|
novembro 24, 2003
Opinião de Ligia Canongia sobre o Panorama da Arte Brasileira
Sobre o debate em torno do "desarranjo" do Mosquera, tenho a dizer algumas coisas:
LIGIA CANONGIA
Em primeiro lugar, achei a exposição excelente: ótimas obras e artistas, diálogos pertinentes entre eles e montagem primorosa. O conceito é claro, diz respeito, sim, a uma "desregulagem" formal da arte brasileira (muito embora conserve-se ainda, como diz Mosquera, um resíduo de estrutura subjacente), e que considero ainda rastro de nossa experiência neoconcreta.
Discordo de José Resende de que não há "desarreglo" algum na arte brasileira atual e que há uma "chatura" dominante, e a prova disso pode ser a própria exposição do Mosquera.
Na minha opinião, a curadoria foi precisa, sensível à nossa produção contemporânea, e louvável sobretudo por se tratar de um curador estrangeiro, o que nos revela que ele conhece ou tem buscado conhecer em profundidade o que se faz e como se faz no Brasil.
Quanto à dissolvição das "categorias" (pintura, escultura, gravura, etc), é absolutamente adequada às próprias formas de se fazer arte no mundo desde meados do século, quando essas categorias começaram a se contaminar ou dissolver, ou a entrar nos domínios do "expanded field", que Rosalind Krauss tão bem sustentou. Seria, portanto, passadista e obsoleto voltar a exigir que tais categorias fossem "respeitadas" nos dias de hoje.
Achei também interessante (no sentido daquilo que verdadeiramente "interessa") o curador ter reduzido o número de artistas para 21, quando panoramas anteriores mostravam cerca de 45 artistas. Primeiro, porque, como ficou claro na fala do Mosquera, ele rejeita a produção de mostras espetaculares, como as Bienais, e preferiu concentrar a atenção sobre parcela menor e mais selecionada da produção . Depois, porque, como curador, acho que tem o direito de dimensionar a exposição da melhor forma que possa atender a suas exigências conceituais, não importando se com 10, 20 ou 40 artistas. Optou por uma amostragem restrita, resguardando a presença física das obras, suas escalas, distribuição no espaço e melhor fruição do espectador.
O único "senão", no meu entender, foi incluir a presença de alguns poucos estrangeiros na mostra.
Os argumentos são os seguintes:
1- não é a participação de 3 ou 4 estrangeiros que comprova a "imersão" da arte brasileira no circuito internacional.
2- não é esta participação que comprova que a arte brasileira contemporânea não tem mais problemas com a criação de "identidade" ( aliás, se Mosquera considera que sua concepção de "desarranjo" tem a ver com parcela importante da produção nacional, e que este poderia ser um certo sintoma de "brasilidade" - o que muitos outros críticos brasileiros e estrangeiros, há muito tempo, já haviam assinalado - ele estaria se contradizendo, já que haveria aí, embutida na sua própria concepção curatorial, um índice de noção de "identidade" ).
3- não é a presença de estrangeiros que baliza ou autentica a qualidade da produção brasileira. Isso camufla a idéia "terceiromundista" de que precisamos do respaldo do exterior para nos legitimar.
4- não há porque "desarranjar" o princípio da mostra - "Panorama Brasileiro"-, porque panorama se faz no mundo inteiro, com seus artistas, sem que isso jamais tenha significado xenofobia, reserva de mercado ou algo assim. A Bienal de Whitney, por exemplo, foi restrita a artistas americanos durante anos. Apenas recentemente abriu-se à participação de mexicanos e canadenses. Será que o Mosquera, se fosse curador dessa bienal, iria tentar incluir artistas europeus, por exemplo? Nunca.
Ligia Canongia é curadora e crítica de arte.
Desarrumado/Desarranjo, como assim, não estou entendendo?!
