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setembro 12, 2018
Com o ar pesado demais para respirar na Athena, Rio de Janeiro
Galerias Athena e Athena Contemporânea se juntam e passam a ocupar casarão de 500m2 em Botafogo
Exposição de abertura, com curadoria de Lisette Lagnado, apresenta obras produzidas sob impacto da crise política que divide o país, em diálogo com trabalhos históricos de nomes consagrados da arte brasileira
Com trajetórias reconhecidas no mercado de arte, a Athena Contemporânea e a Athena Galeria de Arte decidem se juntar, constituindo agora a Galeria Athena, que passará a funcionar em casarão de 1938, no bairro de Botafogo, com 500 m² de área total. A fim de abrigar mostras de grandes proporções, foi erguida uma construção moderna no terreno contíguo, de linhas minimalistas, dotada de 140m² e pé direito de 6,5m. O casarão – totalmente preservado e restaurado – oferece ainda uma sala de 50 m2 para projetos especiais.
Para celebrar essa fusão entre as linhas de atuação moderna e contemporânea, será inaugurada a exposição Com o ar pesado demais para respirar, com curadoria de Lisette Lagnado, que reúne os doze artistas representados pela galeria. O perfil do time atual se caracteriza por integrantes com 10 anos de carreira (em torno de seus 37): André Griffo, Débora Bolsoni, Frederico Filippi, Iza Tarasewicz, Joana César, Lais Myrrha, Laura Belém, Matheus Rocha Pitta, Raquel Versieux, Rodrigo Bivar, Vanderlei Lopes e Yuri Firmeza.
Após visita aos ateliês, Lagnado se preocupou em adicionar obras históricas, escolhidas a dedo, que funcionam como lastros, permitindo adensar e ampliar o debate sobre a produção brasileira dos últimos cinquenta anos. A exposição reúne cerca de 40 obras, dentre pinturas, desenhos, esculturas, vídeos e instalações, a maioria inédita. Foram desenhadas “constelações formais e conceituais” com: Franz Weissmann (1911-2005), Hélio Melo (1926-2001), Leticia Parente (1930 - 1991), Rubens Gerchman (1942 - 2008), Antonio Dias (1944 - 2018), Leonilson (1957-1993), Anna Bella Geiger (1933), Antonio Manuel (1947), Artur Barrio (1945) e Iole de Freitas (1945).
“COM O AR PESADO DEMAIS PRA RESPIRAR”
O título “Com o ar pesado demais pra respirar” é inspirado em obra homônima de Frederico Filippi. Dada sua formação em aviação, o artista extraiu desse repertório o termo “estol”, que designa a perda de sustentação do avião, o momento em que “sufoca”: “sobe, sobe, sobe, até que não pode mais e começa a descer e involuntariamente abaixa o nariz”, conta.
A curadora se baseou na descrição dessa queda como uma alegoria que retrata a falta de expectativas com as eleições presidenciais e o colapso social do país, marcado por incertezas em relação ao futuro. A obra em si é de 2015, composta por chapas de aço galvanizadas cobertas por tinta preta, que misturam substâncias como óleo, carvão, spray e pedaços de papel cobrindo inscrições arranhadas, que remetem a resíduos de civilizações.
Lagnado explica como construiu o eixo narrativo: “Procurei dar um depoimento da atmosfera dos últimos meses no Brasil usando como recorte os artistas de uma galeria relativamente jovem. Perguntei a cada um como o noticiário tem atingido seu cotidiano, sua forma de pensamento e de ação. A classe artística parece uníssona em falar de golpe parlamentar, mas será que essa consciência se traduz na produção de linguagem, como vimos nos anos 1960-70? Recebi relatos desencontrados, que variavam da pane de expressão, do vazio, à falta de concentração, indo além da demonstração de empatia e solidariedade com a gravidade do momento. Afinal, esses artistas viveram sua maioridade quando o país teve um governo de esquerda, que assumiu a redução da miséria e da fome por meio de programas de políticas públicas. E agora?”
MÍDIA, VIOLÊNCIA, CORPO VIVIDO
A manipulação de imagens e manchetes de jornais é um dos procedimentos recorrentes que Lagnado identificou para estabelecer pontos de convergência com os anos 1960-70: apesar das décadas que separam os Flans de Antonio Manuel, o conteúdo ideológico da mídia impressa é um material irresistível entre os artistas que assistiram, em tempo real, às cenas dos capítulos que levaram à prisão do ex-presidente Lula. A série de colagens de Lais Myrrha reescreve a crise política vivida no país propondo um processo de cura [Reparação de danos]; apoiado na prática da pintura, André Griffo testemunha a onipresença do noticiário no cotidiano das pessoas, da televisão ao jornal. [O Golpe, a prisão e outras manobras incompatíveis com a democracia (2018)]
Outra peça emblemática da exposição é um exemplar das Trouxas ensanguentadas (1970) de Artur Barrio, em que o artista enrolou dejetos e material orgânico simulando corpos jogados em terrenos baldios pela ditadura militar. Lagnado traça uma correspondência com as fotografias da série Brasil (2013), de Matheus Rocha Pitta, em que pedaços de carne são misturados à terra vermelha de Brasília, retomando o significado da palavra “brasil” como “lugar de brasas”. Para a ocasião, o artista exibe imagens da série Galeria dos vencedores (2018), desdobramento de uma cartografia de gestos de sobrevivência e do trabalho realizado a partir da frase de Machado de Assis, “Ao vencedor as batatas”.
