|
janeiro 28, 2004
Minuta do Decreto do Sistema Nacional de Museus
Minuta do Decreto do Sistema Nacional de Museus, distribuído na internet por José do Nascimento Júnior, Diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais
DECRETO Nº , DE DE 2004
Dispõe sobre a criação do Sistema Brasileiro de Museus e dá outras providências.
DECRETA:
Art. 1º. As atividades dos museus brasileiros serão desenvolvidas sob a forma de sistema, denominado Sistema Brasileiro de Museus.
Parágrafo Único - O Sistema Brasileiro de Museus tem por objetivo a cooperação na áreas de documentação, pesquisa, conservação, restauração, difusão e capacitação de recursos humanos entre o Ministério da Cultura e as unidades museológicas que integram o Sistema.
Art. 2º. Para fins deste Decreto, consideram-se unidades museológicas os museus ou entidades afins, desde que sejam instituições permanentes, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, atendidas por pessoal especializado, com acervos abertos ao público e destinadas a coletar, pesquisar, estudar, conservar, expor e divulgar os testemunhos materiais do homem e de seu meio ambiente, com objetivos culturais, educacionais, científicos e de lazer.
Art. 3º. Integram o Sistema Brasileiro de Museus:
I - Os museus e casas de cultura vinculados ao Ministério da Cultura;
II - Os museus federais integrantes da estrutura dos demais Ministérios;
III - Os demais museus, públicos ou privados, que tenham especial relevância pela importância de suas coleções, e que se incorporem ao Sistema mediante convênio (ou outro instrumento similar a ser definido) com o Ministério da Cultura;
IV - Os Sistemas e Redes Estaduais e Municipais de Museus.
§ 1º A Associação Brasileira de Museologia e o Conselho Federal de Museologia poderão integrar o Sistema, a seu critério, mediante convênio (ou outro instrumento similar a ser definido) com o Ministério da Cultura;
§ 2º Os museus integrantes do Sistema Brasileiro de Museus deverão efetuar seu registro no Cadastro Nacional de Museus, previsto no inciso XV do art. 4º.
§ 3º Os museus integrantes do Sistema Brasileiro de Museus terão preferência no apoio a projetos via Fundo Nacional de Cultura.
Art. 4° - Constituem atribuições do Sistema Brasileiro de Museus:
I - promover a articulação entre os museus existentes no Brasil, respeitada sua autonomia jurídico-administrativa, cultural e técnica;
II - definir diretrizes gerais de orientação para o cumprimento dos objetivos do Sistema;
III - desenvolver ações em consonância com o disposto na Política Nacional de Museus, com vistas a cumprir os itens previstos em seus eixos programáticos;
IV - estabelecer critérios de identidade baseados no papel e na função do museu junto à comunidade em que atua;
V - estabelecer e acompanhar programas de atividades, de acordo com as especificidades e o desenvolvimento da ação cultural de cada entidade museológica e a diversidade cultural brasileira, respeitando o patrimônio cultural das comunidades indígenas e afrodescendentes, de acordo com suas especificidades e diversidades;
VI - estabelecer e divulgar padrões e procedimentos técnicos que sirvam de orientação aos responsáveis pelos museus;
VII - prestar assistência técnica às entidades participantes do Sistema e a núcleos museológicos, de acordo com as suas necessidades e também nos aspectos relacionados à adequação, fusão e reformulação de museus;
VIII - proporcionar o desenvolvimento de programas de incremento, melhoria e atualização de recursos humanos, visando ao aprimoramento do desempenho museológico;
IX - propor formas de provimento de recursos, financiamento e fomento destinados à área museológica no Brasil;
X - estimular a participação democrática dos diversos segmentos da sociedade, inclusive da iniciativa privada, de museus comunitários, ecomuseus, museus locais, museus escolares e outros, reforçando os interesses na viabilização e manutenção dos objetivos do Sistema;
XI - estimular propostas de realização de atividades culturais e educativas dos museus junto às comunidades;
XII - acompanhar, regularmente, os programas e projetos desenvolvidos pelos museus integrantes do Sistema, avaliando, discutindo e divulgando os resultados;
XIII - promover e facilitar contatos dos museus com entidades nacionais ou internacionais, capazes de contribuir para a viabilização dos projetos das instituições filiadas ao Sistema;
XIV - incentivar a criação de sistemas estaduais e municipais de museus;
XV - implementar o Cadastro Nacional de Museus, visando à produção de conhecimento e informações sobre a realidade museológica no país;
XVI - criar e aperfeiçoar a legislação que oriente a atuação dos museus no país;
XVII - propiciar e incentivar a formação, atualização e valorização dos profissionais de museus do país;
XVIII - desenvolver políticas de aquisição de bens culturais móveis e de gestão de coleções;
XIX - promover o estudo, a salvaguarda, a valorização e a divulgação do patrimônio cultural do país, enquanto fundamento da memória coletiva e individual, fator de identidade nacional e fonte de investigação científica e de fruição estética.