PATRICIA CANETTI
Curiosa pretensão do curador cubano Gerardo Mosquera; a de ter desarrumado o Panorama de Arte Brasileira. Na concepção do curador, ele pretenderia desarrumar o Panorama deixando de dar uma visão panorâmica a exposição, concentrando o seu foco, diminuindo o número de participantes, tendo ainda por referência o abandono da divisão por categorias. O problema é que depois de termos visto a edição anterior, em que os curadores Paulo Reis (PR), Ricardo Basbaum e Ricardo Resende deixam longe a questão das categorias e se aventuram numa investigação sobre a diversidade do nosso circuito de arte, fica nos a impressão de que o atual Panorama nos aponta muito mais para um arranjo do que para uma desarrumação.
Me pergunto se este Desarranjo não arranja certas questões do Panorama; afinal, o que queremos do Panorama de Arte Brasileira?
(Sintomaticamente, as obras que poderiam ser desarumadas pelo público ganharam a proteção de guardinhas - no caso do trabalho de Fernanda Gomes, no dia que estive lá, havia um par de guardas para vigiar um par de copos colocados no chão -, ou de postes-organizadores-de-fila, como foi no caso de José Patrício, que teve seus dominós protegidos da interferência do público, que podia desarrumar-lhe a obra.)
Segue a reprodução de uma parte do resumo deste debate da série Trópico na Pinacoteca, publicado na Trópico, revista eletrônica de arte do UOL, editada por Lisette Lagnado.
Gerardo Mosquera e José Resende discutem a mostra Panorama
por Paula Alzugaray
O que diferencia o Panorama da Arte Brasileira de qualquer outra exposição autoral, com título e conceito definidos? Qual é a pertinência de uma representação brasileira e quais as questões que tangem a necessidade de afirmação de uma identidade e de uma nacionalidade?
Com estas questões, a crítica Lisette Lagnado, co-editora de Trópico, abriu o encontro mensal do Projeto Trópico na Pinacoteca, que no Sábado, dia 18 de outubro, trouxe para o debate o cubano Gerardo Mosquera, curador da atual edição do Panorama no Museu de Arte Moderna de São Paulo e curador adjunto do New Museum of Contemporary Art de Nova York, e o artista plástico paulista José Resende, convidado a elaborar uma crítica sobre a exposição.
As perguntas lançadas pela mediadora foram respondidas por Mosquera ao longo da apresentação de seu conceito de curadoria para o 28ª Panorama, em cartaz até 30 de novembro. "Quando o MAM me convidou, fiquei em uma situação contraditória: por um lado eu detesto as exposições nacionais, penso que não fazem mais sentido nesse momento. Por outro lado, a arte brasileira me interessa muito e é uma honra ser o primeiro estrangeiro a fazer um Panorama", começou ele. "Pensei de maneira pragmática: vamos desarrumar o Panorama".
O conceito do desarranjo, que rege esta edição e modifica o título da mostra para "Panorama (Desarrumado): 19 Desarranjos", partiu, então, em um primeiro momento, da inconformidade do curador com um modelo de exposição que pretenderia oferecer uma panorâmica da produção nacional.
Apesar desta discordância imediata, Mosquera admitiu que a concepção autoral de seu Panorama é apenas a radicalização de um processo de transformação assumido já em 1995, quando a curadoria de Ivo Mesquita abandonou as divisões de categorias de pintura, escultura e gravura e desenho, que orientavam cada uma das edições.
A crítica de Mosquera ao formato das exposições nacionais é fundamentalmente a mesma que faz em relação às grandes bienais e exposições internacionais, que na sua opinião, são "espaços amontoados, similares a enciclopédias ou supermercados, onde desaparece a comunicação com a obra".
Embasado pela experiência de ter sido o fundador das Bienais de Havana (Cuba), Mosquera delata que nas megaexposições estabelece-se "o grande problema da circulação internacional da arte contemporânea". Dirigindo-se à platéia da Pinacoteca, comparou: "Aqui na exposição do Fajardo trabalha-se o espaço como uma experiência estética. Se estivesse na Bienal de Veneza estaria tudo amontoado. Eu busquei trabalhar o espaço do MAM de forma a facilitar um diálogo entre as obras". Para chegar a essa circulação ideal, o curador diminuiu o número de artistas convidados, que variou de 35 a 45 nas quatro edições anteriores do Panorama, para 21.
