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agosto 30, 2004
As metamorfoses do império
Entrevista publicada originalmente no Mais, na Folha de São Paulo, domingo, dia 29 de agosto de 2004.
Expoente da filosofia japonesa, Naoki Sakai vem ao Brasil nesta semana para discutir o papel das universidades e a insuficiência do nacionalismo como forma de resistência.
Pedro Erber
Especial para a Folha
Naoki Sakai (1946), um dos principais expoentes da filosofia japonesa, vem ao Brasil pela primeira vez nesta semana [haverá conferências na quinta-feira, na Universidade Federal do RJ (tel. 0/xx/ 21/2598-9792) e, na sexta-feira, na Pontifícia Universidade Católica do RJ (tel. 0/xx/21/3114-1447)]. Autor de "Translation and Subjectivity" (1987), "Voices of the Past" (1992), entre outras obras e numerosos artigos, Sakai é professor na Universidade Cornell, onde leciona desde 1987 nos departamentos de estudos asiáticos e literatura comparada. É também idealizador e editor da "Traces", revista multilíngüe de teoria cultural e tradução.
Foi sobretudo a justificação filosófica do imperialismo japonês, tal como elaborada na obra de Hajime Tanabe (1885-1962), que despertou o interesse de Sakai pela vertente do pensamento japonês da primeira metade do século 20 conhecida como Escola de Kyoto. Contrapondo-se radicalmente à busca orientalista do exótico, Sakai descreve a Escola de Kyoto, famosa sobretudo por sua ligação com o pensamento zen-budista, como "uma típica escola filosófica européia".
A filosofia japonesa torna-se então um dos focos de seu questionamento das implicações políticas da dicotomia Ocidente-Oriente. Dicotomia essa que, segundo Sakai, resulta muito mais de um mecanismo de reconhecimento mútuo, denominado por ele de "esquema de co-figuração", que de alguma autêntica identidade cultural.
Na entrevista a seguir, Sakai fala de seu percurso intelectual, do imperialismo americano contemporâneo e de sua visão do papel fundamental das universidades no contexto político mundial. Animado com a perspectiva de sua primeira passagem pela América Latina, acentua a importância do estabelecimento de uma comunidade internacional de questionamento e resistência ao crescente viés conservador da política.
Gostaria de começar por um tema sobre o qual o sr. costuma manter certa discrição, mas que me parece intimamente relacionado à sua atividade atual no âmbito acadêmico: sua participação no movimento estudantil japonês no final dos anos 60. O sr. fazia parte de uma minoria muito influenciada por pensadores europeus, enquanto a maior parte dos estudantes se via muito mais próxima de marxistas japoneses, como Takaaki Yoshimoto...
Deixe-me reformular um pouco. Os estudantes japoneses daquela época -a geração de 1968, particularmente- liam muito sobre o pensamento europeu, sobretudo filósofos marxistas. Alguns já liam autores como [Jürgen] Habermas, e um pequeno grupo lia também Michel Foucault, que havia estado no Japão fazia pouco tempo. No entanto havia um problema entre aqueles estudantes. Embora reconhecendo a relevância de certos pensadores europeus para o movimento em que estavam engajados, eles não se sentiam de fato envolvidos no pensamento europeu. Após a dissolução do movimento estudantil, a maioria deles se tornou simplesmente nacionalista. Eu tinha uma visão inteiramente diversa da situação.
A conexão entre o que se passava no meio universitário japonês e a situação internacional lhe parecia especialmente importante?
A contemporaneidade daqueles movimentos era particularmente importante. Pela primeira vez no Japão aqueles estudantes realmente levaram a sério a questão da relação entre conhecimento e política. Para eles, o conhecimento não era simplesmente um instrumento por meio do qual o poder se impõe. O próprio conhecimento é o locus do poder. Por isso eles escolheram a universidade como local de sua luta.
E, você se lembra, essa tomada de consciência foi contemporânea à percepção dos estudantes franceses do conhecimento e da política.
