo deste tempo, em vez de caminhar para um "amadurecimento" convencional da pintura, Walter irá complexificar e sofisticar os procedimentos, em uma constante problematização da atividade do pintor, em suas práticas, em seus pressupostos e naquilo que se crê ser sua história.
Em uma passagem breve e infelizmente pouco desenvolvida, Clement Greenberg se refere à "produção de imagens" em oposição à pintura , produzindo uma distinção que, se quase totalmente desconhecida pela historiografia tradicional da arte, pode ser suficientemente útil para nos ajudar a dar conta de boa parte dos destinos da produção artística da última metade do século passado (produção que Greenberg, aliás, preferiu ignorar). A distinção pode ser usada também para entender um pouco da ambivalência da obra de Goldfarb e do modo como sua pintura institui múltiplas formas de "ansiedade" (em que pese a aparente positividade dos trabalhos).
Mais do que simplesmente definir a distinção entre uma imagem e uma pintura (Greenberg fala apenas da exacerbação da "consciência do plano", sem que tal seja suficiente para esgotar o tema), o importante é que a diferença pode ser feita de imediato, e ninguém jamais tentaria analisar, por exemplo, uma miniatura persa dentro dos mesmos critérios utilizados para uma paisagem holandesa do século XVII. Ambas são imagens pintadas - e ambas podem ser ou não ser "grande arte" -, mas apenas a última se enquadra dentro da tradição da pintura. A primeira é resultado de um trabalho de mestre, que visa à perfeição; a segunda, mesmo vinda de um artista menor, já se dá dentro de uma outra estrutura mental, em que a perfeição do artesão cede lugar à grandeza de propósitos do artista, o virtuose no lugar do mestre. É a noção da "grande pintura" (a Grand Manner de Reynolds), uma tradição que o Ocidente desenvolveu e sobre a qual se debruçaram alguns dos maiores intelectos que a história registrou. Foi esta a tradição que, sem maiores sofrimentos, foi subitamente posta de lado pelos artistas a partir de meados do século passado: assistiu-se ao retorno da "produção de imagens" em detrimento da pintura, processo que, longe de representar o retorno às formas anteriores de artesania, pré-modernas e pré-intelectuais, teve como objetivo radicalizar ainda mais o projeto de intelectualização do artista.
Seriam necessárias múltiplas e longas explicações para se dar conta do processo de modo satisfatório. O que importa indicar aqui é a impossibilidade, clara para aqueles que desde então se defrontaram com o objeto "pintura", de se defrontar ingenuamente com aquela tradição, sem que esse enfrentamento se fizesse sob a forma de um confronto, um questionamento intenso do início ao fim. Hoje, fazer pintura é de alguma maneira dissecar tanto a pintura quanto a idéia de pintura e, para fazê-lo, muitos não hesitam em voltar à "produção de imagens".
À parte a cena bíblica, o Dilúvio de 1994, que abre a mostra de Goldfarb e cujo interesse está baseado no contraste entre os meios "expressivos" herdados da década anterior e uma narrativa relativamente simples, é nos trabalhos imediatamente seguintes, a partir de 1995, que se começam a observar os "trincamentos" que irão orientar as preocupações futuras, prosseguindo até hoje. Das possibilidades pictóricas da escrita - os caracteres hebraicos (que também estabelecem um diálogo com a origen e a história do artista), até a problematização da pintura como história, a problematização de suas imagens (abertamente citadas e apropriadas), e a problematização de seus meios (onde o material é também submetido a um tensionamento adicional). Destes últimos, o mais evidente é a substituição da tinta pelo carvão, Goldfarb fazendo este último um legítimo material de pintura (tradicionalmente associado ao desenho, o carvão deverá desaparecer por trás da "verdadeira" pintura). E se o carvão tem essa proeminência no trabalho, o uso não é tudo, dando margem a manipulações várias: ele pode ser submetido a lavagens, pode ser subseqüentemente retrabalhado e lavado mais uma vez, como também pode receber reforços posteriores. E a exploração foi estendida a alguns outros procedimentos, como a colagem, o bordado, a queima, a talha em madeira e, já há algum tempo, a associação de objetos à pintura.
Além disso, a tela, por vezes deixada em branco em grandes áreas, aponta para um momento anterior do processo, quando a pintura era tratada ainda de maneira um tanto arcaica, mais como espaço para conjunção (conjuração?) de imagens do que como espaço pictórico em seu sentido estrito (e aqui não se trata de um problema de técnica, e sim de conceito). Naturalmente, não será a utilização de todos estes procedimentos o que irá determinar o que seja uma pintura, embora já tenham sido usados para fazê-lo: eles determinavam um método, e é sobre este método que as atuais pinturas de Goldfarb se debruçam.
Exceto pelos espécimes encontrados em museus da Antigüidade e da Idade Média, e a despeito de ser um fenômeno que surgiu bem cedo na história, já há algum tempo não se está normalmente atento à presença do bordado na arte e, na realidade, ele não é geralmente objeto de muita atenção para além de alguns casos mais famosos. Seu lugar caberia mais naturalmente em coleções de instituições de artes e ofícios, e ainda assim a maioria seria vista com desconfiança como exemplos de objetos de luxo. Talvez não tanto a Tapeçaria de Rainha Matilda - tanto um documento quanto uma peça de arte - ou a série da Dama com o Unicórnio - este último exemplo ao menos apreciado por sua sutileza visual. Ambas são exceções óbvias a esta situação. De qualquer maneira, o bordado é visto, na maior parte das vezes, como ou uma artesania menor ou como um passatempo elegante para senhoras nas suas horas de lazer - em ambos os casos, só a memória vaga de um mundo velho e perdido.
