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outubro 11, 2018
Daniel Jablonski na Janaina Torres, São Paulo
Contar a história de uma vida a partir dos objetos acumulados ao longo dos anos é o mote da exposição As Coisas, do artista Daniel Jablonski, que fica em cartaz de 17 de outubro a 15 de dezembro, na Galeria Janaína Torres, em São Paulo. O artista apresenta o resultado de uma longa pesquisa, iniciada em 2017, e parcialmente desenvolvida em residência de seis meses no Programa Pivô Pesquisa 2018, também em São Paulo. Com interlocução do curador Leonardo Araujo Beserra, a obra pretende reconstituir — de forma quase detetivesca — a cronologia dos 33 anos de vida do artista a partir de sua dimensão em aparência mais contingente: a de seus resíduos materiais.
Há tempos, Jablonski vem catalogando exaustivamente todos os seus pertences fora de uso, acumulados arbitrariamente desde seu nascimento até o presente dia. Os mais de 3000 itens vão desde roupas velhas à fotocópias de textos de faculdade, passando por objetos de cozinha, livros, catálogos, até fotografias de família e contas, recibos e boletos. Para além da esfera do consumo, esses objetos também servem como poderosos suportes narrativos. Preferências musicais são gravadas em fitas cassetes e filmes favoritos em VHS. Ideias são registradas em guardanapos, hábitos alimentares em listas de compras e amores em cartões postais. Alguns objetos, ao contrário, evocam a lembrança de quem os ofertou, como brinquedos, roupas, relógios, e até mesmo móveis. Outros trazem ainda nomes próprios impressos e atestam algo sobre eles, como cartas, e-mails, boletins escolares, contas de luz, laudos médicos e passaportes.
Ao repertoriar e tornar públicos quase todos os seus objetos pessoais, o artista aponta para outras possibilidades narrativas no domínio da expressão pessoal. Diferentemente do que acontece em boa parte das autobiografias, que partem das lembranças (e esquecimentos) dos seus autores, em As Coisas o artista utiliza-se dos objetos para forçar sua memória em direções radicalmente imprevistas. Trata-se de tentar compreender o que esses resíduos materiais obrigam a contar: onde estava ele quando comprou aquela camiseta? O que estava pensando enquanto lia aquele livro? Que tipo de criança foi ao jogar com aqueles carrinhos de brinquedo? Ao fazer a memória (e o esquecimento) passar pelo filtro do mundo exterior, a exposição propõe-se menos como o museu pessoal do artista e mais como um arquivo comum de uma geração compartilhada.
O caráter, em geral, trivial dos objetos repertoriados evidencia o caráter também trivial, e mesmo genérico, da vida do próprio artista. Esta nada tem de especial e surge aqui apenas como um “exemplo” para um jogo de identificação e diferença estabelecido pelos públicos: “eu tinha o mesmo álbum de figurinha”, ou “nunca fui a esse país”, etc. A possibilidade de transposição de um indivíduo à outro fica indicada no nome da exposição, a qual retoma o título de um romance do escritor francês Georges Perec, “As coisas: uma história dos anos sessenta”, de 1965. A própria ideia de se fazer uma listagem completa dos itens pessoais de um indivíduo foi tomada de um projeto (não-realizado) do próprio Perec, enunciado em um ensaio de 1977:
“Este pânico de perder meus rastros seguiu-se de uma fúria de conservar e classificar. Eu guardava tudo: as cartas com seus envelopes, ingressos de filmes, passagens aéreas, faturas, talões de cheques, prospectos, recibos, catálogos, convocatórias, jornais diários, canetas-marcadoras secas, isqueiros vazios e até mesmo boletos de contas de gás e eletricidade de um apartamento no qual já não vivia há mais de seis anos e, às vezes, passava um dia inteiro a triar e a triar, imaginando uma classificação que preencheria cada ano, cada mês, cada dia da minha vida”. (“Os lugares de um ardil” In Pensar / Classificar, 1985).
Ao tentar realizar um projeto alheio, As Coisas clarifica aos públicos que qualquer um poderia empreender o mesmo trabalho de memória. Mas, ao mesmo tempo expõe também as dificuldades de tal empreitada: por mais que queiramos organizar nossa vida, por princípio, não se pode eleger um único critério que permita fazê-lo.
A cada vez que escolhemos um novo critério, tudo muda. Para evidenciar isso, a exposição elenca e exibe simultaneamente três formas de organização, cada uma com suas virtudes e limites:
1 - Forma expositiva: todos os objetos físicos (mais de 3000) exibidos sobre estantes modulares, pastas arquivos, escaninhos, revisteiros, prateleiras e prendedores diversos, separados por ano, de 1985 a 2018.
2 - Forma indicativa: uUma extensa lista alfabética, correndo por duas paredes da galeria, com a descrição de todos os objetos apresentados, separados por categorias. Ex: Abridor de garrafas, Acordeom, Adesivo, Bandeira, Bilhete de ônibus, Boletim escolar, Cartão de embarque, Caderno, Caixa, etc.
3 - Forma enunciativa: um audioguia, presente na entrada da exposição, contendo 343 faixas de áudio, contendo breves narrativas que visam a reconstituição da vida do artista, ano a ano, a partir dos objetos arbitrariamente remanescentes. Estes serão elaborados pelo artista ao longo do período da exposição, e serão acrescentados à obra semanalmente.
Assumindo a forma expositiva de uma grande instalação imersiva, a obra remete ainda à forma e à função simbólica de um labirinto. Desde as mais antigas mitologias, estes funcionam como poderosas metáforas do sujeito: perder-se e encontrar-se ali é perder e encontrar a si mesmo.
Junto das múltiplas dimensões de acesso e disposição em As Coisas, Daniel Jablonski e Leonardo Araujo Beserra propõem, ao fim da exibição (15/12), uma conversa pública para o lançamento de uma publicação criada por meio de suas conversas. A brochura, escrita pelo curador e editada pelo artista, tenta contar a história de alguns objetos encontrados na exposição, comentando porém as biografias, factual ao mesmo tempo que ficcional, deles remontam seus contextos de criação e utilidade, para além de seus abandonando os usos e as apropriações feitas deles por Jablonski ao longos dos últimos 33 anos.
Já para o início da exposição, a interlocução dos agentes propõe outra camada interpretativa para os desejos de universalidade impressos em As Coisas. Araujo apresenta um conjunto de Censos sociológico-demográficos respondidos como sede fosse Jablonski, exclusivamente através de sua análise dos mais de 3000 objetos apresentados, sem fazer qualquer pergunta ao artista sobre sua trajetória de vida.