O que soa muito próximo ao modo como o sr. costuma referir-se à sua própria atuação como professor universitário. Como o sr. vê essa conexão?
Sim, nesse sentido eu não me sinto culpado por não me envolver no chamado "mundo real". As universidades são muito reais no processo de formulação da sociedade contemporânea. Eu lido com o problema de como construir e como reformular o modo pelo qual o conhecimento é produzido. E, especialmente em relação ao imperialismo, a disciplina que escolhi -estudos regionais ("area studies")- é muito relevante nos EUA, por ser precisamente o lugar onde é gerado o conhecimento imperialista.
Quando se pensa na hegemonia dos EUA hoje em dia, não se pode em hipótese nenhuma ignorar o papel das universidades americanas, onde são educados alguns dos melhores estudantes de todo o mundo, que retornam a seus países e formam as elites locais. Nesse sentido, o próprio sistema universitário americano é um dos núcleos da hegemonia imperialista dos Estados Unidos.
Qual a sua avaliação dos estudos regionais e, mais especificamente, dos estudos japoneses na academia americana?
Para ocupar o Japão após a Segunda Guerra, os EUA precisavam de um enorme arsenal de especialistas na região. Essa foi a premissa original da disciplina dos estudos japoneses nas universidades americanas. De modo que o nacionalismo americano não foi jamais questionado seriamente no âmbito dos estudos japoneses.
Estruturalmente, há uma continuidade entre o imperialismo japonês dos anos 30 e o imperialismo dos EUA no pós-guerra.
Nesse sentido, alguém como Hajime Tanabe era muito semelhante aos atuais especialistas em estudos regionais, na medida em que se tornou o filósofo do Estado imperial japonês e se preocupava genuinamente com a prosperidade do império. Eu, no entanto, não tenho intenção de contribuir para a continuidade do programa de estudos regionais baseado nesse tipo de lealdade ao nacionalismo americano.
Parece haver atualmente um sentimento de crise na própria idéia de estudos regionais, devido precisamente às premissas políticas que a disciplina implica.
Houve diversas reações a essa formulação dos estudos regionais. Intelectuais em áreas como o Leste Asiático e, tenho certeza, também na América Latina foram bastante críticos à política dos EUA em tais regiões. Como resultado, há uma tendência entre esses intelectuais a se tornarem muito anti-americanos. Eles operam com base no nacionalismo local contra os EUA.
O sr., por outro lado, vem criticando freqüentemente os nacionalismos locais por não constituírem uma estratégia suficiente contra o imperialismo...
Mais uma vez, deixe-me usar o exemplo do Japão no pós-guerra. Estando o Japão ocupado pelos EUA, houve desde o início um forte sentimento anti-americano. No entanto esse anti-americanismo simplesmente reforçou o nacionalismo japonês. Algo que aqueles intelectuais, incluindo os intelectuais marxistas, não perceberam foi que de fato, após a Segunda Guerra, o nacionalismo étnico local deixou de ser um modo efetivo de resistir à dominação americana, que não era abertamente opressiva no Japão. Eles jamais refletiram seriamente sobre a razão pela qual a dominação americana no Japão, que não terminou em 1952, quando o país tornou-se oficialmente independente -como o Iraque em junho deste ano-, se tornou a mais bem-sucedida administração colonial da história.
A hegemonia mundial dos EUA é uma das questões centrais de seus escritos sobre a chamada Escola de Kyoto. O império japonês do período pré-guerra pode ser visto como um modelo do imperialismo americano atual?
Sim e não. Esse foi o desenho que a situação internacional forçou os intelectuais japoneses a aceitarem durante os anos 30, devido à resistência particularmente forte por parte dos chineses. No início, o Estado japonês reprimiu severamente o nacionalismo chinês.
