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novembro 25, 2019
Anna Bella Geiger no MASP e Sesc Avenida Paulista, São Paulo
MASP e Sesc Avenida Paulista correalizam exposição sobre Anna Bella Geiger
A maior exposição da artista carioca já realizada em São Paulo, reúne cerca de 180 obras e parte de seu trabalho mais icônico, “Brasil nativo/Brasil alienígena”, para apresentar sua produção
Ativa desde os anos 1950 como artista e desde os anos 1960 como professora no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), Anna Bella Geiger participou das primeiras exposições de arte abstrata no Brasil e é um nome pioneiro na introdução do vídeo e das práticas conceituais no cenário artístico brasileiro.
A exposição Brasil nativo/Brasil alienígena, que abre para o público no dia 29 de novembro no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e no dia 30 de novembro no Sesc Avenida Paulista, abrange um arco temporal extenso da artista, desde a década de 1960 até os anos 2000.
A mostra toma emprestado o nome de uma de suas séries mais conhecidas, Brasil nativo/Brasil alienígena, para apresentar obras que discutem criticamente a história e a realidade social do país, como o passado colonial, a identidade nacional, a representação dos povos indígenas e questões ecológicas, ainda hoje tão atuais, atravessadas por uma perspectiva e narrativa autobiográficas.
A curadoria é de Tomás Toledo, curador-chefe do MASP, e de Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu. No MASP, a exposição se insere no ciclo temático “Histórias das mulheres, histórias feministas”, que guia toda a programação da instituição em 2019. No Sesc, a exposição dá continuidade a um relacionamento com a artista que já expôs em diversos projetos da rede. Outro motivo de celebração para o Sesc é o fato de algumas obras de Anna Bella terem sido incorporadas ao Acervo Sesc de Arte Brasileira.
Geiger tem como marcas a experimentação, a prática artística como ferramenta questionadora de sistemas políticos, sociais e da própria arte, além do uso constante de autorreferências; os visitantes poderão observar que seus suportes e seus temas vêm e vão.
Sua formação acadêmica teve forte influência em sua produção, assim como o regime militar no Brasil (em vigor no país de 1964 a 1985) e é a partir desse episódio que ela passa a refletir sobre o papel da arte frente a um Estado autoritário e violento, preocupação que transparece em diversos trabalhos presentes na exposição.
Aos 16 anos, teve aulas no ateliê de Fayga Ostrower (1920-1991), com a qual também estudaram Lygia Pape (1927-2004) e Décio Vieira (1922-1988).
Posteriormente, nos anos 1950, mudou-se para Nova Iorque onde frequentou o curso de Hanna Levy-Deinhard (1912-1984), na New York University. De volta ao Brasil, formou-se em Línguas Anglo-Saxônicas na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro, em 1957. Na década seguinte, iniciou seus trabalhos como professora no MAM Rio, envolvimento que cresceu ao longo dos anos, já que, de 1971 a 1973, foi membra do conselho administrativo da instituição.
Nestes papéis, sempre defendeu o museu como um espaço experimental, de encontro e de debate entre artistas.
Aos 86 anos, continua produzindo e dando aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV Parque Lage), Rio de Janeiro, onde vive, e no Higher Institute for Fine Arts (HISK), em Gent, na Bélgica.
No MASP, a mostra está dividida em nove salas, no segundo subsolo do museu, configurando seis núcleos temáticos e não necessariamente cronológicos: Visceral, Macios e Noturnos, Autorretrato, Mapas, Sobre a arte e História do Brasil. No Sesc Avenida Paulista, são apresentados três trabalhos instalativos históricos (Circumambulatio, 1972; Mesa, friso e vídeo macios, 1981 e Indiferenciados, 2001) que cobrem momentos distintos da produção da artista e foram remontados especialmente para a exposição. Além das instalações, são exibidos três vídeos (Telefone sem fio, 1974, e Passagens I e II, 1974). As duas instituições possuem obras da artista em seus acervos e estão a 1.500 metros de distância uma da outra, reforçando a parceira entre ambas e o potencial cultural da Avenida Paulista.
No museu, a exposição tem início com a apresentação de gravuras da fase conhecida como Visceral (anos 1960), nas quais representa órgãos do corpo humano. Se, por um lado, a série aponta para um olhar mais intimista e introspectivo, voltado para as entranhas do corpo, por outro pode ser tomada também como um reflexo do exterior e metáfora das vísceras que regem as entranhas de um outro corpo, o corpo político. Também estão presentes na mostra as apropriações de elementos da cartografia, da geografia e da matemática no núcleo dedicado aos mapas em séries como Local da ação (anos 1970-1980), Polaridades (anos 1970), Equações (anos 1970-80), Variáveis (anos 1970) e Rolinhos (anos 1990-2000), além dos conjuntos de cadernos de artista com referências a materiais didáticos (anos 1970); diferentes obras da série Burocracia (anos 1970-2000); e um conjunto de trabalhos em pintura, da série Macios (anos 1980).
Um grande eixo da mostra é dedicado aos mapas, tema recorrente na trajetória de Geiger. Com eles, no geral, a artista reflete sobre ideias aparentemente opostas entre si, como noções de polaridades, centro versus periferia, norte versus sul, a parte versus o todo, e questiona não só as próprias representações cartográficas, para além das coordenadas, mas também conceitos filosóficos politicamente orientados. A partir de um ponto de vista geopolítico, reflete sobre as hegemonias políticas e suas ideologias, sobre os ideais construídos pela sociedade moderna ocidental.