O quadro mudou, claro, a partir do momento em que arte se distanciou o suficiente de suas origens manuais e se impôs como atividade intelectual. Daí em diante (como os artistas do século XX mostraram bem claramente) os "meios artísticos tradicionais" não são nenhuma garantia de um objeto qualquer ser ou não ser artístico. Se a arte não é mais produção de objetos para serem apreciados enquanto objetos, tampouco podem importar muito os materiais escolhidos e os meios empregados pelo artista, contanto que ele tenha dito o o que tinha a dizer. E o emprego do bordado pode, em várias situações, se justificar plenamente diante do olhar desconfiado do espectador.
No caso das pinturas de Goldfarb, o bordado surge "naturalmente" - ele mesmo o declara enfaticamente - como algo ver com seu impulso para o trabalho manual, o "fazer disto com as próprias mãos." Isso faz sentido, claro, mas não de todo. Em primeiro lugar, há o problema de se conceber o bordado como parte de uma pintura (e o bordado, em seu sentido estrito, não é um "material" de pintura: a obra de Leonilson que o emprega opera em outro registro). O que conta nesse processo é a idéia de desfazer a trama das telas e incorporar os fios novamente dentro da própria pintura, como método de construção da imagem. Isto ele conseguiu com bastante propriedade. De fato, não constitui para ele nenhum grande problema o fato de nenhuma de suas pinturas ser feita com materiais tradicionais. Mais importante, entretanto, é seu processo de conceber a pintura tanto como desconstrução quanto como reconstrução, seja ao processar as imagens, seja ao dar a elas existência material no ato de fazê-las. É como se ele tivesse que pôr o mesmo material para operar em dois sentidos, que ele desfaz para imediatamente refazer de outra maneira.
Mais que isto, os trabalhos de Goldfarb estabelecem uma relação complexa entre modos esperados e inesperados de construir a pintura. Todos os meios materiais para se executar uma pintura são na realidade um modo de contar uma história, e um modo muito pessoal, em que a tapeçaria adquire um pouco o mesmo papel que teve no passado. Começando com sua própria história (incluindo meios-tons psicanalíticas), ele tece seus comentários sobre a história de arte em um jogo sofisticado entre subjetivo e objetivo, seus próprios fantasmas e o peso de uma tradição que repousa nos ombros de todo artista.
Aquilo que poderia não ser mais do que um conjunto de simples memórias privadas (Rapunzel e o leite da manipuladora) é tão atravessado por referências à história da arte que a auto-referência passa a significar outra coisa. Seu ponto é fazer com que uma história privada faça sentido ao ser amalgamada a parte de uma outra história, esta última pública. E assim enfrentamos imagens tão estranhas quanto os pentagramas vazios em O judeu errante, a partitura de Tanhauser - sem os valores de duração das notas - em Difficile Liberté ou a transcrição do texto, e tão somente do texto, da narrativa do Graal em Lohengrin (essas duas últimas sendo citações das óperas de Wagner). Podem-se acrescentar a estas a mistura de mapas ao alfabeto hebreu e nomes inscritos a ferro e fogo sobre a lona crua (Kal Nidre), que exibem uma delicadeza que se sobrepõe à aparente crueza dos meios.
Naturalmente, questionar a pintura é questionar os pintores, o que quer dizer questionar as respostas anteriormente dadas por outros, respostas que pesam nos ombros de qualquer artista. E Goldfarb tem os questionado sob muitos pontos de vista, geralmente citando-os de maneira direta, às vezes com resultados surpreendentes: gravuras do Renascimento, Leonardo, a Dança de Matisse ou as estruturas geométricas de Mondrian. A tarefa termina por ser a de produzir significados novos a partir de imagens antigas, misturando-os freqüentemente a outros conteúdos culturais que permanecem em sua imaginação: novamente a música de Wagner, o drama de Goethe ou a lenda do Judeu Errante, o Golem de Praga.
Em outras telas, como Lição de Corte e Costura I, a Dentellière de Vermeer está bordada em plena Lição de Anatomia de Rembrandt, uma imagem de mulher surpreendida no ato de bordar a si mesma na tela. Mais significante, talvez, sejam os objetos aplicados a fragmentos do Casal Arnolfini de Van Eyck (A psicótica na praia sem os gatos e Édipo sem a manipuladora). Reduzida a suas silhuetas mais sumárias - perfeitamente reconhecíveis, no entanto - , a pintura flamenga recebe a interferência de espelhos metálicos circulares (convergente e convexo em cada um dos casos) que duplicam - refletem - , como espelhos de verdade, o espelho pintado do original. Silhuetas são algumas das imagens mais antigas jamais realizadas pelos homens; e entre elas e Leonardo se estende um longo percurso após o qual (com muitos embates, desvios e recuos), finalmente, fixaram-se para nós as noções de pintura e de arte. Como um mágico - um dos atributos já aplicados aos artistas -, a silhueta (como em Fantasia) faz emergir do vazio o que muitos poderiam considerar o protótipo do ato inaugural da arte em seu o duplo registro de pintura e de produção de imagens.