Ficou claro que, para Mosquera, as representações nacionais não fazem mais sentido. E que, ainda na sua opinião, um Panorama pode -e deve- ser uma mostra autoral, "que se sustente por ela mesma, e não uma exposição burocrática, tipo embaixada".
O conceito do desarranjo
Esforçando-se para comunicar-se em "portunhol", o curador e crítico de arte cubano diz que organizou o Panorama 2003 a partir de "comentários críticos" ao modelo tradicional. Um deles é a inclusão de três artistas estrangeiros. "A presença de uma chinesa ou de um argentino parece paradoxal. Mas a escolha dos artistas foi determinada porque todos eles participam de um certo espírito da arte brasileira."
Sem perder sua dose de provocação, a presença estrangeira coloca-se também como um comentário elogioso à arte brasileira: "Tanto a arte quando a crítica brasileira têm vocação internacional e criaram distância em relação ao problema da identidade. A arte brasileira sempre foi a arte latino-americana menos vitimada pela neurose da identidade. Isso não virou uma obsessão no Brasil".
Para Mosquera, o desarranjo é o conceito mais recorrente, tendo sido observado in loco nas viagens que fez pelo Brasil para conhecer a produção. "Acho que muitos artistas brasileiros trabalham a partir de estruturas, estão muito ligados a objetos, com uma sensibilidade especial da sua materialidade. Então, procurei artistas que trabalham a partir de uma estrutura, mas desarrumando-a, desordenando-a, mesmo que a estrutura ainda fique presente".
Mosquera usou como exemplo a obra de Cildo Meireles, "Descalas", constituída por 15 exercícios de desarranjo da estrutura da escada. "Mas você ainda pode identificar a escada. Talvez, se Paul McCarthy fosse fazer o desarranjo, ele quebraria, cuspiria em cima, daria chutes e pontapés. O desarranjo da escada de Cildo é muito brasileiro: é clean -a estrutura permanece mesmo se é desarranjada", opina o crítico, autor de uma entrevista com Cildo Meireles no livro monográfico do artista publicado pela Phaidon e traduzido no Brasil pela editora Cosac & Naify.
Em seguida, Mosquera disse que o conceito do desarranjo também se aplica à "desarrumação do espaço do MAM", que foi destituído de painéis e divisórias e que teve ativados, como áreas expositivas, o banheiro e a loja -além do corredor, que já era usado normalmente no "projeto parede". O curador terminou sua exposição vislumbrando o futuro do Panorama e sugerindo que uma direção interessante seria trabalhar mais exposições autorais.
Desarrumação necessária
Na posição de "crítico", José Resende enfatizou que não faria julgamentos e que colocava na mesa o ponto de vista do artista. De entrada, elogiou o modelo "antipanorama²"adotado por Mosquera, dizendo compartilhar com o curador "a opinião de que as coisas andam muito arrumadinhas".
Mestre da forma e do espaço, formado em arquitetura pela Faculdade do Mackenzie, em 1967, Resende deixou registrada sua consonância com a abertura do espaço do MAM, comparando o museu a uma vitrine e fazendo uma menção apaixonada às concepções de arte, arquitetura e cidade da arquiteta Lina Bo Bardi, autora da reforma do prédio do museu. O artista aprovou ainda a participação de artistas estrangeiros e a diminuição do número de artistas convidados.
Frisadas as concordâncias em relação ao projeto de Mosquera, Resende indicou que seu foco de reflexão seria no sentido de "especular de onde vem uma sensação de chatura, de mesmice" exalada pela arte.
Sua reflexão começou com a evocação de um pensamento de Mira Schendel: "Partilho da opinião da Mira Schendel de que quando você faz um trabalho de arte você primeiro faz para você mesmo, correspondendo a uma necessidade expressiva que te move. Em segundo lugar, você faz para os seus pares, aqueles que estão com você no mesmo barco. E, por último, você põe aquilo no mundo e aquilo ganha caminho próprio. Por isso, não sentir estímulo com o que está sendo feito, ou seja, não criar vínculos com seus pares não é bom sinal. É mau sinal para quem produz arte".