Mas essa repressão acabou por torná-lo ainda mais forte e conspícuo. De modo que, ao fim da década de 30, alguns intelectuais, como Kiyoshi Miki [1897-1945] e outros, chegaram à conclusão de que era preciso acolher o nacionalismo chinês para controlá-lo. Mas essa tarefa foi muito mais bem realizada no pós-guerra, sob o controle americano da região.
O sr. afirmaria que tais mecanismos foram aprendidos do império japonês pelos oficiais da ocupação americana?
É difícil dizer se os especialistas americanos de fato aprenderam com as experiências do Japão, exceto em casos como o do imperador Hiroito. Nos anos 30, o Estado japonês tentou utilizar os imperadores da Manchúria como marionetes para controlar sua colônia, e os EUA apropriaram-se deliberadamente dessa política, poupando Hiroito para facilitar a ocupação do Japão. Por outro lado, o governo americano adotou as instituições coloniais japonesas para controlar a Coréia, Taiwan e mesmo a China, até a tomada do poder pelos comunistas. No mais, estruturalmente há uma continuidade entre o imperialismo japonês dos anos 30 e o imperialismo americano no pós-guerra. Essa é uma das razões pelas quais o estudo da Escola de Kyoto me parece importante.
Nesse sentido, sua abordagem da Escola de Kyoto é inteiramente diferente da maior parte dos estudos sobre o assunto, que se concentra em seu aspecto religioso e na herança do chamado "pensamento oriental".
A Escola de Kyoto é conhecida como uma escola de filosofia religiosa, especialmente ligada à tradição budista. Eu discordo inteiramente dessa caracterização.
Trata-se antes de uma típica escola filosófica européia, interessada em ciências humanas e naturais. Hajime Tanabe, que sucedeu Kitaro Nishida no departamento de filosofia da Universidade Imperial de Kyoto, era inicialmente um filósofo da ciência. Foi ele quem introduziu a leitura filosófica da teoria quântica no Japão. Além disso, tanto Tanabe como Nishida eram muito ligados ao cristianismo. De modo que é um engano tomar a Escola de Kyoto por uma escola de filosofia budista.
Qual a importância de Tanabe no contexto do pensamento político do século 20?
Tanabe sofreu profundamente uma combinação de nacionalismo e imperialismo. Ele estudou com Martin Heidegger durante os anos 20 na Alemanha. E, mais tarde, após retornar ao Japão, surpreendeu-se ao descobrir que Heidegger estava se aproximando do nacionalismo étnico alemão. Tanabe era extremamente crítico do nacionalismo étnico. Sua "Lógica das Espécies" [série de ensaios de ontologia política] foi desenvolvida como uma refutação do que ele percebia ser o fascismo. Porque o fascismo baseia-se geralmente na unidade de uma comunidade étnica, Tanabe atacou radicalmente a noção de etnia e se esforçou para demonstrar que não existe uma base étnica para a nação moderna.
No entanto ele não foi suficientemente crítico do desenvolvimento imperialista do multiculturalismo. E, como resultado, acabou fornecendo uma justificação multicultural ou multiétnica para o império japonês.
Em "Voices of the Past" [Vozes do Passado], o sr. aborda o problema da escrita fonética no contexto dos debates lingüísticos do século 18. É um tema que despertou o interesse de pensadores contemporâneos, como Lacan e Derrida, que vê no fonocentrismo uma das características fundamentais do que se denomina a "metafísica ocidental". Como se coloca essa questão no âmbito da lingüística japonesa?
Dentro do contexto da chamada escrita "japonesa" encontram-se formulações claras da questão do fonocentrismo. No Japão, especialmente no século 18, um pequeno grupo de intelectuais afirmava que a escrita japonesa era essencialmente fonética e tentava distinguir o Japão da China pelo fato de a escrita chinesa não chegar a ser fonética. Derrida, por outro lado, herdou de Heidegger expressões como "metafísica ocidental", e "teleologocentrismo". E desenvolveu seu argumento em torno de 1968 iniciado antes, com sua tradução da "Origem da Geometria", de Husserl, prosseguindo então com uma crítica geral da metafísica européia.