Ou, ainda, o contraste deliberado entre o Enterro do Conde de Orgaz (um detalhe, em carvão e apresentado de cabeça para baixo) e uma imagem bordada reproduzindo uma cena religiosa medieval: uma das pinturas mais sofisticadas produzidas no Ocidente servindo de contraponto a uma imagem que, para nós, pode parecer apenas arcaica. São os mesmos processos e pressupostos que estão na base das elaborações mais recentes - em uma atitude aparentemente paradoxal, que pode lançar mão desde figuras de desenhos infantis até fotos de corpos nus encontrados em revistas pornográficas. Como Goldfarb já havia feito com a intimidade das mulheres de Boucher - as toaletes, cenas íntimas e inesperadas que o pintor francês tornou públicas com tamanha delicadeza. Só que, aqui, ele as relacionou a objetos que (penso) podem e devem funcionar independentemente. E, tridimensional que sejam, há neles elementos suficientes que apontam para as atividades e os interesses do pintor - quando mais não fora o uso intensivo de superfícies reflexivas ou de algum modo exacerbadas.
As telas mais antigas são algo como uma passagem: da narrativa pessoal a uma narrativa mais ampla; da idéia de pintura como afloramento do sujeito a um outro patamar de visão, em que o embate se dá não mais consigo mesmo e com sua própria história (com seus próprios fantasmas), mas com uma história diferente e que em geral é vista apenas como modelo, não como problema; uma história que, diferentemente daquela de que em geral queremos nos liberar (a "mão morta do passado"), é necessário incorporar sem dela herdar todo o peso. É uma passagem em que se transforma o sentimento trágico que acompanha a confiança da juventude na suspeição indiferente da maturidade: veja-se o contraponto entre a festividade explícita nos vários teatros e danças, de um lado, e as muitas danças da morte, de outro, entre o inocente e o lascivo, a pureza e a corrupção: o ceú e o inferno só existem por oposição um ao outro, mas coexistem lado a lado e, no fim, isto não faz nenhuma diferença. Um grande teatro (de fantoches?) onde os corpos - mas também as imagens - desempenham papéis apaixonados mas inúteis, para voltarmos a um certo existencialismo.
Obviamente, no caso das citações de Goldfarb, temos que lidar com um certo tipo de paródia - não só o novo debruçado (analiticamente, não afetivamente) sobre o velho, apenas para comentá-lo, mas principalmente para restabelecer um gesto herdado, e assim fazê-lo novamente atual, ou melhor, para submeter a um teste a própria herança recebida e aceita. Às vezes, suas paródias podem mesmo parecer excessivas, mas na realidade não o são - como em Lição de Corte e Costura I, onde o excesso que parece afligir o título é dirigido em verdade, não para as imagens citadas, mas para a própria consciência que Goldfarb tem da ambigüidade de seu truque. No caso, a citação só é parodística como meio de garantir que, na cultura Ocidental, a tradição não seja tomada pelo valor com que ela se vende, mas seja estar submetida a um interrogatório intelectual rigoroso. De fato, na pintura de Goldfarb, a citação é um modo de colocar a tradição sob o teste mais severo, e assim, termos a possibilidade de dizer que, afinal de contas, em vez de ser um defunto inequívoco, a pintura ainda pode desempenhar seu papel principal, a ela atribuído há pelo menos quinhentos anos, o de ser um instrumento de conhecimento. Não importa o que um artista defina como "problema da pintura".
Arte em revista | para todos
Comentário de Débora Monnerat à exposição Arquivo Geral, em andamento no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A arte tem que ser para todos. Se não for assim, perde-se a oportunidade de entendê-la tal como ela é. Não há nessa afirmação nenhum posicionamento romântico ou utópico, mas a constatação da dimensão real de toda arte.
Toda arte tem que ser vista. Não apenas por alguns, mas por muitos. E, se possível, por todos. Mas para isso é necessário um esforço, uma vontade e, sobretudo, um objetivo. Escrevo isso enquanto vejo a exposição Arquivo Geral realizada no Jardim Botânico. Quem esteve na abertura desta mostra percebeu que é possível (e muito bom) reunir e unir em torno da arte, não apenas artistas, galeristas, críticos e colecionadores do Brasil e exterior, mas também pessoas das mais distintas áreas. No dia seguinte à inauguração, as visitas continuaram constantes e variadas. Eu creio que essa brisa boa - e tipicamente carioca - que senti diante do movimento gerado pelas inaugurações, seminários e eventos agendados para esta semana, também foi percebida por muitas pessoas. Alguns podem até dizer que isto é pouco, mas são ações como esta que nos permitem vislumbrar um futuro mais interessante para as artes plásticas no Rio de Janeiro.
Ações simples podem ser profundamente transformadoras, mas precisam de continuidade, investimento, apoio. E respeito também. É estranho constatar como o Rio - cidade onde a natureza produz imagens incrivelmente belas, desconcertantes e próximas de quem vive ou passa por aqui - é tão carente de debate, espaço e conhecimento sobre artes plásticas. Mas mesmo com tantas dificuldades, não dá para negar: se a arte que é para todos fosse vista por todos, o Rio seria muito mais feliz.
setembro 20, 2004
Movimento carioca
Matéria de Adriana Pavlova, publicada originalmente no Segundo Caderno do jornal O Globo no dia 19 de setembro de 2004.
