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dezembro 2, 2019
Murakami no Tomie Ohtake, São Paulo
A primeira mostra do consagrado artista japonês no Brasil contará com a sua presença na inauguração
O Instituto Tomie Ohtake traz pela primeira vez ao Brasil a individual do mítico artista japonês Takashi Murakami (1962, Tóquio, Japão). Com curadoria de Gunnar B. Kvaran – o mesmo curador da mostra de Yoko Ono realizada no Instituto em 2017 –, Murakami por Murakami deriva originalmente da realizada no Astrup Fearnley Museet, em Oslo. A exposição reúne 35 trabalhos, com pinturas que chegam a medir 3 por 10 metros. O conjunto, apresentado como uma constelação de fragmentos do universo Murakami, evidencia uma produção consagrada, entre tantas qualidades, pela excelência no campo pictórico.
Um grande fã de anime, Murakami entrou na Universidade Nacional de Belas Artes e Música de Tóquio (agora Universidade das Artes de Tóquio) (1982 – 1993) para estudar Nihon-ga, um estilo de pintura japonesa tradicional. Daí a sua obra até hoje revelar habilidades técnicas excepcionais. Depois da formação, o artista desenvolve uma produção que transita entre o Japão e o Ocidente. Como autor do Superflat – termo que sintetiza toda a sua produção ao mesmo tempo que descreve a cultura e a sociedade japonesa do pós-guerra –, o movimento funde arte tradicional de seu país e cultura pop contemporânea.
Contudo esta exposição destaca a presença eminentemente japonesa em sua produção. “Essa fusão [Oriente e Ocidente] é claramente presente na arte de Murakami, mas esta exposição enfatiza sua identidade profundamente japonesa, que foi ofuscada por sua associação com grandes artistas do mundo da arte ocidental, como [Andy] Warhol, [Jeff] Koons e [Damien] Hirst, não apenas pela ênfase no aspecto comercial, mas também por causa de sua linguagem artística”, explica o curador, Kvaran.
Murakami tornou-se um fenômeno no cenário internacional pela forma singular que entende o universo da arte, uma noção que abrange não apenas a sua criação preocupada com a sociedade e história, mas também a coleção, ao ter se tornado um apurado colecionador, e a comercialização, ao introduzir outros artistas em sua galeria em Tóquio. As obras da exposição revelam o resultado de um prolongado processo de criação, do desenvolvimento conceitual até a pesquisa formal e implementação laboriosa de suas obras, com incontáveis camadas de tinta. Em seu estúdio conta com a competência e capacidade de muitos outros artistas, onde trabalham cerca de 100 pessoas - um galpão nos arredores de Tóquio, endereço considerado pelo circuito um dos ateliês mais inovadores do mundo.
O fenômeno Murakami será explorado na mostra por meio de obras de quatro de seus conjuntos mais extraordinários: aquele que traz a figura de Mr. DOB, as recentes pinturas concentradas no Zen-budismo, a apropriação e interpretação dos trabalhos de Francis Bacon e sua noção de autorretrato, além de uma seleção de vídeos. “Murakami certamente desfrutou de mais reconhecimento fora do Japão do que dentro, e cultivou uma relação abertamente combativa com o mundo da arte japonesa, mas seu envolvimento com pinturas Nihon-ga, mangá e anime, a cultura otaku e o Zen Budismo ancora firmemente seu trabalho com as tradições japonesas”, enfatiza Kvaran.
Sobre as obras
Na década de 1990 Murakami inventou a personagem de Mr. DOB (derivada da gíria japonesa “dobojite”- por quê?), com o qual faz crítica à sociedade de consumo, sem vida e vazia. No início, DOB era uma figura que evocava o robô com forma de gato do mangá Doraemon ou Mickey Mouse, evidenciado em But, Ru, RuRuRu... (1994). Porém, ao ser revisitado pelo artista, o personagem evoluiu para muitos perfis diferentes: DOB Genesis: Reboot (1993-2017) e Tan Tan Bo (2001), inspirado no personagem monstro do folclore japonês (yōkai) que cospe saliva paralisante em suas vítimas.
As obras de Murakami estão intimamente conectadas à subcultura japonesa. Obras como Superflat DOB: DNA (2015) e 772772 (2015) estão ligadas à cultura japonesa de caracteres, e estatuetas como Miss Ko2 (1996) e My Lonesome Cowboy (1998) dão forma às fantasias otaku de sexualidade e erotismo, centradas em anime, mangá e videogames. “Desde os primeiros esboços de DOB desenhados a mão, até uma multidão de desenhos computadorizados e as obras finalizadas em tela, vemos a metamorfose e expansão de uma figura influenciada tanto pelo interesse de Murakami pela biologia, botânica e pelo mundo dos insetos quanto por sua fascinação pelo mangá”, explica o curador.
Segundo Kvaran ainda, há uma clara correlação entre as formas orgânicas e fundidas e as histórias que contam, geralmente relacionadas com o perigo ambiental ou mesmo as ameaças ou desastres nucleares. “Em seu olhar violento que proclama uma hostilidade crua em relação a tudo no mundo, nota-se uma tensão alarmante, como se a saturação da energia acumulada internamente tivesse causado uma distorção nas dimensões da superfície”, afirma o curador. Com o passar dos anos, surgiu um planeta de DOB, geralmente associado com outras populações híbridas criadas pelo artista, executadas em telas de grande formato e contando histórias muito complexas, com diferentes camadas de narrativas e estruturas pictóricas.