Dirigindo-se ao visitante cubano e também lançando-se ao portunhol, Resende disse ser o "desarreglo" curatorial importante porque, em arte, está "tudo muy arreglado; tudo certinho, muito alinhado. E é nesse sentido que eu acho importante a presença de uma participação internacional". Desta maneira, iniciou uma dura crítica à produção artística atual, discordando de que o "desarreglo" seja uma característica da arte brasileira hoje.
LEIA A CONTINUAÇÃO em http://www.uol.com.br/tropico (só para assinantes do uol).
novembro 17, 2003
ARTE EM REVISTA
Ivens Machado é convidado a participar da retomada das Galerias da FUNARTE no Rio de Janeiro, no Projéteis de Arte Contemporânea, em julho de 2003.
Arte em revista
DÉBORA MONNERAT
No dia 11 de agosto de 2003, Ivens Machado nos recebeu para esta entrevista inaugural do projeto Arte em revista, agora editada e divulgada pelo Canal Contemporâneo. Nesta prazerosa conversa, foram abordadas algumas questões sobre a obra do artista, a partir dos trabalhos que apresentou na exposição de lançamento da série Projéteis de Arte Contemporânea, na Funarte, Rio de Janeiro.
Débora Monnerat
DÉBORA MONNERAT - Na exposição de lançamento da série Projéteis de Arte Contemporânea, você apresenta uma escultura e um desenho, frente a frente, como duas projeções de uma mesma imagem, que tensionam seus limites, provocando um novo fluxo imagético. A tensão e o desvio, sempre presentes em sua obra, se apresentam de que forma nesses trabalhos?
IVENS MACHADO - Eu sempre trabalho muito intuitivamente, mas as coisas acontecem porque elas têm uma estrutura que foi criada durante anos e que, de repente, se manifesta. Então, a minha tendência - que aliás é uma tendência que me agrada - é pensar um pouco magicamente, como se aquilo fosse um acontecimento totalmente inconsciente, o que não é. É muito engraçado, por exemplo, a presença desse grande desenho, uma coisa muito ligada à minha experiência, à minha vivência da arte - que no meu trabalho é muito física. Não dá para notar, mas existe uma ação sempre ligada ao movimento da direita e uma outra ao movimento da esquerda. Esse trabalho poderia se chamar Direita e Esquerda. Todos os círculos são com o braço e a mão diretos e todas as retas são com a esquerda. E o engraçado é que são cores que não são cores. Na verdade, aquilo não é cor, é simplesmente um relevo. Aquele vermelho e aquele preto que eu uso muito no meu trabalho, não posso dizer que sejam cores porque não têm nenhum colorismo, são coisas muito primárias. É como se fosse realmente um risco inicial. Mas a fisicalidade desse trabalho se representa ali de maneira bidimensional, apesar da areia e da terra envolvidas. E o outro trabalho, na verdade, é um corpo. Um corpo estendido, da cidade. Acho muito interessante esse material, que é aleatório porque eu permiti que fosse. Não escolhi esse material; pedi tantos metros cúbicos de entulho... e é lindamente rico este entulho, tem pedaços de piso, tacos de madeira, pedaços de tubo, de caixas, tem de tudo. Então, é um 'corpo de lixo'. Gosto demais dele. Agora, essa coisa de que tu falas... isso já é uma visão poética tua muito bonita, isso de que entre as duas manifestações existe uma terceira.
DM - Eu também penso muito no desenho como se fosse um fluxo que você não consegue ver, mas que está ali naquele corpo parado. Ele está distendido, ele tem um peso e você não consegue ver esse movimento. Então, algo que está ali é projetado num outro espaço.
IM - Eu nunca pensei sobre isso... Mas esse terceiro corpo, essa presença imaterial, eu acho que está sempre presente num trabalho de arte. Na verdade, eu talvez tenha escrito sobre isso... [referência ao texto publicado em 1994 no folder do projeto Atelier Finep, no Paço Imperial, e que também consta no livro Ivens Machado O Engenheiro de Fábulas]. É uma coisa que não está ali, mas que é ali.