Adriana Pavlova
Para os mais desavisados pode até parecer uma desforra à carioca do rega-bofe artístico de primeira que vai acontecer em São Paulo a partir do próximo domingo. Só parece, apressam-se em dizer os galeristas que estão por trás do "Arquivo geral", evento-exposição carioca que pega carona na 26 Bienal de São Paulo para atrair olhares estrangeiros para a cidade. A mostra que já nasce histórica porque nesses anos todos de bienais de artes plásticas na cidade vizinha nunca houve nada do gênero por aqui é apenas a ponta de um movimento que só tende a crescer no Rio durante toda a semana, divulgando artistas brasileiros, sim, para as personalidades de fora, mas oferecendo também uma espécie de bienal à carioca para o público da cidade.
Revanche por causa de São Paulo? Longe disso. Estamos todos nos ajudando explica a marchand Heloísa Amaral Peixoto, da HAP. Quanto mais eventos aqui e lá, é bom para todo mundo. Além disso, quem vem de fora vai ver que não é só um reduto, mas muitos juntos. Os próprios colecionadores daqui estão animados com a idéia e ajudando a divulgar. Caso de Gilberto Chateaubriand, que já está no grupo de apoio. Tenho certeza que todo o movimento aqui vai repercutir na Bienal em São Paulo.
Donos de galerias querem retomar papel do Rio nas artes
À espera de um grupo de cerca de 70 curadores, críticos, colecionadores de arte de todo o mundo que antes de chegar a São Paulo passam pelo Rio, o "Arquivo geral" abre suas portas amanhã à noite em pleno Jardim Botânico. São 42 artistas escolhidos a dedo por seis galerias da cidade em exposição num charmoso galpão o Arquivo Geral reformado e no meio do verde botânico. Um mistura digna de seleção brasileira das artes encabeçada por Hélio Oiticica e Amilcar de Castro e que tem também Daniel Senise, Miguel Rio Branco, Nelson Leirner, José Bechara, Anna Bella Geiger, Antonio Manuel, Gonçalo Ivo e muitos outros, que, em alguns casos, criaram obras especialmente para a ocasião. A exposição, que tem apoio da Secretaria municipal das Culturas, é apenas o começo.
Tenho certeza de que a mostra será uma grande retomada para que o Rio volte a ser o celeiro de arte que sempre foi, mas que, por causa de sucessivas crises econômicas, entregou esse poder aos paulistas diz a marchand Silvia Cintra, da galeria que leva o seu nome. Se pelo menos 80 por cento dos mais importantes artistas do país vivem na cidade, não dá para não usar isso a nosso favor.
Pelo menos todas as seis galerias envolvidas na preparação do evento também tiraram do baú seus próprios acervos para atrair a atenção dos estrangeiros poderosos e em alguns casos até lançaram mão de convidados de fora, caso da Lurixs, em Botafogo, que além de abrir mais uma sala de exposição apresenta o trabalho do português Daniel Blaufuks e do francês François Morellet. As outras galerias estão espalhadas pela cidade como a HAP no Jardim Botânico, Anita Schwartz na Barra e no Leblon, a Silvia Cintra e a Laura Marsiaj em Ipanema, e a Mercedes Viegas na Gávea. Uma reunião histórica, como lembra a veterana Anita Schwartz:
É um momento de virada. Há 20 anos estou à frente de uma galeria no Rio e nunca vi um movimento como este e, principalmente, evento que aproveitasse a programação da Bienal de São Paulo para lançar o Rio internacionalmente. Tenho certeza de que todos vão ganhar: público, galeristas mas, sobretudo, os artistas que precisavam ser lembrados além de São Paulo.
O roteiro da minibienal à carioca prossegue ainda com os eventos relacionados entre si: o mesmo Morellet terá uma mostra inteira no Centro de Arte Hélio Oiticica, enquanto no Arte Sesc (Flamengo) será inaugurada a mostra "Reprodutores de sentido", com exemplares da arte contemporânea portuguesa. Esta última, que faz parte do evento "Brasil-Portugal: uma ponte para o futuro", antecipa a participação lusitana na Bienal de São Paulo, reunindo estrelas das artes daquele país. A turma de curadores/artistas/críticos/colecionadores portugueses que anda por aqui também vai engrossar a lista dos convidados do "Arquivo geral".
O que a gente sentia até a última bienal é que os convidados de fora estavam muito interessados em conhecer a produção carioca mas tudo acontecia de uma forma muito isolada. Os coitados até vinham para o Rio, encaixando a cidade no roteiro da viagem, mas aqui precisavam ficar pulando de galeria em galeria, sem nada muito organizado. Perdiam eles e nós também afirma Heloísa, da HAP.
A pequena bienal terá direito ainda a uma festona para convidados no Museu de Arte Moderna e a um jantar, mais íntimo, na casa de um colecionador carioca.
Entre os visitantes, o diretor da Tate e o curador de Basel
Neste vão estar os convidados VIPs da delegação internacional. Nomes que podem dar o que falar às artes cariocas se o que virem por aqui cair nas suas graças. Na lista há Samuel Keller, que comanda as feiras de arte de Basel e de Miami; Nicholas Serotta, diretor da Tate Gallery de Londres; além de todo o comitê da mesma Tate responsável pelas aquisições de obras latino-americanas. A ambição dos galeristas daqui não é nada pequena.
Nosso sonho, claro, é lançar com a presença das personalidades internacionais o embrião para uma feira de artes na cidade diz Ricardo Rêgo, da Lurixs. Estamos, inclusive, agendando uma reunião do secretário das Culturas, Ricardo Macieira, com Samuel Keller, que, segundo uma revista americana, está entre as cem personalidades mais importantes das artes plásticas no mundo. O nome de Keller pode servir como uma grife para atrair outros interessados.