Ele afirma explicitamente que não existe um exterior positivo da metafísica ocidental, mas não explora o problema de como a metafísica pode ainda ser chamada "ocidental" se esta não possui um exterior.
Esse problema explode na "Gramatologia", particularmente no capítulo onde ele lida com as escritas chinesa e japonesa. Não se pode afirmar que a escrita chinesa seja decididamente não-fonética. E a escrita japonesa, como você sabe, não é tampouco não-ideográfica. Acontece que a leitura fonética dos caracteres depende em grande parte de uma ideologia...
O sr. estabeleceu uma ampla rede de colaboração entre intelectuais progressistas na Ásia, Europa e EUA e vem agora pela primeira vez à América Latina. Como você vê o potencial desse tipo de conexões intelectuais no âmbito político internacional?
Na última década, e particularmente desde a Guerra do Golfo, vimos o crescimento de uma tendência extremamente conservadora nos EUA. Estou certo de que as pessoas no Brasil vêm percebendo como o nacionalismo americano tem se tornado chauvinista. É necessário opor-se a essa formação reacionária.
No entanto não me parece possível transformar a situação dentro dos EUA e particularmente dentro da universidade americana, a não ser que estabeleçamos conexões em nível internacional.
E suponho que o projeto da revista "Traces" esteja diretamente ligado a essa tentativa. Como surgiu a idéia de uma "revista multilíngüe de teoria cultural e tradução"?
Eu acabei me interessando muito pelo tema da tradução. É uma das questões que abordo em relação ao pensamento japonês do século 18. Não afirmo que a tradução seja um tipo de ligação universal, de modo algum. Na verdade, a tradução é precisamente o esquema por meio do qual as regiões são confinadas. Assim, ela desempenha papel muito importante na criação do moderno Estado-nação.
Ao mesmo tempo, eu vejo a tradução como um modo de lidar não apenas com diferenças regionais, mas também com diferenças de classe, diferenças étnicas, de gênero etc. A partir daí, eu pude formular uma noção de comunidade, muito inspirada no filósofo francês Jean-Luc Nancy. Trata-se da possibilidade de uma comunidade que não esteja confinada a identidades nacionais, étnicas ou religiosas. Isso me permitiu desenvolver esse projeto, "Traces". Soa um pouco derridiano, mas não é inteiramente derridiano...
Há quanto tempo e em que países vem sendo publicada a revista "Traces"?
Há mais ou menos quatro anos; em chinês, coreano, inglês e japonês, e estamos tentando publicá-la também em outros idiomas. Ela é vendida nos EUA, Inglaterra, Austrália, Cingapura, Índia, Canadá, Japão, China, Taiwan e Coréia. Os próximos números estarão disponíveis também na França, e estamos negociando para publicá-la em espanhol. E, é claro, consideraremos seriamente a possibilidade de uma versão em português.
Pedro Erber é doutorando em filosofia política e literatura na Universidade Cornell, estudou filosofia japonesa na Universidade de Tóquio e é autor de "Política e Verdade no Pensamento de Martin Heidegger" (Loyola).
Identidade e dominação por Naoki Sakai
A voz forte e sufocada das minorias
Artigo de Naoki Sakai, traduzido por Pedro Erber, publicado originalmente no Valor Econômico, sábado, dia 14 de agosto de 2004.
A evolução da situação política internacional desde o 11 de setembro evidenciou lacunas inerentes à nossa concepção do fascismo. Particularmente inquietante é o fato de ter se passado tanto tempo - aproximadamente dois anos - até que a grande mídia americana começasse a dar voz às numerosas críticas internacionais à política externa do governo americano e a suas atitudes presunçosas - e claramente racistas - frente a árabes, muçulmanos, "Estados vilões" e todos aqueles que se pudesse imaginar como "terroristas".