Em 2007, Murakami faz os retratos de Daruma (o sacerdote indiano que fundou Zen Budismo chinês) e pinturas parte inspiradas em mestres como Hakuin Ekaku (muito influente no Zen Budismo 1686-1769), e Soga Shōhaku (pintor do período Edo, 1730-1781), homeangedo com a tela Transcendent Attacking a Whirlwind (2017), a maior da exposição (3 x 10m), cuja pintura é iluminada por folhas de ouro e prata. São trabalhos que demonstram uma reorientação do artista para a pintura tradicional presente também em Amitābha Buddha descends, Looking over his shoulder (2016), Shennong: Inspiration (2016) e Ensō: Zazen (2015).
O artista faz uso crescente de motivos tradicionais, símbolos e imagens incluindo demônios, monstros, feras mitológicas como dragões e fênix, bem como cabras e tigres, tal como em Lion Occupying the Throne in My Heart (2018). São esses elementos que aparecem com recorrência ainda na sérei de Arhats, termo sânscrito para designar um ser de elevada estatura espiritual. Obras como Isle of the Dead (2014) e Arhats: The Four Heavenly Kings (2016) são inspiradas nos 500 Rakan ou Arhats, de Kanō Kazunobu, uma série de 100 pergaminhos budistas. Murakami ficou interessado nestes motivos em relação ao tsunami de Tohoku seguido de terremoto e vazamento nuclear em março de 2011.
Apropriando-se da obra de Francis Bacon, Murakami concebe desde 2002 uma série de pinturas, como o tríptico Homage to Francis Bacon (2018). São densas composições com recorrentes características de sua iconografia – olhos, cogumelos e personagens — acentuados por múltiplas camadas de cores sobre folha de platina. A metamorfose dos rostos retoma as transformações de Mr. DOB, traço extravagante, as vezes carinhoso, às vezes monstruoso, com que Murakami tematiza as muitas variações em sua obra. Já em sua série de autorretratos foram selecionadas para a exposição a escultura de tamanho natural feita de silicone e com dispositivos robóticos, animatronics (sem título, 2016) e duas em que utiliza folhas de ouro e aparece ao lado do cão Pom: Pom & Me (2009-2010) e Naked Self-Portrait with POM (2013).
As figuras dos quadros de Murakami acabaram transformadas em vídeos e animações e até em um longa-mentragem. Para esta exposição, Murakami fez a curadoria e editou, em uma sessão, uma seleção de nove destes vídeo-filmes.
Sobre Murakami
O artista notabilizou-se por sua linguagem contemporânea singular, construída a partir de uma revisão profunda das próprias raízes. Em seu texto sobre a trajetória de Murakami, Nobuo Tsuji observa: “a insistência de que a planicidade geral da arte japonesa, anteriormente vista como ponto fraco, era um mérito digno de perpetuação, tornou-se a sustentação teórica de seu conceito de ‘Superflat’. Por outro lado, como artista pop japonês, Murakami também procura mostrar a validade das culturas infantil e otaku”.
Murakami Versailles, exibida na França em 2010 com grande projeção internacional, é uma das mostras que ilustram bem esse conceito, além de indicar a cadeia de produção desenvolvida pelo artista, ao ter mobilizado a empresa que havia criado, Kaikai Kiki Co.Ltd., para realizar a instalação no Palácio e Jardins de Versailles. Segundo Tsuji, os aristocratas que antigamente se reuniam no Palácio foram substituídos por tsukurimono (literalmente, ‘coisas feitas’ ou ‘figuras’) exclusivamente criadas para o evento - figuras infantilizadas monumentais, brilhantes e coloridas.
A mostra em Versailles foi inaugurada em setembro de 2010, um ano depois da grande individual de Murakami no Guggenheim Museum, Bilbao, Espanha, e da Pop Life: Art in a Material World, na Tate Modern, em Londres, da qual participou ao lado de Andy Warhol, Jeff Koons, Damien Hirst, entre outros. Essa coletiva examinava como os artistas desde a década 1980 cultivavam a sua imagem pública (persona) como produto, combinando uma mistura deslumbrante de mídia, comércio e glamour para criar suas próprias marcas. Para entender o universo Murakami é preciso conjugar essa faceta marcante do artista e sua condição de PhD em arte tradicional japonesa.
Takashi Murakami contabiliza mais de cem individuais realizadas em países como Japão, Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, China, Canadá, Coréia, Qatar, e outras centenas de participações em coletivas, além de suas obras figurarem nos acervos mais importantes do mundo. Entre as exposições recentes destacam-se, além de Murakami por Murakami, em Oslo (2017), In Tune with the World, na Fundação Louis Vuitton, Paris (2018), Takashi Murakami: The Octopus Eats Its Own Leg, no Museum of Contemporary Art Chicago, Chicago (2017), Takashi Murakami: Murakami vs Murakami, no Tai Kwun Contemporary, Hong Kong (2019) e Takashi Murakami: Baka, na Galeria Perrotin, Paris (2019).