Art. 5º. A coordenação geral do Sistema Brasileiro de Museus ficará a cargo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, por meio do Departamento de Museus e Centros Culturais, ao qual compete identificar alternativas com vistas ao traçado de diretrizes para o exercício da atividade sistematizada, estabelecendo orientação normativa e supervisão técnica, emitindo recomendações, resoluções e outros pronunciamentos sobre matéria de competência do Sistema.
Art. 6º. O Sistema Brasileiro de Museus disporá de Conselho específico, presidido pelo presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ou, na sua ausência, pelo diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais, com a finalidade de definir diretrizes e ações a serem realizadas, bem como o aprimoramento do Sistema.
§ 1º O Conselho do Sistema Brasileiro de Museus será constituído:
I - pelo presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional;
II - pelo diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan;
III - pelo Secretário de Formulação e Avaliação de Políticas Culturais do Ministério da Cultura;
IV - pelo Secretário de Articulação Institucional e Difusão Cultural do Ministério da Cultura;
V - por um representante do Ministério da Educação;
VI - por um representante do Ministério da Ciência e Tecnologia;
VII - por um representante do Ministério da Defesa;
VIII - por um representante da Fundação Casa de Rui Barbosa;
IX - por um representante dos museus estaduais;
X - por um representante dos museus municipais;
XI - por um representante dos museus privados;
XII - por um representante do Conselho Federal de Museologia;
XIII - por um representante da Associação Brasileira de Museologia;
XIV - por um representante do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus;
XV - por dois representantes do meio acadêmico.
§ 2º O Conselho do Sistema Brasileiro de Museus reunir-se-á, em caráter ordinário, a cada dois meses e, extraordinariamente, por convocação do presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ou por solicitação escrita pela maioria dos integrantes do Conselho.
§ 3º O Conselho do Sistema Brasileiro de Museus reunir-se-á pelo menos uma vez por ano com representantes de sistemas ou redes estaduais e municipais de museus.
§ 4º O presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional poderá convidar entidades e profissionais não previstos no § 1º deste artigo para participar das reuniões do Conselho.
Art. 7º. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
Brasília, de setembro de 2003.
Sr. Presidente,
Existem hoje, em média, 2000 instituições museológicas espalhadas pelas diversas cidades brasileiras. Esses museus, no entanto, muitas vezes desenvolvem suas atividades de forma fragmentada, não se relacionando entre si nem com o poder público. Essa falta de comunicação e articulação compromete o desenvolvimento dos museus brasileiros e cria profundas insuficiências no campo museológico do país.
Nesse contexto, a criação do Sistema Brasileiro de Museus, proposto neste Decreto, tem como objetivo organizar os museus existentes no Brasil, sejam eles públicos ou privados, e normatizar os procedimentos tendentes à criação de novos museus. A finalidade é desenvolver um campo de gestão e configuração do setor museológico brasileiro, centralizado mas articulado, de modo a apoiar a atuação dos museus e conduzir políticas públicas em nível nacional para o setor.
A institucionalização do Sistema vem atender a uma antiga demanda do setor museológico no país e configura-se um passo fundamental para a implementação efetiva da Política Nacional de Museus, lançada pelo Ministério da Cultura em maio de 2003. Uma das premissas dessa Política é a constituição de uma ampla e diversificada rede de parceiros que, somando esforços, contribuam para a valorização, a preservação e o gerenciamento do nosso patrimônio cultural, de modo a torná-lo cada vez mais representativo da diversidade étnica e cultural do Brasil.
A exemplo da região da Catalunha e de países como Portugal e Espanha, entre outros onde já existem sistemas ou rede de museus, a coordenação geral do Sistema Brasileiro de Museus ficará a cargo do Ministério da Cultura, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em função das características de suas atribuições. Na verdade, essa proposta visa a dar continuidade ao trabalho já desenvolvido pelo Ministério da Cultura na condução da Política Nacional de Museus, ao se tornar um espaço de interlocução e articulação da política para o setor museológico brasileiro.