Em todo o mundo, o choque das tragédias do 11 de setembro despertou imediata solidariedade com os americanos e a condenação unânime dos instigadores dos ataques suicidas. Por algum tempo, a maior parte da opinião pública mundial parecia estar inequivocamente do lado americano. Muitos ainda, fora e dentro dos EUA, esperavam genuinamente que o povo americano, por sua vez, se tornasse capaz de semelhante solidariedade com as vítimas civis da longa história de bombardeios e ações militares encobertas de seu governo em diversas partes do mundo, e que eles percebessem finalmente porque são tão intensamente odiados. No entanto, o governo dos EUA logo revelaria sua mentalidade jingoísta e farisaica, ao declarar sua estratégia unilateral de "preempção".
Entretanto, esse unilateralismo fundamentalista não estava inteiramente em desacordo com o público americano. Este, para meu maior desapontamento, parecia adorar a retórica de cruzada do governo Bush e endossou de maneira avassaladora a legislação conhecida como "Patriot Act", que sacrifica direitos básicos dos cidadãos em nome da segurança nacional.
Como é do conhecimento de muitos, o campo de concentração construído pelos EUA na Baía de Guantánamo, em Cuba, continua em funcionamento para a detenção de "combatentes inimigos", que não são criminosos segundo as leis americanas e tampouco prisioneiros de guerra de acordo com a lei internacional. Assim como os judeus tiveram seus direitos e sua nacionalidade negados pelas leis de Nuremberg (particularmente, pela Lei de Cidadania do Reich) de 1935, aqueles prisioneiros foram confinados indefinidamente, inteiramente privados de processos judiciais e sem direitos legais a que apelar junto a qualquer autoridade, até a decisão da Suprema Corte, em junho deste ano.
Não é a primeira vez na história dos EUA que se recorre à criação de campos de concentração em nome da segurança nacional. Em 1942, o presidente Franklin D. Roosevelt ordenou o encarceramento de todos os americanos descendentes de japoneses em campos de concentração, simplesmente porque ele e seu secretário de guerra viam nos nipo-americanos espiões e sabotadores em potencial. Quatro décadas mais tarde, o esquema dos campos de concentração para americanos cujos ancestrais vinham de países inimigos foi oficialmente declarado inconstitucional e repelido pelo governo no Ato das Liberdades Civis, de 1988. No entanto, uma vez mais, uma crise na segurança foi usada como desculpa para a abertura de uma brecha extrajudicial para o internamento de indivíduos que não são julgados culpados, nem mesmo culpáveis, mas simplesmente suspeitos de constituir perigo à segurança da nação. A cada vez que a nação parece ameaçada, a idéia do campo de concentração ressurge persistentemente na política americana.
Por mais de dois anos, desde o 11 de setembro, até que a ocupação anglo-americana do Iraque começasse a revelar falsidades inerentes em sua política e em sua visão do mundo, George Bush Jr. gozou de popularidade, na crista da onda do nacionalismo americano. Bombardeados pelo sentimento de patriotismo cego e intimidados pelo ostracismo potencial, apenas alguns poucos no poder legislativo e na grande mídia falaram honestamente sobre quão provinciano e isolado estava o país em meio à comunidade internacional. O caráter conformista e, mais ainda, xenófobo do público americano nunca esteve tão evidente quanto durante estes dois anos.
Quando uma carta aberta, intitulada "Para que estamos lutando: uma carta da América", assinada por 60 intelectuais proeminentes, incluindo famosos conservadores, como Samuel Huntington e Francis Fukuyama, assim como acadêmicos liberais, como Jean Bethke Elshtain e Michael Waltzer, foi publicada em grandes jornais europeus, em fevereiro de 2002, tornou-se inegável que o chauvinismo não pertencia exclusivamente à Casa Branca e a alguns círculos conservadores, mas dominava também as universidades, órgãos financiadores e instituições de pesquisa.