DM - E que você sempre remete para o inconsciente, não é?
IM - Claro. Quer dizer, esse inconsciente tem que ser revisto.
DM - Não é o inconsciente freudiano.
IM - Claro, não. É um inconsciente, na verdade, composto de memória. Ninguém constrói um trabalho assim, gratuitamente. Por isso é que essa idéia mágica de que a coisa "acontece"... Não. Ela acontece porque tem um substrato, uma coisa que suporta isso. E se ela é consistente, esse substrato também é consistente. Então, aquilo está ali porque muitas coisas já estiveram ali. Quer dizer, não é assim: "Tchan"! Não é "mágica de Super-Homem". É uma coisa que está estruturada. Uma coisa que eu tenho em relação ao meu trabalho e que acho deslumbrante: tenho uma imaginação muito fértil, muito clara, e antes de realizar a obra, ela já está pronta na minha cabeça. Mas é surpreendente quando eu vejo esse trabalho realizado, porque, na verdade, não é aquilo. Quer dizer, é aquilo, mas não é aquilo. Ele tem exatamente as mesmas medidas, o mesmo elemento, mas não é. Então, isso é uma coisa que me parece mágica, que é exatamente aquele além, aquilo que não está ali. E tem essa coisa da presença ausente de que fala a física moderna, dos corpos que a gente não vê, mas que estão ali e a gente sabe que eles existem. É muito bonito isso. Um trabalho significativo tem esse aspecto, essa ampliação da imagem, a multiplicação da imagem.
DM - Você falou desse material aleatório que são resíduos de obras, mas há cerca de um ano você trabalha com esses resíduos, sejam de concreto, de telhas, de tijolos...
IM - Mais tempo até, basta lembrar do meu primeiro trabalho com argila e com cacos de telha em 2000, em Cabo Frio. Acho que isso foi o início desse trabalho, montado, porém, de maneira diferente. Esses trabalhos atuais, do ano passado para cá, eles são acúmulos. Os outros têm uma construção, uso o concreto como um elemento aglutinante. Mas se tu pensares no caco de vidro em 1979...
DM - É claro. Mas é como se o material estivesse numa outra situação, num outro estado...
IM - Isso é o interessante... Hoje em dia, aparentemente, ele é aleatoriamente catado, captado e colocado ali. Os elementos construídos são os suportes para isso. A única coisa que é construída são os ganchos para suportar aquelas redes, aqueles containers, aquilo que contém esse material. Eu acho isso muito legal, porque sempre fui uma pessoa que construiu muito marcantemente o trabalho. Na verdade, quase levantei edifícios, casas, no sentido de que são estruturados. Hoje - o que não quer dizer que isso seja definitivo -, essas coisas são sacos: um lugar que abriga coisas. E é impressionante como é rico esse material.
DM - Li numa entrevista recente que você considera que a obra de arte deveria representar o perigo. Por que isso? Por que o perigo? Que tipo de perigo?
IM - Um bom trabalho tem que trazer esse elemento que ameace. Sempre trabalhei - talvez nos primeiros momentos, intuitivamente - com a idéia de captar essa ameaça, essa realidade ameaçadora. Não é só o caco de vidro, quando o uso ele reporta a uma sensação dolorosa que não está ali. Mas, por exemplo, tenho essa vivência: quando vejo o que é a origem desse trabalho, os muros protegidos pelos cacos de vidro, imediatamente tenho a sensação do corte. E, de alguma maneira, acredito que tenha sido sempre consciente na produção da minha obra a idéia do ameaçador, do perigo, daquela coisa que pode cair, pode machucar. Talvez fosse até o fato de haver a escolha de um material às vezes tão impróprio, mas que, de repente, se tornou um elemento que eu privilegiei e decidi usar. É essa coisa que um trabalho de arte tem que ter. Ele tem que trazer algum tipo de desconforto, de ameaça mesmo. É a 'relação com corpos'. Eu sempre tive a consciência de que criei corpos. Sempre tive uma fantasia muito engraçada, e até bastante primitiva, simplória, de que esses corpos podiam tomar vida e caminhar, andar. Mas nessa construção, o que acontece é que ela precisa ter uma coisa que os corpos têm: a aproximação. As pessoas perdem um pouco esta noção. A gente tem um pensamento primitivo, que ainda se manifesta, de que a presença do outro é ameaçadora. E ela deve ser ameaçadora porque, na verdade, a gente tem um campo de segurança que cerca a gente. Daí, inclusive, podemos até fantasiar que o amor vem disso. O amor é como o abraço dos pugilistas - aquela imagem que te ameaça, tu te abraças a ela... e te entegras a ela para impedir que ela te agrida. O negócio é por aí, é mais no sentido de defesa, entende?