A torcida carioca das artes agradece.
Informações:
Arquivo Geral
21 de setembro a 17 de outubro de 2004
Jardim Botânico do Rio de Janeiro
Rua. Jardim Botânico 1008
21-2294-9349
Terça e quinta a domingo, das 11h às 17h; quarta, das 11h às 21h
Preço R$ 4
setembro 17, 2004
Enquete Número - Canal sobre Política para as Artes Visuais
Enquete realizada através do Canal Contemporâneo, publicada na revista Número 5.
Como divulgado na Internet durante os meses de julho e agosto, a revista Número, em parceria com o Canal Contemporâneo, realizou uma enquete. Mais do que um diagnóstico da difícil situação, a Cinco buscou colaborar nas discussões para a elaboração de uma política cultural para as artes visuais. Chegou cerca de meia centena de depoimentos de artistas e teóricos da arte. Embora não haja espaço para citar todos os colaboradores, a revista agradece imensamente aos que dedicaram seu precioso tempo para nos responder.
Afinados com as preocupações que estão por trás da proposta da Número, 23,5% dos e-mails recebidos identificaram a falta de discussão e de debate sobre arte e política cultural. Além disso, 33,5% dos interlocutores entendem que a criação de núcleos, conselhos ou organizações de artistas com poder de atuação na política pública é prioridade para que sejam atendidas as demandas do setor. O teórico Guilherme Bueno aponta a crença generalizada de "que o artista plástico tem uma relação mais individual com o trabalho (ao contrário do cinema e do teatro)" como um dos motivos que mantêm insipiente a organização dos artistas, e afirma que "isso não impede ações que invistam em interesses coletivos".
Embora o diretor do Centro de Artes Visuais da Funarte e o representante do Ministério da Cultura em São Paulo sejam artistas, foi bastante lembrada a necessidade de uma representação das artes visuais no MinC. Nesse sentido, uma proposta recorrente surgida nas respostas à enquete foi a de determinação de cotas do orçamento destinado à cultura, incluindo a renúncia fiscal, para as diferentes modalidades de arte a fim de garantir recursos mínimos para as artes plásticas.
A constatação do isolamento de algumas regiões do Brasil, a falta de investimentos locais e a necessidade de descentralização das verbas, uma das preocupações da atual gestão do MinC, foram mencionadas em cerca de 16% das mensagens.
Há quem diga que no Brasil, devido à carência de setores muito mais urgentes como saúde, habitação e segurança alimentar, investimentos na cultura não devam ser prioridade do Estado. Com a desvinculação entre Estado e cultura, caberia apenas à iniciativa privada investir em arte. Entretanto, 25% das pessoas que enviaram respostas exigem mais verba do Estado para as artes visuais. Entre as propostas destacam-se a criação de mais impostos em mercadorias específicas e a criação de uma loteria para a cultura. O artista e produtor cultural, ex-diretor do Itaú Cultural, Ricardo Ribenboim sugere a criação de "fundos com administração de instituições financeiras sem ônus de imposto aos contribuintes" e a disponibilização do já existente "fundo de apoio à cultura para a sociedade civil decidir sobre seu uso". Uma distinção que nos parece fundamental é aquela entre sociedade civil organizada e empresas privadas com interesse em marketing.
As leis de incentivo foram citadas em 27% dos e-mails. Muitos apontam seus avanços, mas prevalece a vontade de desburocratização desses mecanismos, permitindo que o dinheiro chegue ao artista sem que os produtores abocanhem a maior parte do orçamento. A exigência de valorização da profissão de artista, o pagamento de pró-labore, bem como de direitos autorais de reprodução de imagem foram mencionadas em 18% das colaborações. Também se falou da necessidade de livrar a arte contemporânea dos ainda persistentes estereótipos nacionais, tipo exportação: mulher, futebol e carnaval.
Se, pelo menos nos grandes centros do país, há uma série de espaços para a realização de exposições, 16% pedem o aumento do número de instituições, principalmente as públicas, para exibição, criação e fomento da arte. Também foi mencionada a necessidade de manutenção e ativação dos espaços já existentes e 10% propuseram a criação de políticas consistentes e contínuas de aquisição de obras para a ampliação de acervos públicos. Programas de incentivo a doações particulares e à prática do mecenato foram mencionados por diversos artistas como alternativa à atual situação. A criação de políticas a médio e longo prazo, independente das diferenças partidárias das gestões das secretarias da cultura é uma exigência premente. A curadora Cristiana Tejo menciona a necessidade de investimento na "formação dos profissionais envolvidos na cadeia produtiva" das artes e identifica um grande disparate: o governo abdica de recursos que poderiam ser investidos em museus públicos, enquanto é "gritante a diferença de instituições geridas pelo poder público e pela iniciativa privada, especialmente pelos bancos. O padrão é de exposições milionárias, enquanto os espaços públicos têm que lidar com mínimos recursos".
Entre os problemas atuais, a falta de ética e transparência em seleções de artistas, o poder excessivo de curadores, a existência de um circuito viciado e a falta de espaço para todos os estilos de produção foram apontados em 20% das respostas. Além da necessidade de um amplo mapeamento da produção artística do país e da criação de um banco de dados sobre artistas do Brasil e da América Latina, esta entre as propostas a criação de mais canais e espaços alternativos ao circuito instituído, com ênfase na experimentação, sendo a universidade um lugar privilegiado.