De modo a dar representatividade ao Sistema Brasileiro de Museus, ele irá dispor de um Conselho específico, composto de diversas instituições governamentais e da sociedade civil. Este Conselho terá como finalidade definir as diretrizes e atividades a serem realizadas pelo Sistema, como também promover seu aprimoramento.
A institucionalização do Sistema Brasileiro de Museus será, enfim, um marco na atuação do Estado em prol da preservação e valorização dos nossos patrimônios histórico, artístico, arqueológico e científico. O museu é a instituição fundamentalmente responsável pela promoção desse patrimônio e pela sua difusão junto aos cidadãos. É premente, portanto, que o poder público e a sociedade civil se unam, de uma forma articulada e sistematizada, a fim de criar o aporte necessário para o desenvolvimento dos museus brasileiros. E atuar em forma de sistema é a forma mais viável para se atingir essa meta.
janeiro 22, 2004
Panorama da Arte Brasileira por Luiz Camillo Osorio
Este texto foi publicado originalmente no jornal O Globo, no Segundo Caderno, no dia 14 de janeiro de 2004.
Uma minibienal problemática
LUIZ CAMILLLO OSORIO
Panorama da Arte Brasileira: seleção de artistas em mostra no Paço Imperial revela uma perspectiva redutora da história recente da arte brasileira
O "Panorama da arte brasileira", atualmente no Paço Imperial, ganhou projeção de uma minibienal, pondo em foco, a partir de alguma linha curatorial, a produção de arte recente. Realizado desde 1969, sob os auspícios do MAM-SP, ele se fortaleceu em meados da década passada. A edição deste ano trouxe uma novidade: o cubano, radicado nos Estados Unidos, Gerardo Mosquera foi convidado para a curadoria e realizou uma exposição interessante porém problemática. O seu conhecimento de longa data da arte brasileira não se fez valer como poderia, assim como o espaço apertado complicou a leitura das obras. Vamos por partes.
No nome, nossa vocação para desorganizar estruturas
Comecemos pelo subtítulo: "19 desarranjos". Por mais precisa conceitualmente que seja, a óbvia conotação orgânica desta palavra atrapalha. É uma palavra feia. Dezenove é apenas o número de artistas. Mas tudo bem, implicâncias de lado, fiquemos com o desarranjo, pois as razões do curador são boas e qualificam bem o que ele acaba por mostrar sem ironia, por favor. Segundo Mosquera, desarranjo pretende revelar a nossa vocação para desorganizar estruturas, subvertendo "a partir de dentro o marco construtivo, mas sem transpô-lo e sim ampliando suas possibilidades, potenciando-as de forma nova". O maior mérito é sua vontade de discutir as singularidades poéticas brasileiras sem nenhuma apologia nacionalista ultrapassada. Para isto, contaram a favor o seu olhar de estrangeiro e a inclusão de artistas não brasileiros nesta exposição. Assim podemos começar a pensar uma noção de brasilidade sem fronteiras e identidades fixas.
A escolha dos artistas, seguindo a linha conceitual traçada pelo curador, acabou se mostrando comprometida com uma perspectiva redutora da nossa história recente. Repetiu-se uma visão, muito batida lá fora, do desenvolvimento da arte brasileira restrita ao eixo Neoconcretismo e Cildo Meireles. Não se discute a liberdade do curador, a pertinência de sua leitura nem a importância dos artistas escolhidos. O ponto é a insistência em uma única leitura e a reincidência de certos nomes. Tomando a desestruturação e o deslocamento da referência construtiva como proposta curatorial, parece arbitrário juntar artistas como Cildo Meireles, Ernesto Neto, Vik Muniz, Leonilson e Adriana Varejão. A única justificativa talvez seja o pouco tempo para a realização da exposição e o fato de estes artistas facilitarem uma itinerância internacional para o "Panorama".
Destaque para o resgate de Umberto Costa Barros
Outro ponto discutível é o fato de a obra de Cildo Meireles além do magnífico porém bissexto Umberto Costa Barros ter sido a única referência efetiva da geração vinda dos anos 70. Como se ele fosse uma ilha poética isolada e marco absoluto para nossa produção atual. Tivesse o curador explorado outras referências, além de Cildo, como Barrio e Antonio Dias, para citar só dois, ele teria alargado, e muito, os horizontes de compreensão de nossa vitalidade e de nosso desarranjo contemporâneos. A obra de Leonilson certamente ficaria mais abrigada historicamente, assim como as de José Damasceno, Fernanda Gomes e mesmo Adriana Varejão.