Nessa carta aberta aos europeus, o tom autocelebratório do nacionalismo americano estava demasiadamente óbvio; mas era também notável que, ao mesmo tempo em que enfatizava o compromisso americano com o universalismo, a igualdade e a diversidade religiosa e étnica, a carta não demonstrava a menor compreensão das histórias nas quais os EUA agiram como uma potência imperial, dando origem a desigualdades e relações coloniais em todo o mundo.
A autocelebração de valores universais em casa é acompanhada, assim, do estabelecimento de forças imperialistas e neocoloniais no exterior; a erosão dos princípios democráticos e anti-racistas em questões de direitos humanos básicos, imigração e naturalização na frente doméstica constitui o pano de fundo da dominação militar americana global. De modo que, durante o governo Bush, no momento de maior alvoroço do nacionalismo americano, testemunhou-se uma espécie de síntese dos ataques fascistas aos princípios democráticos e parlamentares, aliados hoje a uma capacidade militar sem precedentes, que permite aos EUA a preempção militar em virtualmente qualquer lugar do mundo.
Diz-se freqüentemetne que a autocelebração é um traço notório do nacionalismo americano; ela serve como um modo ideológico de assimilação em uma sociedade de imigrantes. Precisamente por causa do medo de exclusão iminente, os cidadãos dessa sociedade tendem a demonstrar publicamente seu patriotismo e dedicação aos "valores americanos", de modo a adquirir auto-estima enquanto cidadãos dos EUA. Inevitavelmente, essa tendência tem sido ainda mais conspícua entre aqueles grupos étnicos designados como suspeitos de envolvimento em problemas de segurança. Em vista das notícias de que diversas pessoas de aparência árabe foram baleadas ou linchadas nos meses em seguida ao 11 de setembro, não é de surpreender que muitos estudantes de pele mais escura, com nomes que soam árabes, de fé islâmica ou oriundos de países como Irã, Paquistão, Índia ou Indonésia tenham sido alertados por seus pais para hastear a bandeira americana de modo visível em frente a suas residências e evitar manifestações públicas antigovernamentais, tais como passeatas pela paz.
Certamente, essa combinação peculiar de conformismo e nacionalismo em casa e desavergonhado uso de violência militar imperialista no exterior não é única e exclusiva dos EUA. Há casos dignos de comparação histórica, um dos quais é o Império Japonês dos anos 1930 e início dos anos 1940.
Essa peculiar combinação de opressão violenta aos dissidentes políticos - nacionalismos étnicos anticoloniais e comunistas - e o compromisso idealista com o universalismo é um aspecto freqüentemente negligenciado nos estudos do fascismo japonês: de um lado, a afirmação da diversidade multiétnica por parte do Estado e a implementação de políticas integracionistas, com vistas à posterior assimilação da população colonial da Coréia e Taiwan à nação japonesa; de outro um expansionismo militar incontrolável e massacre da população civil na China.
Não se trata de afirmar simplesmente que o imperialismo americano atual é semelhante ao imperialismo japonês do passado. Muitas semelhanças podem ser encontradas entre imperialismos de modo trans-histórico e trans-regional, como poder-se-ia também encontrar enormes diferenças. Não se trata de iniciar um jogo interminável de semelhança e diferença, mas de buscar uma transformação de nossa perspectiva do papel da minoria sob o nacionalismo imperial, examinando em conjunto alguns aspectos dos imperialismos japonês e americano. A comparação poderia igualmente envolver outros casos de nacionalismo imperial. Como o Estado pacifica o povo oprimido pela violência militar? Como o Estado imperial consolida a solidariedade nacional, apesar da discriminação racial, divisões de classe econômica e outros modos de desigualdade?
Essas são questões da minoria, e são essenciais em minha investigação comparativa dos imperialismos, porque a minoria é a categoria socio-política que marca a falha e o limite da comunidade nacional. Embora o racismo tente definir a minoria em termos de características naturais ou biológicas, está claro que ela não pode ser jamais naturalizada de tal forma, nem entendida fora do processo de formação da própria comunidade nacional. A minoria é sempre uma categoria contingente, uma identidade imposta de fora e de maneira forçada.
