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dezembro 9, 2018
Pedro Figari no MASP, São Paulo
A nostalgia e a herança africana de Pedro Figari
Mostra reúne 63 telas do pintor modernista uruguaio, que refaz em pinceladas imprecisas a memória e os costumes da população afro do Uruguai
Reconhecer o legado africano para além do mundo do trabalho, da natureza e do erotismo, como é comum na pintura do modernismo brasileiro, foi uma grande contribuição de Pedro Figari (1861-1938), intelectual, advogado, escritor e pintor uruguaio que ganha exposição no MASP. Ao longo de 63 trabalhos, distribuídas por seis conjuntos temáticos, Pedro Figari: nostalgias africanas apresenta de 14 de dezembro de 2018 a 10 de fevereiro de 2019 as cenas do passado do seu país através de obras que trazem o sempre incerto olhar da memória. No mesmo dia, o museu abre a exposição Lucia Laguna: vizinhança. As mostras encerram o ciclo de histórias afro-atlânticas, eixo temático que guiou a programação do museu neste ano.
Os dois primeiros conjuntos da mostra são dedicados às festas e danças populares, com destaque para o candombe, importante ritmo afro-uruguaio que é o tema maior parte das pinturas, a exemplo da tela Candombe, adquirida pelo museu em 2017.
É também no primeiro grupo de obras que se encontra aquela que dá nome à exposição, Nostalgias africanas, outra a apresentar uma cena de candombe.
“Se a ideia de nostalgia carrega em si a própria idealização do passado, a distinção entre lembrança e imaginação se torna tão vacilante quanto a pintura”, diz Mariana Leme, curadora da exposição ao lado de Pablo Thiago Rocca, diretor do Museo Figari, que recebe a mostra a partir de março de 2019. “Sobre cartões porosos, as pinceladas rápidas criam uma atmosfera de movimento e sonho; de nostalgia”, como diz o pintor.
De fato, nem o próprio Figari se lembrava ao certo em que medida havia testemunhado as cenas que pintou nos anos 1920 e 1930, quando a população do Uruguai já havia sofrido um intenso processo de perseguição e invisibilidade. Além de fugidia, a memória é criadora —e é, por isso, também ficção. Mas suas obras, mesmo que não sejam documentos de um determinado grupo social, certamente descortinam a complexidade de sua existência.
“Ainda que as cenas que Figari pintou não possam ser consideradas um registro histórico fiel, elas representam o desejo de reconhecer a importância histórica e cultural das populações uruguaias de origem africana em contexto urbanos”, afirma Adriano Pedrosa, diretor artístico do MASP. “A exposição inclui uma profusão de cenas do cotidiano, conferindo dignidade aos afro-uruguaios —há grupos que dançam candombes e bailongos, convivem nos pátios das moradias coletivas ou realizam cerimônias fúnebres tradicionais.”
O terceiro conjunto temático é voltado para as cenas de interior nos conventillos, habitações coletivas que funcionavam como verdadeiros centros de resistência negra, com forte presença em Montevidéu entre o final do século 19 e o começo do século 20.
O quarto e o quinto conjuntos reúnem flagrantes de festas de casamento e cerimônias fúnebres, como na pintura Entierro [Enterro], nesse caso realizado fora do cemitério, simbolizando a segregação social entre brancos e negros também na hora da morte. O sexto e último bloco se volta à nefasta instituição da escravidão, mas também celebra sua abolição, proclamada no Uruguai em 1842 —46 anos antes do Brasil. Com uma gama muito rica de tons terrosos, Figari representa um grupo de pessoas que festeja o episódio na rua, com lenços vermelhos e um vistoso estandarte, como se compartilhasse com aquelas pessoas a alegria de ter a liberdade assegurada.
As pinceladas soltas —que o levaram a ser comparado aos impressionistas franceses, embora estes tratassem de captar a fugacidade do momento presente e de retratar a classe burguesa— criam uma fluidez e uma imprecisão que passam longe da inconsistência, como lembra Mariana Leme. “Na verdade, tornam-se justamente uma potência, na medida em que o passado jamais pode ser apreendido a partir de uma suposta verdade assertiva e monolítica”, diz a curadora. “Figari não está interessado em detalhar semblantes ou criar uma narrativa bem-acabada, mas articular historicamente o passado, ao resgatar toda a riqueza da população afro-uruguaia, com suas festas e candombes que certamente existiram, e existem.”
A exposição é organizada pelo MASP, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, em parceria com o Museo Nacional de Artes Visuales e o Museo Figari, ambos de Montevidéu, e tem curadoria de Mariana Leme, curadora assistente do MASP, e Pablo Thiago Rocca, diretor do Museo Figari.
Histórias afro-atlânticas
A exposição ocorre em um ano inteiro dedicado às trocas culturais em torno do Atlântico, envolvendo África, Europa e Américas ---que incluiu mostras individuais de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, Maria Auxiliadora e Emanoel Araujo, que ocorreram no primeiro semestre, a coletiva Histórias Afro-atlânticas e a monográfica de Melvin Edwards, realizadas no segundo semestre, assim como as exposições de Sonia Gomes e Rubem Valentim, no museu até março de 2019.
Na sala de vídeo também serão apresentados, ao longo de 2018, autores de diferentes nacionalidades, gerações e origens capazes de contar outras histórias da diáspora negra. Os artistas que participam do programa são: Ayrson Heráclito (19/4 a 17/6), John Akomfrah (28/6 a 12/8), Kahlil Joseph (23/8 a 30/9), Kader Attia, (11/10 a 25/11), Catarina Simão (13/12 a 27/01/19), Jenn Nkiru (08/02 a 24/03/19) e Akosua Adoma (14/6 a 18/7/2019).
Catálogo
A publicação Pedro Figari: nostalgias africanas, com organização editorial da curadora Mariana Leme, será lançada no dia da abertura, com edições separadas em português, inglês e espanhol, incluindo reproduções de todos os trabalhos expostos e textos de autores convidados a produzir novas reflexões sobre a obra de Figari, caso de Jean‐Arsène Yao, Olga Picún, Patricia M. Artundo e Yamandú Acosta, além dos próprios curadores da mostra, Leme e Pablo Thiago Rocca. Uma nota biográfica foi escrita pela pesquisadora Camila B. Ruskowski.