Deve ser sublinhado, para não ficar apenas nos senões, o importante resgate do artista Umberto Costa Barros, cujas poucas obras realizadas, no fim dos anos 60, fizeram época. Uma pena não ter entrado aqui no Rio a maravilhosa instalação com os bancos articulados em precário equilíbrio, que foi, indiscutivelmente, a grande sensação deste "Panorama" em São Paulo. Além disso, cabe destacar a aposta nos artistas de Brasília Adriano e Fernando Guimarães, que vêm conseguindo realizar, nas suas performances, o difícil casamento de força plástica e presença dramática. O mesmo destaque pode ser dado para a jovem Sara Ramo, cujos dois vídeos, "Ceia" e "Oceano Possível", exploram o conceito da mostra com delicadeza e poesia.
Falta facilitar a relação do público com as obras
A maneira de "expor" os vídeos, de modo a facilitar a relação com o público, é uma questão a ser resolvida. No mínimo, deveria ser possível sentar para vê-los. Os gaúchos Lucas Levitan e Jailton Moreira também realizaram, em dupla, um trabalho inteligente, silencioso e com enorme graça. Inventaram capas de CDs imaginários porém possíveis e os expuseram em uma vitrine na loja de discos do próprio Paço, para surpresa dos mais atentos e curiosos. Quem não gostaria de comprar um CD intitulado "Benditos", com Itamar Assunção e Naná Vasconcelos, ou então "Twin hearts", com Lou Reed e Laurie Anderson? A concepção gráfica das capas é primorosa. Entre os três estrangeiros presentes, cabe mencionar a chinesa Kan Xuan, principalmente pelo vídeo com as cebolas desmontadas e remontadas. A desconstrução de uma lógica e de um tempo utilitários, tão entranhados em nossa experiência cotidiana, parece ser o denominador comum dos vários desarranjos poéticos.
No mais, cabe repetir a relevância, para a desprovincianização do nosso circuito de arte, destas interferências curatoriais realizadas por críticos internacionais sérios e de renome. Só assim conseguiremos de fato uma inserção mais afirmativa e abrangente da arte brasileira.
janeiro 17, 2004
O risco dos coletivos por Luisa Duarte
O risco dos coletivos
LUISA DUARTE
Este texto foi publicado originalmente na revista eletrônica Trópico do UOL: www.uol.com.br/tropico
Tendência ao populismo é uma ameaça às investidas críticas de novos grupos artísticos
Lisette Lagnado, editora da seção "em obras" de Trópico, enviou um e-mail para a jornalista e crítica de arte Luisa Duarte com o release da exposição "Açúcar Invertido II", em Nova York (leia no final do texto), pedindo sua opinião acerca do assunto. Era uma sondagem para saber se a notícia mereceria uma pauta para esta revista eletrônica. A editora decidiu reproduzir a resposta de Luisa Duarte, na seqüência da "ocupação artística" realizada em São Paulo, no edifício Prestes Maia, nos dias 13 e 14 de dezembro. Embora de naturezas diversas, são ambas intervenções no tecido social da cidade, atitude que ganhou velocidade nos últimos meses e merece uma pausa para a reflexão.
Querida Lisette,
Tento responder algumas coisas sobre o que me parece essa ação "Açúcar Invertido II" em NY. Não estive no "Açúcar I", que ocorreu no ano passado, 2002, durante 40 dias, no belo edifício Gustavo Capanema, sede da Funarte, aqui no Rio. Acompanho meio distante, através de textos, palestras e conversas, as ações desta turma que, em matéria no caderno "Mais!", da "Folha", um tempo atrás, recebeu o nome de "artivistas". Misto de arte e ativismo político.
Bem, vou colocar em alguns pontos como compreendo a importância desse tipo de intervenção, para em seguida expor algumas dúvidas que tenho em relação a essas ações.
Comecemos por lembrar de algumas palavras do próprio Edson Barrus, coordenador do Açúcar e do Espaço Experimental Rés do Chão, publicadas no último número do jornal "Planeta Capacete": "produzir saber longe dos centros de controle"; "esvaziar critérios de escolhas/seleção/curadoria"; "resgate da tradição da conversa"; "convivência, troca horizontal".