A história da entrega de um milhão de hectares da Amazônia para a produção de látex necessária à indústria automobilística de Henry Ford, no final dos anos 1920, resultou no transplante artificial de uma cidade nos moldes estadunidense, às margens do rio Tapajós. A atual pesquisa de Yuri Firmeza sobre as ruinas de Fordlândia é mostrada ao lado de uma pequena pintura de Hélio Melo, autodidata, seringueiro e ativista, que se dedicou a denunciar o processo de dilapidação dos recursos naturais da floresta. A questão dos povos originários é o assunto do vídeo que realizou com Igor Vidor, Brô MC’s, nome do primeiro grupo indígena de rap no Brasil (Aldeia Jaguapirú Bororó, Dourados, MS). Os cantos buscam divulgar as lutas, misturando o idioma guarani com português.
Uma linha transversal aproxima as esculturas recentes de Vanderlei Lopes [Projeto (tentativa e erro)], que aludem a papéis enrugados, com os bordados geométricos de Leonilson. “Um empresta valor aos outro”, justifica Lagnado. “Assim como Vanderlei Lopes olhou Leonilson, este por sua vez olhava Franz Weissmann. O Neoconcretismo continua operando na produção contemporânea, mas suas referências migraram de sentido. É importante trazer aqui os golpes sobre o plano da série Amassados (1967), de Weissmann, e a figuração pop de Gerchman para acrescentar uma descarga de violência à tendência para a sublimação que marcou os anos 1990.”
O terceiro tópico desenvolvido na exposição é o de “corpo vivido”, que atravessa as obras de Raquel Versieux (com um trocadilho cômico-tenso entre “erosão/ereção”) e de Joana César. Na prática dessa última, a produção foi se avolumando dentro do quarto e precisou sair para as ruas. De certo modo, os distúrbios mentais continuam rondando tanto desenhos que “nascem da barriga”, feitos com o ar de um secador de cabelo dirigido sobre uma gota de tinta, comos os retratos videográficos que mostram a artista roendo as unhas para arrancar de si um estereotipo feminino. A fim de contemplar a visceralidade de processos psíquicos mais subjetivos, a curadoria acrescentou gravuras de Anna Bella Geiger do final dos anos 1960 e o vídeo magistral de Letícia Parente, Marca Registrada (1975), em que a artista costura na planta dos pés a expressão “Made in Brasil”.
Mas os conflitos políticos não configuram imperativos explícitos para todos os artistas.
A crise, para o artista Rodrigo Bivar, teve um desfecho radical quando suas pinturas se tornaram abstratas: “Desde 2016, as figuras sumiram. Não houve transição, foi abrupto. Pintar gente branca na praia parecia um passatempo burguês.”
Laura Belém está representada com o luminoso Desesperato (em homenagem ao filme de Sergio Bernardes, de 1968).
Eu não quero mais isso (2018) de Débora Bolsoni leva o atual estado de depressão para um caminho mais construtivo, trazendo o conteúdo gráfico de resistência da vanguarda russa.
Já Iza Tarasewicz vem elaborando esculturas abstratas a partir de combinações algorítmicas de jogadas de xadrez. A movimentação estratégica que rege um jogo de guerra engendra uma trama de nós que a artista resgata de práticas artesanais na confecção de tapetes.
Para articular esse último grupo, uma tela preta do recém-falecido Antonio Dias, The Secret Life (1970), permite imaginar a complexidade de ser simultaneamente um artista e um sujeito político em períodos conturbados.
SOBRE A NOVA GALERIA
A Galeria Athena une as experiências da Athena Contemporânea e da Athena Galeria de Arte, dois reconhecidos espaços de arte na cidade do Rio de Janeiro. A nova galeria ocupa uma área total de 500 m², com cerca de 200m² de área expositiva, no coração de Botafogo, com fácil acesso e próxima a centros de arte, como a Casa de Rui Barbosa e a Casa Firjan. O novo espaço permitirá a realização de exposições e projetos maiores, palestras, cursos, visitas guiadas às exposições, dentro e fora da galeria, e visita a ateliês. Além de um espaço expositivo, a galeria se posiciona como um local de pesquisa, de aprofundamento conceitual e de trocas artísticas, assumindo parcerias institucionais e com a comunidade, buscando a difusão e o fomento da arte contemporânea.
“Estamos muito orgulhosos e empolgados com o novo espaço que iremos ocupar. Queremos contribuir e interagir com a arte contemporânea brasileira, exibindo nossos artistas representados e um programa exclusivo de exposições, para fortalecer nosso compromisso com uma das cidades mais dinâmicas em relação às artes, que é o Rio de Janeiro”, afirmam Eduardo e Filipe Masini, sócios da galeria.
SOBRE A CURADORA
Lisette Lagnado (Congo, 1961. Vive e trabalha entre o Rio de Janeiro e São Paulo) é crítica de arte e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Foi diretora e curadora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage entre 2014 e 2017. Dentre suas curadorias mais recentes destacam-se: “Cabelo - Luz com Trevas” (2018), na Galeria BNDES, no Rio de Janeiro; “Os afogados, os sobreviventes e o arquiteto” (2017), na 9ª edição da Video Art International Festival FUSO, em Lisboa; “O Nome do Medo”, de Rivane Neuenschwander, em colaboração com o designer de moda Guto Carvalhoneto (2016), no Museu de Arte do Rio (MAR), no Rio de Janeiro; 33º Panorama da Arte Brasileira (2013), no Museu de Arte Moderna de São Paulo; “Desvíos de la deriva. Experiencias, travesías y morfologías” (2010), com a curadora María Berrios, no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri; 27a Bienal de São Paulo - “Como Viver Junto” (2005-2006); “Fim de romance. Christine Meisner e Olivier Menanteau” (2005), em colaboração com Corinne Diserens, na Pinacoteca do Estado de São Paulo (São Paulo), Fundação Joaquim Nabuco (Recife), Musée des beaux-arts de Nantes (France).