O maior consenso é a ênfase na educação e na necessidade de ampliação e formação de um público da arte. Reivindicações por melhoria no ensino de educação artística, cursos para professores, programas de formação continuada, monitoria em exposições, oficinas e investimentos em cursos de graduação e pós-graduação, também em história da arte, aparecem em 45% das respostas. Uma das estratégias apontadas é a criação de políticas públicas de incentivo a pesquisa, produção de artigos, ensaios teóricos, revistas e livros de arte que possam integrar bibliotecas de todo o país. Também foi proposto o aumento da tiragem das publicações, com a diminuição do custo unitário, e a compra de parte da tiragem pelo governo, em parceria com a iniciativa privada, para os acervos de bibliotecas.
A artista Karin Lambrecht questiona se existe no Brasil "uma filosofia política cultural" e se seria possível sua elaboração na atual crise econômica que parece desestruturar algumas conquistas dos movimentos de luta alcançadas depois de décadas. Entre outras sugestões, critica a exigência de títulos de doutorado para artistas lecionarem em faculdades de arte no Brasil.
Também foi mencionada a imprescindível melhoria da cobertura da mídia e da grande imprensa na divulgação e discussão da produção artística. Para isso, é preciso que os artistas se manifestem enviando cartas e e-mails aos jornais. Alguns jornalistas que cobrem arte contemporânea, isolados em suas redações, reclamam da falta de participação. A elaboração de uma política cultural do Ministério das Relações Exteriores, promovendo programas de bolsas, residências e intercâmbios internacionais aparecem em 35% dos e-mails. Entre as propostas mais específicas estão a agilização dos trâmites alfandegários para exposições internacionais e a diminuição da alíquota de importação de livros e materiais usados por artistas.
Para suprir a falta de mercado de arte e pretendendo criar mercado, com "m" minúsculo, a criação de feiras de arte no Brasil e o incentivo à formação de coleções de arte foram saídas apontadas. Além de vender sua produção, outras necessidades dos artistas parecem ser a profissionalização do meio, a regulamentação da profissão e a elaboração de um pecúlio para artistas da terceira idade, citado em 10% das mensagens.
É preciso lembrar que o método utilizado na enquete não chega a ter um rigor científico. Priorizamos a identificação das principais demandas à exatidão. Em vez de sugeridas a partir de alternativas apresentadas por nós, as respostas foram livres e espontâneas. Acreditamos que as principais reivindicações e sugestões estejam contempladas no presente texto embora, infelizmente, nem todas puderam ser publicadas.
Em resposta à demanda por um maior debate sobre política cultural, e pela criação de órgãos para sua implementação, este texto será publicado concomitantemente na revista Número e no Canal Contemporâneo, para, a partir de sua ampla divulgação, propormos discussões baseadas nas principais reivindicações.
As perguntas da enquete:
1. Qual a necessidade mais urgente do artista e do teórico que vive e trabalha hoje no Brasil?
2. Conhecendo a escassez de recursos na área da cultura, a omissão do Estado e a falta de interesse dos investidores privados, que medidas poderiam ser tomadas pelo Estado que contribuíssem na elaboração de uma política para a arte contemporânea?
3. Que outra possibilidade haveria para o fomento de nossa área?
Entrevista com Arthur Omar, por Joanne Martins
O Transfigural (ou 3 perguntas para Arthur Omar)
Entrevista por e-mail a Joanne Martins.
Joanne Martins (NYU): As imagens dos seus filmes e vídeos trabalharam com uma desconstrução radical e chegam a materialidade mesma do filme ou a fluidez absoluta, nos vídeos mais recentes. Na fotografia e artes plásticas você tem se dedicado a gêneros como o retrato, a paisagem, num trabalho de reconstrução e investigação na direção de uma nova iconografia brasileira. Nos dois casos explodindo os clichês da "identidade nacional", como seu trabalho é percebido no Brasil?
Arthur Omar: Seria melhor perguntar para os críticos. Mas uma coisa curiosa é como a arte brasileira ainda funciona no regime das capitanias hereditárias. Por ter vindo do cinema e do vídeo levei um tempo para ser aceito no meio das artes plásticas. Os fotógrafos dizendo sempre que bom mesmo é meu trabalho no cinema e na videoarte, o gueto do cinema (o mais conservador) achando ótimo eu ter "ido" para as artes plásticas, onde posso ser aceito como artista experimental, o pessoal da "arte contemporânea" querendo me enquadrar como moderno e clássico, o que pra mim é um grande elogio, apesar de entender contemporaneidade como justamente uma hipermodernidade, onde tudo se acumula e várias temporalidades se cruzam. Se juntar tudo isso, não deixa de ser uma boa definição do meu trabalho: são imagens em trânsito.O que existe de "moderno" no meu trabalho é o fato de eu dominar, no sentido de uma intimidade, corpo a corpo, sintonia fina, as técnicas que trabalho. Como domino, posso descostruir de dentro, não aplico borrões, desfocagens, tremidos nas minhas imagens, como "aparência" de contemporâneo. Desconstruo, quando quero, no ato mesmo de capturar, de conceber e trabalhar as imagens, num corpo a corpo, no risco de perder tudo. Isso é minha radicalidade. Mas fico muito (mal) impressionado com esse corporativismo dos grupos, acho que é briga por mercado mesmo, pois não têm uma discussão mais consistente, nem uma compreensão da trajetória de um artista, na sua singularidade. Vivo no Rio de Janeiro e me sinto exilado. Em São Paulo a mobilidade é muito maior, encontro uma real atenção à singularidade de cada artista.