A idéia de produzir saber longe dos centros de controle me parece ser o ponto norteador desse tipo de ação. Trata-se de estabelecer alternativas de exposição e circulação de idéias e de obras, que não possuem espaço nos centros tradicionais do circuito de arte. É óbvio o descompasso entre grande parcela da produção artística (experimental, múltipla, em processo) e o formato de "eventos" cada vez mais exigido pela instituição, seja ela o museu ou a galeria (a Vermelho, em São Paulo, poderia ser apontada como uma exceção).
Enxergo em ações como o Açúcar e o Rés do Chão esta possibilidade de expor o que não encontra lugar no circuito tradicional e, outro dado importante, um tempo/lugar para que seja realizada essa troca tão almejada ("resgate da tradição da conversa") entre artistas, críticos, curadores, público, de forma horizontal, ou seja, sem hierarquia. Com isso, eles têm a intenção de diluir, ou mesmo liquidar, papéis, como o de curador e crítico, intenção com a qual não compartilho, como explico mais adiante.
A dinâmica que eles põem em prática permite que tomemos contato com o processo do artista, e não apenas com o resultado final de uma obra, que possamos ver de perto os desdobramentos do trabalho, antes e depois de realizado. Acho isso muito positivo, dado que o funcionamento das instituições artísticas tem negado este espaço para a experimentação, a multidisciplinaridade, o diálogo, a troca, que pode ser muito rico.
Assim, essa ênfase no processo, e não no evento, faz com que a intenção que move esse tipo de ação me pareça relevante, haja vista que vivemos a época das mostras milionárias, marcadas pelo paradigma do espetáculo, que ao fim e ao cabo, na maior parte das vezes, a nós nada lega de mais substancial, além de lucros e retorno de imagem para as empresas patrocinadoras.
Ou seja, ações como o Rés e o Açúcar colocam-se obviamente contra a dinâmica do circuito estabelecido. Trata-se de uma clara atitude de resistência e uma tentativa de fazer com que haja a possibilidade de apontar criticamente as distorções do circuito e também de criar um espaço para uma arte ainda não institucionalizada, ainda não esvaziada de seu poder de intervenção crítica, de inconformismo, dúvida, vontade de mudança (seja em que dimensão for).
Vejo portanto com bons olhos esta potência de agir que aposta na possibilidade de fazer a roda girar sem a grana "ideal", ou praticamente sem grana. Exposições/ações ocorrem, publicações (mesmo que impressas precariamente) saem, a arte e o pensamento circulam... Além disso, o Rés e o Açúcar têm o mérito de acolherem produções de outras regiões do país que não o eixo Rio/São Paulo, o que é salutar, necessário...
agora, com esta manifestação em Nova York, consegue, pela sua flexibilidade, por não estar fincado num único lugar, aliado ao uso das novas tecnologias, estabelecer uma troca com a produção de diversos países e fazer sua segunda edição, "Açúcar Invertido II". Esta conta com a participação, in loco ou via internet, de artistas do Brasil e do exterior, como Ricardo Basbaum, Rachel Rosalen, Yann Beauvais, Carine Cadilho, Thomas Köner, Carmem Riquelme, Rick Santos, e coletivos como Los Vaderramas, Grupo Empreza (Goiânia), e Grupo Urucum (Macapá).
Outro traço claro contido nessas ações é uma tentativa de retorno (pós-anos 60/70) a um sentido de trabalho coletivo, um fazer junto, um compartilhar, que durante a década de 80 e início da de 90 (boom do mercado de arte brasileiro) foi-se perdendo.
Mas vamos aos poréns: "esvaziar critérios de escolhas/seleção/curadoria". Ok, como conhecedores do lobby fortíssimo que governa o circuito de artes plásticas, essas pessoas tentam abrir um campo no qual a produção artística não estaria submetida a critérios de escolhas/seleção/curadoria. Mas não sejamos ingênuos. Sabendo foucaultianamente que tudo é poder, mesmo no Rés do Chão existem, sim, escolhas, critérios, e nem tudo é tão democrático assim. Assim, fico pensando se esta propalada "democracia" dos chamados coletivos não possui uma certa dose de populismo, tendência esta mais que perigosa.
Outra posição (já veiculada em texto do mesmo Edson Barrus) consiste em generalizar e colocar críticos, diretores de instituições, curadores, colecionadores, galeristas, professores acadêmicos e jornalistas especializados, todos sem exceção, num mesmo saco de inimigos, como instâncias "oficiais", necessariamente autoritárias e perniciosas. Trata-se de uma redução extremamente míope. Acredito que não se pode prescindir desses agentes que, junto com os artistas (protagonistas maiores), podem enriquecer a engrenagem do circuito das artes plásticas. Tudo depende da forma como atuam.