DM - Essa relação física que você tem com o seu trabalho, e que nas esculturas remete às suas performances, na verdade já existia desde os seus desenhos. Você era muito ameaçador... Você ameaçava o desenho o tempo todo, porque você estava intervindo o tempo todo.
IM - É um tipo de construção mental. Eu vinha tentando, subrepticiamente, inserir algum elemento que destruísse aquela estrutura, aquela ordenação. E isso é um projeto de vida, que é perigoso e autodestrutivo.
DM - Voltando à exposição da Funarte, como você vê esse momento de resgate da instituição?
IM - Isso é básico, a gente precisa ter uma instituição que tenha parâmetros diferentes das outras. O Rio de Janeiro tem mais centros culturais do que galerias comerciais, o que é muito interessante. Mas haveria a necessidade de uma instituição - e a Funarte poderia suprir essa carência - que não só permitisse a exposição de artistas com um bom projeto, mas fosse uma instituição que desse alguns parâmetros para o jovem artista; que criasse algum tipo de 'filtro didático'. Isso está faltando, especialmente para os muito jovens. E esse resgate de uma atividade que foi bem realizada há alguns anos e que precisa ser reativada, motivada, é importante: um lugar em que haja discussões de pensamentos, métodos. Esse lugar o novo governo tem que pagar e tem um custo; mais isso do que os espaços expositivos, um lugar onde se possa pensar.
DM - Hoje, no Brasil, nós somos muito carentes de informação sobre o que está acontecendo na arte dentro e fora de nosso país. Fica muito esquisito você produzir um trabalho, expor e depois isso não ter continuidade...
IM - Não se propaga... As pessoas não têm noção do trabalho que é organizar uma grande exposição, por exemplo, e até uma pequena exposição. É super complexo. E isso é muito informativo e didático. É uma questão mesmo de experiência, de ser mais ou menos adulto, assumir aspectos mais complexos. Parece que a atividade de artes plásticas, pelo menos como é vista pela grande maioria do público, é uma festa, é feérica. Mas ela é muito complexa. O que está implícito ali em termos de discussões, de pensamento, de contrariedades...
DM - Falta informação e comunicação.
IM - É uma valorização da atividade, que deve ser vista como é e não como parece ser. Inclusive, porque existe um número enorme de pessoas que não têm voz dentro do nosso campo das artes plásticas. Houve, por um processo que não sei explicar, um embotamento dos artistas, dos pensadores de arte. Todo mundo ficou introjetado. Então, isso precisaria ser esclarecido.
DM - E a Bienal do Mercosul?
IM - Acredito que vai ser muito gratificante. Estou tendo essa experiência do Sul... Eu venho de lá e estou fazendo um esforço de voltar um pouco.
DM - Na verdade, o Sul do Brasil praticamente não conhece o seu trabalho. Você tem projetos de exposição lá?
IM - Há a possibilidade de uma exposição numa galeria, a Bolsa de Arte de Porto Alegre. Devo fazer uma prévia dessa exposição durante a Bienal do Mercosul, junto com o Saint-Clair Cemin. Em Florianópolis, há a perspectiva de realizar a minha retrospectiva e espero que a minha exposição possa contribuir para o panorama da arte em Santa Catarina. É a retomada do Sul...
DM - Florianópolis não conhece o seu trabalho?