Já em Brasil nativo/Brasil alienígena (1976-1977), trabalha com postais, que alcançaram grande circulação no século 20. Eram, à época, considerados uma das formas de conhecer determinado local ou povo e de adquirir conhecimento sobre diferentes culturas, e circulavam com frequência nas Exposições Universais que ocorriam na Europa. O “Brasil nativo” dos postais vendidos em bancas de jornal no Brasil e apropriados por Anna Bella mostrava os indígenas idealizados e exotizados, nus caçando com arco e flecha, em rituais ou socializando e realizando atividades cotidianas. Porém, essa visão simplificada e aparentemente aprazível ignorava a violência de estado que acometia os povos indígenas no país durante o regime militar. Complementando a apropriação dos postais, a artista criou novas imagens, imitando e reinterpretando as cenas das originais, lançando a pergunta sobre o que é nativo e o que alienígena, colando em jogo o seu próprio local de mulher branca, de classe média alta, de família estrangeira e origem judaica.
O humor e a ironia também são recursos frequentes utilizados pela artista. Em uma das obras do núcleo de Autorretratos, por exemplo, ao questionar o lugar da arte e do artista, em clara referência à Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, marco do renascentismo europeu, coloca-se como modelo misteriosa com a favela carioca do Santo Amaro ao fundo.
A comicidade repete-se em séries como Burocracia e Ideologia. A primeira consiste em pinturas, serigrafias e vídeos com os dizeres “Sobre a arte” e nos quais quatro figuras femininas pronunciam a palavra BU-RO-CRA-CIA, em uma imagem muito próxima àquela vista em uma propaganda da época de um creme íntimo para mulheres. Esse trabalho instaura questões como os modelos de feminilidade e a produção de imagens do feminino nas artes visuais e a burocracia e o sistema de funcionamento da arte em relação às mulheres, assim como do sistema burocrático das artes como um todo.
Circumambulatio, um de seus trabalhos mais enigmáticos, estará no Sesc Avenida Paulista. A obra surge em suas aulas no MAM, quando junto aos seus alunos propõe-se realizar investigações sobre o conceito de centro nas diferentes sociedades e épocas. Disso surgem experiências realizadas fora do museu e longe dos agentes da censura, na então distante lagoa de Marapendi, no Rio de Janeiro, onde praticavam uma série de processos criativos, usando a terra como suporte principal.
Essas ações foram registradas, editadas e exibidas em formato de escritos, fotos e filme super-8 na primeira vez que a instalação foi montada, nos anos 1970. A cada montagem, no entanto, a obra se renova, já que a artista adiciona novas referências, como na última montagem em 2019, no MAM Rio.
Outras duas instalações audiovisuais históricas da artista serão remontadas no Sesc Avenida Paulista: Friso, mesa e vídeos macios, apresentada uma única vez na 16ª Bienal de São Paulo (1981) e Indiferenciados, elaborado para uma grande mostra de Geiger no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em 2001. As instalações serão complementadas com uma sala de vídeo que irá exibir trabalhos de diferentes períodos da artista.
Friso, mesa e vídeos macios consiste em uma sala com uma mesa central na qual são impressas manchas que podem tanto ser mapas quanto camuflagens. E nas paredes desse espaço se repetem espécies de mapas do Brasil. Além disso, dois monitores de televisão reproduzem esses mesmos padrões sendo manuseados. Neste trabalho, ela investiga, por meio da visão, o tato. Brincando com os sentidos a artista explora também a visualidade como um todo.
Na sala de vídeo serão exibidos trabalhos como Telefone sem fio (1974) e Passagens I e II (1974). No primeiro, ela, Fernando Cocchiarale (crítico de arte, curador e professor) e outros amigos fazem, como o nome do trabalho sugere, a conhecida brincadeira do “telefone sem fio”. Mas, na ocasião, as frases que são ditas entre os participantes remetem ao universo da arte. E esses questionamentos, ao serem passadas de um ouvido ao outro, se perdem: tanto no sentido do receptor se enganar no que ouviu quanto do enunciador mudar o que está sendo dito.
Já Passagens I e II são vídeos curtos nos quais ela sobe uma escada. Reproduzidos em looping dão a impressão improvável de que ela está eternamente fazendo o mesmo movimento. Feitos nos anos 1970, evidenciam um interesse dela e de outros artistas contemporâneos pelo vídeo, que começava a ser explorado.
Catálogo
A publicação homônima será lançada na abertura da exposição no Sesc Avenida Paulista no sábado, dia 30, às 11h, e será vendida nas duas instituições. O catálogo, organizado pelos curadores e coeditado pelas Edições Sesc, inclui um texto conjunto de Adriano Pedrosa e Danilo Santos Miranda, além de ensaios inéditos de Tomás Toledo, Bernardo Mosqueira, Zanna Gilbert, Estrella de Diego, Philippe Van Cauteren, e uma entrevista de Geiger com Pedrosa. Todos os trabalhos da exposição serão reproduzidos no livro que conta com nota biográfica de Gabriela de Laurentiis.