Sobre os trabalhos recentes estou investigando a presença do outro na própria figura e o simbolismo na paisagem. Não trabalho apenas sobre a desconstrução da linguagem, seja qual for, isso é muito "contemporâneo" e acho que estamos entrando num momento, alguns teóricos chamam de hipermoderno e eu, gosto de dizer, pós-contemporâneo (que não tem nada a ver com cronologia, não uso relógio, gosto de camadas geológicas), que é a possibilidade de viver intensamente, simultaneamente, numa só vida, toda a história da arte, como um aleph, um instante mágico, hipersaturado. Isso me perturba e me interessa. Pode ser a ilusão da simultaneidade, criada pelas novas tecnologias do tempo real, do on-line. O contemporâneo está muito ligado a uma desconstrução, negação, ausência. Eu levei isso as últimas consequências em alguns dos meus filmes e vídeos, agora, vivo um outro momento da tecnologia e das comunicações. e o meu trabalho é uma tentativa de contribuir para a reconstrução do objeto e das significações, disputando o sentido com mídia..
O figurativismo, o retrato, a paisagem, podem adquirir hoje um sentido radicalmente outro, principalmente quando certa estética contemporânea se torna um novo clichê. Quando o Nokia Trends, esse mega evento em São Paulo, prova que a "vanguarda" é um rótulo de marketing e de mercado que ajuda a vender celulares e serviços não me interessa me apresentar dessa forma. Não sou purista, uma imagem minha pode circular em qualquer midia ou meio. A Globo resolveu acompanhar minha viagem ao Afeganistão na última Bienal de São Paulo e me colocar no Fantástico. Por conta disso alguns criticos e artistas acharam que as imagens que apresentei - estruturas precárias, quase-esculturas, espaços vazios, carros retorcidos, muros crivados, marcas visuais da guerra que destruiu o Afeganistão percebidas como zonas de catástrofre, espaços ao mesmo tempo reais, hiper-realistas, e fantasmagóricos - eram meramente "representativos". Os próprios artistas olham a obra de um outro e só vêm os seus clichês psiquicos. Me interesso pela política do simbólico e do simbolismo. Sentidos do real, efeitos do real, tornados imagem. Quero disputar sentidos e criar realidades que a arte, como contra-discurso, como impensado, poderia fazer.
Joanne Martins: E sobre o mercado de arte?
Arthur Omar: Minha obra é o processo em que minha vida se expressa. Nos anos 80 publiquei nos jornais um anúncio que dizia "Arthur Omar profissão Arthur Omar". Eu não sabia ao certo o que queria dizer, estava angustiado e inquieto, agora acho que sei: um dia todos serão artistas, produtores e maquinadores de processos singulares, não precisarei mais vender obras, pois todos terão um salário para existir. Se chegamos no auge da massificação, a vida ainda pode ser um processo singular. Ou seja, se existir um "mercado" para minha singularidade, existirá um mercado para minha arte.
Joanne Martins: Bem, eu sou apenas uma estudante brasileira de arte contemporânea, atualmente em Nova Yorque, e não tenho nada, digo dinheiro, mas se eu pudesse eu comprava a tua vida, não pra mim, mas para deixá-la num banco de dados público de processos e singularidades para uso coletivo, e para, depois de você, ou junto com você, alguém poder vivê-la de novo. Mas faltou falar do Transfigural...
Arthur Omar: Ainda estou pensando sobre isso. Nesse exato momento estou com um livro aberto na imagem de Malevich morto. Ele foi velado e depois enterrado numa tumba suprematista, com um quadrado negro como epitáfio. Que imagem incrível para expressar uma parte da arte do século XX! Na próxima conversa tento explicar melhor. Para a exposição de Belo Horizonte enviei uma série de imagens de quase-figuras, branco sobre o branco, que eu chamei de "Indio suprematista". Brancas, brancas, brancas. Transfigural?
Setembro de 2004
Joanne Martins é estudante do curso de Artes da New York University.
Arthur Omar apresenta-se na exposição Santissima Trindade, juntamente com Mário Cravo Neto e Miguel Rio Branco, na Murilo Castro Escritório de Arte.
Mais informações da exposição:
Murilo Castro Escritório de Arte
R. Paraíba 1323
Savassi Belo Horizonte MG
31-3287-0110
setembro 15, 2004
Conversa entre Ana Holck e o curador Guilherme Bueno
Ana Holck mostra vídeos atualmente no Cinemac no MAC-Niterói.
Guilherme Bueno: Você poderia começar falando sobre a questão do registro em vídeo. Como você vê e pensa este processo de passagem de uma experiência efêmera para um outro "suporte"?
Ana Holck: Vejo os registros de trabalhos em vídeo como uma forma de prolongar um pouco a vida destes trabalhos efêmeros e site-specific, e que por isso são únicos, não repetíveis. Deste modo, registrando o trabalho da forma mais completa possível, revelando ao máximo a relação que ele estabelece com o espaço e com o espectador, posso ter um registro mais fiel da obra, uma vez que esta não poderá ser vista novamente. Creio, porém, que a passagem para outro suporte de fato não ocorre: o vídeo possui características próprias que por vezes potencializam a obra, mas tenho dúvidas quanto à possibilidade de um trabalho de arte pensado para uma determinada situação poder existir em outro suporte. Por outro lado, e talvez seja o lado mais rico da experiência de filmar, o vídeo também devolve um novo olhar sobre o trabalho, pois o olho da câmera seleciona de tal modo a experiência que acaba trazendo novas possibilidades para o trabalho, por vezes até mesmo apontando outras direções para o artista.