IM - Não. Então vai ser engraçado... Se essa retrospectiva se realizar vai ser muito interessante, porque agora em outubro inaugura a exposição do grande artista catarinense, que é o Vítor Meirelles e, depois, virá a minha exposição. Serão dois mundos bem diferentes, de dois artistas que fizeram o seu trabalho fora de Florianópolis. De alguma maneira a cidade está resgatando essas imagens que perdeu até por uma certa falta de conhecimento. Vai ser legal.
novembro 11, 2003
Entrevista com Yacoff Sarkovas
Entrevista com Yacoff Sarkovas
Leis de incentivo são uma anomalia - Para o consultor, o Estado brasileiro se omite do papel de criar políticas públicas para a Cultura.
CLÁUDIA AMORIM
Publicado no Jornal do Brasil de 27 de outubro de 2003
Consultor especializado em patrocínio e comunicação empresarial, Yacoff Sarkovas concebeu e gerenciou quase uma centena de projetos nas áreas cultural, ambiental, esportiva e social para empresas e instituições no Brasil e no exterior. Crítico contundente das leis de incentivo à cultura, Yacoff foi convidado pelo governo do PT a colaborar com a reformulação do sistema. Por isso, entrou na mira de produtores e diretores de cinema como Cacá Diegues, que em maio o acusou de defender que o patrocínio de estatais fosse vinculado a conteúdos nacionalistas e contrapartidas sociais.
Uma acusação que Yacoff classifica de infundada, já que teria sido baseada no edital de uma estatal, escrito com uma ''redação amadora'' e sem a sua supervisão. Em entrevista ao JB, o especialista afirma que as leis de incentivo continuam a fazer parte de um sistema pervertido de apoio à cultura. E, encarregado pela Universidade Cândido Mendes de montar um dos cursos do MBA em gestão cultural, pretende ensinar aos produtores que o patrocínio não precisa depender das chamadas leis de incentivo.
- Como o senhor analisa as leis de incentivo à cultura?
- As leis de incentivo fiscal são uma anomalia, um distúrbio produzido no Brasil.
- Quais são as deformidades das leis?
- Para começar, a definição de incentivo fiscal é o uso do dinheiro público para estimular investimento privado. No Brasil, o incentivo fiscal não existe, porque os cofres públicos entram com todo o dinheiro e a iniciativa privada não entra com dinheiro algum, só repassa verbas que são públicas. O fato de o Estado desembolsar os recursos e a iniciativa privada escolher onde gastar forma as bases de um sistema perdulário, que se torna ainda mais grave no caso da Lei do Audiovisual, que tem problemas sérios na definição das deduções do imposto. O resultado é que, além de a empresa debitar todo o dinheiro do patrocínio dos impostos que seria obrigada a pagar, ainda consegue um desconto de cerca de 25% deste valor do imposto de renda. Quer dizer, se o empresário repassa R$ 100 mil para o cinema, saem do caixa do governo R$ 125 mil. É inadmissível.
- Qual seria a solução?
- Já que a verba corresponde a um imposto que a empresa seria obrigada a pagar, melhor seria se essas taxas fossem mesmo pagas ao governo e o dinheiro fosse usado, com critério, em projetos culturais de interesse público, e não ao sabor do que interessa mais a uma empresa ou outra. Hoje, o que conduz esse dinheiro, cerca de R$ 500 milhões por ano, para aqui e não para ali? Lógica pública não é, é uma lógica privada.
- Existem mais deformidades?
- As leis de incentivo causam uma dupla perversão. Elas deturpam o mercado de patrocínio, porque criam uma cultura entre o empresariado de que só se deve patrocinar com verba incentivada, ou seja, com dinheiro que já teria mesmo que ser gasto em impostos. E, por outro lado, há o problema de que o governo, transferindo as verbas para a iniciativa privada empregar, fica achando que já fez a sua parte e se exime de criar políticas públicas para a cultura. Ora, cultura é uma questão de interesse público, e, assim como existem políticas públicas de saúde e educação, tem que haver também para a cultura.
- Qual é a outra perversão?
- É a que mais temo: que o cidadão comece a criar uma consciência de que aquelas empresas usaram o dinheiro público para fins privados, e que isso gere um preconceito contra o patrocínio, que então passaria a ser visto negativamente, quando espera-se que seja justamente o contrário.