Questiono-me também se esta ênfase na crítica, no "dizer não", na necessidade de atuar "contra", não acaba por fazer com que todo o processo seja marcado por um tom mais reativo do que propositivo, no qual predomina uma tonalidade afetiva de cunho ressentido/frustrado, que por vezes resvala em um discurso agressivo.
Ao meu ver, isso não leva a lugar algum. Me vem então à mente um verso do Chico Science, que diz mais ou menos assim: "venho me organizando para desorganizar". Ou seja, para desorganizar o negócio, há que se organizar anteriormente de alguma forma, do contrário perde-se muito da potência das ações desorganizadoras.
Uma última especulação, agora de caráter pessoal. Interesso-me especialmente em adentrar o universo de cada artista, e isto demanda tempo, para olhar, ler, conversar, pensar. Nestes grandes happenings, com muita gente e coisas acontecendo simultaneamente, como imagino seja o "Açúcar", temo que percamos de vista a possibilidade do contato mais calmo com cada manifestação. Talvez este seja o preço a pagar por ser um fenômeno de caráter coletivo.
Por agora é só, já tomei bastante o seu tempo. Mas teria outras coisas para falar a respeito. O tema me interessa. Apesar de não ser mesmo a melhor pessoa para falar sobre o assunto, afinal não estou tão próxima assim. Tudo isso são especulações pessoais. Uma amiga minha, que está indo participar do "Açúcar" em NY, a Cecília Cotrim, que talvez você conheça (professora de história da arte, organizou com a Gloria Ferreira o livro "Clement Greenberg e o Debate Crítico"), é uma boa pessoa para falar a respeito deste assunto.
Beijos,
Luisa
AS A SATELLITE
Rés do Chão
Açúcar Invertido II
Texto distribuído em inglês na internet.
O "Açúcar Invertido II" está acontecendo em Nova York, entre os dias 2 de dezembro de 2003 e 10 de Janeiro de 2004, e consiste em uma "quarentena", 40 dias nos quais ocorrem uma série de eventos e programas com artistas e ativistas culturais "manifestando sintomas da Arte Contemporânea". "Açúcar Invertido II" está sendo realizado sob o apoio da "The Americas Society's visual arts initiative AS A SATELLITE", um programa de iniciativas culturais independentes das Américas.
Para realizar o "Açúcar Invertido II" o Rés do Chão, um espaço alternativo no Rio de Janeiro, está operando temporariamente em um loft no Brooklyn, Nova York, localizado na 71 North 7th Street, entre Wythe e Kent Streets, em Williamsburg.
Neste período, o Rés do Chão funcionará como a casa do artista Edson Barrus, fundador do Rés do Chão, e hospedará dezenas de artistas que estarão participando do "Açúcar Invertido II". Este loft também irá funcionar como ateliê, local de performances, exposições e um laboratório criativo aberto ao público.
Como parte da programação do "Açúcar Invertido II" o Rés do Chão organizou transmissões de vídeo, performances, exposições e intervenções em espaços públicos que poderão ser vistos não apenas no Rés do Chão, em Williamsburg, mas também em programas de rádio (WKCR 89.9), televisão e internet.
A programação do "Açúcar Invertido II" envolve dezenas de artistas e produtores culturais do Brasil e de outros países, incluindo Ricardo Basbaum, Yann Beauvais, Carine Cadilho, Ana Paula Cardoso, Marcelo Cucco, Thomas Köner, Artur Leandro, Daniela Mattos, Carmem Riquelme, Rick Santos, Romano, Tato Teixeira, Paulo Vivaqua, e coletivos como Los Vaderramas, Grupo Empreza, Grupo Urucum, e Dig Improvizzo, entre outros.
Vários desses artistas e coletivos estarão visitando Nova York hospedados no loft do Rés do chão em Williamsburg durante a quarentena. Outros artistas já começaram e continuarão a mandar seus projetos de outros lugares: Bruno Vieira, baseado em Belo Horizonte, tem convidado alguns artistas para mandarem seus "pacotes de arte" por correio; Camila Rocha estará conectada via e-mail da Finlândia; e Rachel Rosalen estará transmitindo sua vídeo-performance direto do Japão.
Luisa Duarte
É jornalista e crítica de arte. Atualmente cursa Especialização em Arte e Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio.