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abril 2, 2021
A Escolha do Artista na CRM, Rio de Janeiro
Exposição reúne trabalhos autorais de cinco expoentes das artes plásticas em diálogo com obras de acervo
A Coleção Roberto Marinho, que ao longo de seis décadas reuniu cerca de 1.400 peças cadastradas - entre pinturas, esculturas, gravuras e desenhos, é o ponto de partida da exposição A Escolha do Artista. A mostra encerra a trilogia Casa, Jardim, Coleção, iniciada em 2018, por ocasião da inauguração do instituto no Cosme Velho. Especializado em modernismo brasileiro dos anos 1930 e 1940, bem como em abstracionismo informal da década de 1950, o belo conjunto recebeu trabalhos dos estrangeiros Marc Chagall, Salvador Dali e Vieira da Silva, entre outros, sem perder o foco original.
A ser aberta no dia 13 de março, às 12h, A Escolha do Artista na Coleção Roberto Marinho reúne trabalhos autorais de cinco expoentes das artes plásticas em diálogo com obras do acervo. Antonio Manuel, Beth Jobim, Cristina Canale, Raul Mourão e Waltercio Caldas foram convidados a selecionar peças e a estabelecer com elas uma conversa poética através de suas próprias proposições artísticas. De acordo com o diretor da Casa, Lauro Cavalcanti, “parte fundamental do projeto foi o diálogo ocorrer nos termos estabelecidos pelos cinco artistas, que foram soberanos em suas escolhas”.
A primeira sala é consagrada às mostras anteriores da trilogia: as gravuras de 10 Contemporâneos (2018), que exploram a temática “casa”, dividem espaço com os múltiplos de O Jardim, exposição realizada em dezembro de 2019.
Em sua sala, Raul Mourão estabelece um contraste entre o Brasil idílico do quadro Flora e fauna brasileira (c. 1934), de Portinari, e a época atual. Cristina Canale selecionou, em sua maioria, retratos. E no trabalho inédito propõe um diálogo pictórico, imaginando os caminhos e escolhas de Di Cavalcanti no óleo de 1963, “Ivete Rocha Bahia”. “Sinto sua falta” é o título do múltiplo especialmente criado por Antonio Manuel, que junto a um díptico e à série “Frutos de Espaço”, interagem com obras de Pancetti. Beth Jobim identificou nas ripas de Ione Saldanha questões inerentes à sua poética pessoal e reproduziu um texto de Lygia Pape sobre Ione, criando uma nova camada de possibilidades nesse encontro. Waltercio Caldas, que dialoga com De Chirico, Legér, Tarsila, Soulages, Nery e Pancetti, propõe calar as exterioridades que podem interferir em nossa percepção e cria objetos que falam com arte e não sobre arte.
“Esta exposição representa a crença na arte como elemento de renovação. O encontro de cinco expoentes produzindo trabalhos novos e interagindo com a Coleção é uma prova de vitalidade e generosidade muito bem-vinda nesses tempos. A mostra revela o pensamento artístico de cada um, suas filiações e processos”, avalia Cavalcanti.
DEPOIMENTO DOS ARTISTAS
ANTONIO MANUEL
A destruição da Amazônia, do Pantanal e as queimadas criminosas me comovem e causam profunda tristeza. A questão ambiental é um elemento importante na minha vida. O crítico Mário Pedrosa, em um texto sobre o meu trabalho "O corpo é a obra” (1970), diz: "o artista é sempre aquele que nunca perde o contato com a natureza... mesmo num outro plano dentro das máquinas, ele vê as coisas como uma relação direta - ele e o mundo. Ele e a realidade. Ele e a natureza”.
Com esse pensamento, desenvolvi o objeto “Sinto sua falta”, de ferro e carvão, preso a um fio, como um pêndulo. O título nasceu paralelo ao trabalho. É a minha homenagem e meu amor à natureza. Junto a esse objeto, apresento as esculturas “Frutos do Espaço”, de 1980, que serviram como estudo para a instalação de mesmo nome em tamanho maior.
Dentro da coleção Roberto Marinho, procurei obras que tivessem uma ligação com essa poética. E talvez o Pancetti, com suas pinturas extraordinárias, seja quem mais se relaciona com as questões da natureza. A meu ver, as telas do dele, suas cores, paisagens, poéticas e ligação com a natureza dialogam com as abstrações dos meus trabalhos, que são páginas geométricas, aparentemente vazias, para se preencher com imagens e projeções.
BETH JOBIM
A partir do convite da Casa Roberto Marinho, pensei se havia alguma surpresa a se descobrir numa coleção já exposta e pensada com tanta inteligência. Elegi as 24 Ripas, da Ione Saldanha, que compõem um único trabalho não exibido anteriormente na instituição. Ione é uma grande pintora brasileira que, no final dos anos 1970, começou a pintar sobre ripas de madeira. Esse conjunto tem sua história, traz o seu tempo, mas também acontece agora num diálogo com o presente. É uma série versátil que pode ser mostrada de diversas maneiras, dentro do que a artista propõe, sob um olhar contemporâneo.
E eu já vinha trabalhando em algumas telas com cor, encapadas com linho branco (que usualmente é o fundo da tela), com frestas que revelam o pigmento. É um processo que envolve a costura artesanal de tecidos coloridos. Essas obras têm afinidades com as Ripas da Ione. Há um diálogo muito claro visualmente, embora o trabalho dela seja bastante expansivo e o meu um tanto contido, por ter relação com a questão da pandemia, do isolamento e do uso de máscaras, nesse momento em que estamos todos obrigados a nos “embrulhar” para nos proteger.
CRISTINA CANALE
Já há algum tempo tenho trabalhado com o formato clássico de portrait como território de pesquisa e exercício da pintura, de forma que fazer uma curadoria em um acervo de artistas modernos foi como “colocar uma criança diante de um prato de brigadeiro”. Procurei o percurso da abstração à figuração dentro da estética de retratos, a figura centralizada que mimetiza um rosto e seus arredores.
O retrato “Ivete” de Emiliano Di Cavalcanti foi o ponto de partida da minha curadoria e base para meu projeto de gravura. “Ivete”, além das suas qualidades pictóricas, possui em sua envergadura os caminhos que entrecruzam e perpassam as diversas influências na obra dos modernistas brasileiros, e que ainda hoje ecoam na pintura contemporânea, um pouco de Picasso, Matisse e expressionistas…. E a iconografia da “mulher brasileira”.
Minha porta de entrada nesta obra foram os volumes generosos, a dinâmica do xale rosa luminoso percorrendo o vestido azul como uma cachoeira que deságua em tons vermelhos. Recorri ao Matisse que está em mim, para interpretar esta obra, entre outras tantas visões possíveis.
Adentrar a obra e as decisões de um dos mestres da pintura brasileira quase seis décadas depois de executada foi um exercício de respeito e autoconhecimento.
RAUL MOURÃO
A partir do acervo da Casa Roberto Marinho, escolhi uma única obra, a pintura Flora e fauna brasileira (c. 1934), de Candido Portinari, que compõe um retrato de um Brasil tropical. Em diálogo, apresento a série The New Brazilian Flag, realizada em 2020, trabalho que gerou muitos desdobramentos e reflexões. É também uma representação do país, completamente diferente, concebida quase um século depois. Vejo um casamento perfeito entre as duas abordagens.
O título irônico em inglês remete à origem desse trabalho, um encontro real com uma bandeira americana, em Nova Iorque, em 2017. Estava saindo de uma feira de arte e avistei uma bandeira dos Estados Unidos enrolada no próprio mastro, de modo que o retângulo onde estão as estrelas não aparecia. Fiz um registro em vídeo, um documento singelo da bandeira enrolada, vibrando com o vento forte. Uma bandeira modificada acidentalmente, cortada, amputada. Depois de publicar no Instagram e fazer circular esse curto vídeo, surgiu o título: The New American Flag.
De volta ao Brasil, andando pela Lapa, me ocorre de fazer uma versão brasileira dessa bandeira modificada, sem as estrelas, sem os estados, sem a república, sem a federação, violentada, como um cartoon. Então, comprei uma bandeira, recortei não só as estrelas, mas o azul e a frase “ordem e progresso”. Arrombei a bandeira, fiz um furo no meio e pendurei na parede do ateliê.
Foi se aproximando o carnaval de 2018 e tive um insight: decidi fazer uma provocação, uma intervenção de arte pública, colocar um objeto de arte na cidade na sexta-feira pré-carnaval. E esse objeto é a bandeira, que fixei nos Arcos da Lapa, como uma intervenção urbana temporária, ilegal, não autorizada e carnavalesca. A bandeira sobreviveu apenas de sexta para sábado: na manhã seguinte, alguém passou, pulou, arrancou e levou. O primeiro trabalho dessa série é justamente o registro fotográfico da bandeira fixada nos Arcos da Lapa e chama-se The New Brazilian Flag.
O vazio na bandeira é um comentário sobre uma crise política/institucional, uma incerteza, um momento de violência e agressão. Mas esse vazio também pode ser território para lançar novos projetos, novos desejos e sonhos. É uma área a ser preenchida. Minha pergunta ao coletivo é: estamos aqui, vamos construir algo novo?
O múltiplo que criei para a exposição, um objeto de tecido com 45 bandeiras costuradas, é um cartoon, um trabalho de fácil comunicação e grande circulação. Tem a vocação de circular numa velocidade mais rápida que um objeto de arte, funciona na contemplação da sala branca do museu mas também no Instagram.
WALTERCIO CALDAS
Para a exposição, fiz objetos que remetem direta ou indiretamente às pinturas selecionadas da Coleção e, considerando a montagem, estabeleci uma relação bastante intimista entre eles.
Selecionei obras que se relacionam com questões que transferi diretamente para o meu projeto. Por conta de uma característica própria à minha prática, optei por estabelecer não apenas uma resposta às pinturas selecionadas, mas sobretudo um diálogo através dos objetos. Porque acredito que a diferença entre o que vemos numa pintura e o que vemos num objeto diz algo sobre a questão que eu trato aqui. É na especificidade física do objeto que reside a linguagem plástica.
Gosto muito do trabalho do De Chirico, por exemplo, um pintor metafísico que trata da natureza das coisas. Optei por retirar a moldura da tela dele, com a autorização do Lauro, para esclarecer o caráter de objeto que nela reside: tinta agregada com cola sobre tela esticada em madeira. Escolhi estabelecer um diálogo com esta obra através de um objeto que trata das mesmas questões abordadas por De Chirico. Foi essa a forma de relação que elegi para a exposição: falar com arte e não sobre arte. Quero usar a linguagem artística como prática e não como assunto. O artista pode falar da linguagem “por dentro”.