- Mas, se as leis são anomalias, essa consciência do cidadão não serviria para mudar o que está errado?
- Poderia ser, mas tenho medo de que essa associação entre o patrocínio e o uso de verbas públicas para fins privados se torne arraigada e não se dissipe com a correção dos erros.
- O ideal é que o governo financie diretamente os projetos culturais?
- É necessário que o poder público invista em cultura. Nenhum mercado cultural sadio opera sem financiamento. Não faz sentido falar em corrigir as distorções regionais das leis de incentivo. Não há como consertar, porque as próprias leis geram as distorções. As desigualdades têm que ser corrigidas com o financiamento direto do governo. E esse financiamento feito pelo poder público tem que obedecer a mecanismos de controle para que não haja nepotismo, privilégio de grupos ou dirigismo.
- A Lei Rouanet é ruim?
- Não, mas só se leva em conta a parte ruim da lei, que é um de seus três pilares. O maior pecado da gestão do ex-ministro da Cultura Francisco Weffort foi piorar ainda mais esse viés: no início, ela previa que a empresa deduzisse do imposto 30% da verba investida. Weffort aumentou a cota para 100%. Mas os outros pilares da lei são o Fundo Nacional de Cultura - que é o investimento direto - e o que prevê um incentivo cultural real. Nesse caso, incide sobre atividades culturais lucrativas, que recebem deduções no imposto que tornam mais vantojoso investir em cultura do que em outras áreas. Isso sim é um incentivo cultural de verdade, parecido com o que acontece em todo o mundo, que torna mais vantajoso para o empresário investir em cultura mas não tira toda a verba dos cofres públicos.
- O apego por parte dos produtores culturais à Lei Rouanet e à Lei do Audiovisual ocorre porque existe um medo de que, se os recursos para a cultura fossem diretos, seria mais fácil perdê-los?
- Exatamente. E isso acontece porque não se vê a cultura como uma questão de interesse público, como a saúde e a educação, que são os assuntos que costumam dominar as disputas eleitorais e de verbas. Quando há uma ameaça aos mecanismos vigentes, os privilegiados que dominam os canais desse sistema pervertido - por exemplo, conhecendo os que decidem, nas empresas, o que fazer com a verba - reagem. É o que eu chamo de grito dos incluídos. Mas esse apego se deve à falta de informação sobre como poderia ser o patrocínio sem as leis de incentivo, que é o que acontece nas áreas social, esportiva e ambiental.
- Além do dinheiro público, o senhor defende que é possível obter outras formas de financiamento.
- Patrocínio não tem nada a ver com incentivo fiscal. O que chamo de patrocínio real é baseado na motivação concreta que a empresa tem para investir no financiamento de projetos culturais. Para atrair esse patrocínio, é preciso entender a estrutura mercadológica, corporativa da empresa.
- Como o produtor cultural pode aprender a fazer isso?
- O patrocínio tem que ser entendido como uma ferramenta de comunicação empresarial, ao lado de outras, como a publicidade, marketing direto e a promoção. Essa motivação que a empresa tem em investir fez com que o dinheiro empregado com essa finalidade no mundo todo crescesse, nos últimos 15 anos, de US$ 1 bilhão para US$ 25 bilhões.
- E os projetos que não forem atraentes para os empresários?
- Esses têm que ser financiados diretamente pela verba pública.
- Existem ainda outras formas de a atividade cultural ser financiada?
- Além do mercado, do Estado e do patrocínio real, feito pelas empresas, há o investimento social privado, que tanto pode ser de fundações quanto de indivíduos.
- As fundações corresponderiam aos mecenas do passado?
- Sim. É preciso entender que o dinheiro empregado por benemerência também pode ir para a cultura. Para isso, é preciso aprender que a cultura também é uma forma de inclusão. E, assim como existem as verbas das fundações, também é possível que esses recursos venham de indivíduos, que podem se sentir atraídos a contribuir não só para o financiamento de projetos sociais, mas também culturais.