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agosto 18, 2019
Histórias das mulheres: artistas antes de 1900 no Masp, São Paulo
Histórias das mulheres resgata artistas “apagadas” da história oficial
Coletiva, com obras de artistas mulheres que atuaram até 1900, revela e questiona a construção de narrativas na história da arte a partir das desigualdades de gênero
Todos os anos, a programação do MASP é guiada por um eixo temático pensado em torno de diferentes histórias, elaboradas a partir de diferentes perspectivas, incluindo narrativas reais, ficcionais, pessoais e documentais, vários suportes e distintas temporalidades e territórios — em 2016, foram as Histórias da infância, em 2017 as Histórias da sexualidade e em 2018, as Histórias afro-atlânticas. As histórias inauguram sempre uma grande mostra coletiva e também pautam as exposições individuais, oficinas, seminários, cursos e palestras que ocorrem ao longo daquele ano. Em 2019, pela primeira vez, o eixo será tema não apenas de uma, mas de duas exposições paralelas, Histórias das mulheres e Histórias feministas, que estarão abertas ao público de 23 de agosto a 17 de novembro, com o objetivo de resgatar e difundir o trabalho de artistas mulheres, além de pensar sobre possíveis desdobramentos do feminismo no âmbito das artes.
Com curadoria de Julia Bryan-Wilson, curadora-adjunta de arte moderna e contemporânea do MASP, Lilia Schwarcz, curadora-adjunta de histórias e narrativas, e Mariana Leme, curadora assistente do museu, Histórias das mulheres: artistas antes de 1900 busca reposicionar a obra de artistas que trabalharam até o final do século 19, ao discutir a diferença de valor entre o universo masculino e o feminino e também entre arte e artesanato. A mostra terá nomes como Sofonisba Anguissola (circa 1532-1625), Artemisia Gentileschi (1593-1653), Judith Leyster (1609-1660), Angelica Kauffmann (1741-1804), Elisabeth-Louise Vigée-Lebrun (1755-1842) e Eva Gonzalès (1849-1883), além de pioneiras latino-americanas como Magdalena Mira Mena (1859-1930), Abigail de Andrade (1864-1890) e Berthe Worms (1868-1937). Além de pinturas que fazem parte do cânone da história da arte ocidental, a exposição apresentará uma série de têxteis de autoria desconhecida, cujos registros permitem afirmar que foram feitos por uma mulher, ou por mulheres, coletivamente. São trabalhos produzidos na Inglaterra, nos Estados Unidos, nos Andes latino-americanos, na Índia, no antigo Império Otomano, em dois países da África Mediterrânea (Marrocos e Egito) e também na Ásia (Filipinas e atual Uzbequistão).
A diversidade estética, temática e técnica das obras expostas mostra que as artistas fizeram parte dos mais diferentes grupos que atravessaram as narrativas da história da arte. Não existe, portanto, um “modo feminino” de criar ou de apreender o mundo, mas uma polifonia de histórias reunidas em torno do termo “mulher”. Por outro lado, “apresentar as mulheres como grupo nos ajudará a repensar desigualdades e distorções de gênero, construídos socialmente”, diz Mariana Leme, curadora assistente do MASP.
“O fato de essas obras se encontrarem, em sua maior parte, guardadas nas reservas dos museus, diz muito sobre as políticas desiguais e de subalternidade existentes no interior do mundo e do sistema das artes, dominados por figuras masculinas, em todas as instâncias”, afirma Lilia Schwarcz. Além disso, o resgate do trabalho de artistas “esquecidas” é importante na medida em que a operação desestabiliza critérios de valor e de diferença, nos quais se baseia a história da arte ocidental — branca, eurocêntrica e masculina.
Embora o termo “feminismo” já existisse antes de 1900 e vários pensadores — homens e mulheres — defendessem o direito de igualdade entre os gêneros, como a brasileira Nísia Floresta (1810-1885), que em 1832 publicou Direito das mulheres e injustiça dos homens, é difícil falar em arte “feminista” antes do século 20, portanto entre as artistas presentes na mostra. Por outro lado, resgatar, expor e pesquisar o trabalho dessas artistas é também uma atitude feminista, na medida em que se busca assim sublinhar distorções e violências predominantes na história pregressa. A revisão histórica pode ser considerada uma atitude feminista, uma vez que torna visível a obra de artistas “apagadas” pela história da arte, ao mesmo tempo em que questiona os critérios de valor da disciplina. Em paralelo, como diálogo e contraponto à exposição, o MASP apresentará Histórias feministas: artistas depois de 2000, coletiva com artistas atuantes no século 21 em torno das ideias de feminismo ou em resposta a elas.
As sombras
Diversas artistas do passado foram importantes em suas épocas e nos círculos artísticos de então: algumas fizeram parte da prestigiosa Guilda de São Lucas no norte da Europa, outras foram membros fundadores de Academias Reais ou trabalharam como professoras, recebendo encomendas e vendendo seus trabalhos regularmente. Por que, então, durante tanto tempo, os historiadores da arte decidiram ignorar o trabalho de quase todas as mulheres artistas?
Mostras coletivas feitas exclusivamente com o trabalho de mulheres vêm sendo realizadas há mais de cem anos, e em vários lugares do mundo. Alguns exemplos são as exposições da Union des femmes peintres et sculpteurs [União das mulheres pintoras e escultoras], em Paris na década de 1880, as Esposizione internazionale femminile di Belle Arti [Exposição internacional feminina de Belas Artes], Turim, de 1910-11 e 1913, mostras organizadas pelo Clube de Arte das Mulheres em Zagreb na década de 1930, o Salón Femenino de Bellas Artes [Salão Feminino de Belas Artes] em Buenos Aires (décadas de 1930-40), a Contribuição das mulheres às artes plásticas no país que aconteceu no Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre 1960-61 e a mais famosa Women Artists [Mulheres artistas]: 1550-1950, que aconteceu em Los Angeles e Pittsburg em 1976, no contexto do movimento feminista estadunidense.
Tais exposições funcionaram como espaços privilegiados para que as artistas apresentassem seus trabalhos, assim como mobilizaram o circuito de arte de uma maneira mais abrangente: jovens estudantes buscavam seus modelos e referências, o público era introduzido a um número maior de obras, colecionadoras estavam autorizadas a visitar sozinhas as exposições sem serem constrangidas socialmente. Podiam, ainda, comprar obras e até financiar outras exposições de mulheres — o que, não poucas vezes, foi entendido antes como um ato de caridade do que como o resultado do trabalho dessas artistas que eram apoiadas por novas formas de mecenato. Este saber acumulado informa e inspira Histórias das mulheres, que, por sua vez, traz o desejo de inspirar novas reflexões, investigações, exposições e histórias, incluindo também aquelas brasileiras.
Catálogo
Para enriquecer e aprofundar as pesquisas para seu ciclo de 2019, o MASP organizou dois seminários intitulados Histórias das mulheres, histórias feministas, em fevereiro de 2018 e abril de 2019, além de Mulheres radicais, em parceria com a Pinacoteca de São Paulo, no final do ano passado. Todo o conteúdo está disponível no site do museu, em masp.org.br/seminarios.
Por ocasião das coletivas Histórias das mulheres e Histórias feministas, o museu publicará uma antologia das palestras apresentadas, juntamente com textos fundamentais para o assunto. Também contará com um catálogo ilustrado, aonde estarão presentes reproduções de todas as obras expostas nas duas mostras e ensaios das curadoras.