GB: Esta passagem para uma outra linguagem traz ainda outra questão, que é a de uma mudança nas relações de espaço, tempo e percepção, um problema emblemático nas artes plásticas. Neste caso, sobretudo se considerarmos a questão do espectador e sua "postura" junto à obra, pois em cada um destes casos o seu embate é bastante diferente. Quer dizer, a instalação e o vídeo registram tempos, espaços e modos de percepção organizados segundo códigos diferenciados. Ele não provocaria no espectador uma relação de especificidade com a obra (ou uma nova especificidade da obra), ainda que diferenciada?
AH: O registro em movimento é sem dúvida um extraordinário recurso, que nos permite uma quase-experiência, mas que no caso dos trabalhos espaciais acaba por aumentar ainda mais a necessidade e o desejo de travarmos um embate com a obra propriamente dita. Deste modo, eu diria que qualquer registro é insatisfatório quando buscamos a experiência do todo.
São dois modos de percepção muito distintos: tanto no contato travado com o trabalho quanto na percepção passiva de um registro filmado, você acaba tendo como elementos a mais as características dos suportes - o espaço e a imagem - respectivamente. No caso da filmagem como "suporte", teremos a presença da linguagem cinematográfica como um dado a mais do problema. E se por um lado, como vínhamos dizendo, isso pode contribuir para o trabalho, por outro também temos a presença de elementos exteriores a ele, que aproximam esta experiência do cinema, suprimindo o contato direto com o trabalho.
Finalmente podemos constatar que o registro filmado te apresenta um olhar pronto, não deixa que você mesmo experiencie o trabalho e de certa forma acaba tornando-o algo a ser contemplado e não vivenciado. Esta é uma experiência diametralmente oposta à experiência de descobrirmos as coisas com nossos próprios olhos.
GB: Insistindo ainda um pouco nesta questão do registro e do site-specific, você comenta que o registro de um trabalho em vídeo não tem um estatuto artístico, mas mesmo assim eu o vejo como um elemento interessante dentro do processo do seu trabalho, pois de algum modo ele passa a ser incorporado na existência do mesmo. Digo isto pensando particularmente no caso do Robert Smithson e do Matta-Clark, em que acabam se absorvendo dentro do universo de uma "situação" (o "trabalho em si") estes vários desdobramentos. Como você vê este dado no seu trabalho, pois, se o vídeo não equivale jamais à experiência objetiva, ele de certo modo se torna o índice dela, isto é, uma possibilidade de sua percepção. Uma percepção, acrescento, quase fantasmática, na medida em que você se relaciona em "tempo real" com algo que não existe mais materialmente, apenas sob forma de imagem.
AH: Assistir a um filme é uma experiência passiva, em que você não tem opção de escolha, não experimenta a coisa propriamente dita; deste modo, eu diria que há realmente essa percepção fantasmática a que você se refere, uma vez que não se tem um embate com o trabalho. Não é você que está ali, mas sim a câmera, e mesmo assim você pode perceber e sentir inúmeras coisas através do registro. De certa forma, o valor da documentação em movimento está no fato dele te trazer algo que possivelmente você não fosse perceber se estivesse percorrendo o trabalho propriamente dito, pois as percepções de cada um são muito diferentes. Entretanto, estas informações estão sendo dadas a você, pois ao deparar com o trabalho certamente você teria sensações muito diversas das suscitadas pela filmagem, que não te ocorreriam sem que você tivesse visto o trabalho propriamente dito.
GB: Sobre esta questão da "migração" de linguagens, poderíamos dizer que no caso do vídeo sobre a instalação Rotatória, apresentada na exposição INSOLA(R)ÇÕES, ele procura reconstituir uma experiência de espaço específica, mas em outro sistema visual?
AH: Por vezes a filmagem consegue potencializar sensações e percepções apenas indicadas no trabalho. A fotografia, seja ela em movimento ou em still, pode ajudar a destacar determinados aspectos do trabalho, uma vez que o olho da câmera é muito seletivo. Podemos assim eliminar qualquer interferência existente no local e focalizar nas principais características do trabalho, naquilo que queremos de fato que os outros percebam. Neste sentido, eu diria que o registro da Rotatória é muito bem-sucedido, pois enriquece a percepção do trabalho. Se por um lado podemos ressaltar e filtrar apenas aquilo que nos interessa, por outro, no registro fotográfico e mesmo na filmagem - onde temos o movimento -, perdemos a referência do todo, inclusive as interferências e imperfeições que qualquer objeto inserido no mundo possui. No caso de um trabalho que lida primordialmente com o espaço, isto também se torna um defeito muito grave destas mídias. O registro em vídeo se revela ambíguo, pois nos dá a ilusão de que vemos o trabalho por completo, com todo o seu dinamismo e espacialidade registrados, mas jamais teremos a experiência do real, isso apenas a presença humana poderá garantir. Deste modo, a câmera acaba por se tornar um recurso ilusionístico, uma vez que automaticamente descarta as informações aparentemente sem relevância. Então voltamos ao ponto em que podemos afirmar que nada substitui o real embate com o trabalho; nesta experiência podemos ter a noção de escala colocada pelo trabalho e de fato sentir a emoção de pertencermos a um mundo real e palpável.
Agosto 2004