Ao colocar essas questões, descobre-se logo que tanto o imperialismo americano como o japonês tiveram de responder de maneira eficiente e implementar diversas políticas visando transformar um indivíduo oprimido em um sujeito-súdito leal à nação. Desse modo, focalizando os regimes de formação subjetiva - isto é, o processo por meio do qual o indivíduo se constitui simultaneamente enquanto sujeito e súdito da nação - pode-se entender como um indivíduo que é parte de uma minoria quer ser reconhecido enquanto verdadeiro membro da comunidade nacional, e se convence a servir as forças armadas, antecipando voluntariamente sua própria morte. Muitos residentes das montanhas de Taiwan, que foram os mais severamente oprimidos pela autoridade colonial japonesa, acabaram por tornar-se alguns dos mais patrióticos soldados do exército imperial japonês no início dos anos 1940. Os feitos do 442º batalhão de combate dos EUA na Segunda Guerra Mundial, constituído por nipo-americanos, atestam a coragem e determinação daqueles que buscavam identificar-se com a nação americana ao custo de morrer por ela. O que se vê em tais relatos é o modo pelo qual a minoria é apropriada no discurso do nacionalismo imperial e a técnica através da qual um leal sujeito-súdito do império é fabricado a partir de um indivíduo que sofre de discriminação racial e colonial. A tendência autocelebratória no nacionalismo americano é claramente consistente com tais regimes de formação subjetiva. A filosofia japonesa da primeira metade do século XX, notável por sua penetrante discussão da subjetividade, esteve profundamente investida na criação de tais técnicas para o Império Japonês.
A esquerda americana culpa freqüentemente o Estado de segurança nacional - o enorme complexo de aparatos estatais, como a rede militar-industrial, os órgãos de inteligência e a tecnocracia policial, construidos para proteger os EUA de perigos iminentes - por todos os males do imperialismo americano, recusando-se, assim, a questionar o nacionalismo do povo da "America". Mas, será mesmo possível separar tão facilmente imperialismo e nacionalismo? Do ponto de vista da minoria, a separação entre imperialismo e nacionalismo perde sentido. O indivíduo da minoria é forçado a aceitar o papel de soldado imperialista por sua determinação em tornar-se um membro da nação e a encontrar em seu patriotismo e em sua devoção à nação motivação e desculpa para o assassinato de civis, tortura e participação em atrocidades.
Na medida em que a rede americana de bases militares, seus serviços de inteligência e os agentes de sua indústria militar cobrem virtualmente a totalidade do globo, o nacionalismo americano não é mais apenas um problema do povo americano. Ele afeta o destino e o bem-estar do resto do mundo. É hoje uma tarefa urgente - não apenas para os intelectuais nas ciências humanas e sociais - analisar objetivamente o nacionalismo imperial americano e avaliar suas obsessões, desejos e efeitos na organização sócio-econômica do mundo atual.
Comparando os diferentes legados imperialistas no Leste Asiático, por exemplo, revela-se quanto os japoneses aprenderam com a experiência inglesa e, por sua vez, quantas de suas estratégias coloniais - a burocracia colonial na Coréia do Sul e Taiwan, uma extensa rede militar de prostituição - foram posteriormente apropriadas pelos americanos. Ao mesmo tempo, a perspectiva comparativa nos permite ver as semelhanças e conexões na opressão e luta das minorias em diversas partes do mundo e a possibilidade de estabelecimento de redes internacionais de questionamento, colaboração e resistência. É nesse sentido que a análise comparativa dos mecanismos imperialistas com atenção ao papel fundamental das minorias me parece extremamente útil.
Pedro Erber é doutorando em filosofia política e literatura na Universidade Cornell, estudou filosofia japonesa na Universidade de Tóquio e é autor de "Política e Verdade no Pensamento de Martin Heidegger" (Loyola).