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agosto 28, 2018
Héctor Zamora + Rochelle Costi na Luciana Brito, São Paulo
Luciana Brito Galeria inaugura duas mostras individuais em paralelo à Bienal de São Paulo
Para o final de semana que antecede a abertura da Bienal de São Paulo – um dos momentos mais agitados do circuito de arte contemporânea no país –, A Luciana Brito Galeria prepara duas mostras individuais de artistas que já tiveram participações de destaque em edições anteriores do evento: a brasileira Rochelle Costi, que participou da 24ª e da 29ª Bienais, e Héctor Zamora, artista mexicano que se mudou para o Brasil após sua participação na 27ª Bienal. A abertura das exposições será marcada por uma intervenção inédita de Héctor Zamora na fachada da Galeria, realizada no dia 1º de setembro, sábado.
Intitulada “Reforma”, a individual de Rochelle Costi (n. 1961, Caxias do Sul) ocupa a sala Rino Levi da Luciana Brito Galeria, cuja arquitetura modernista é tomada como suporte para obras em grande parte inéditas. As peças retratam espaços criados por lógicas distintas à do processo moderno, estabelecendo um diálogo entre o racionalismo e o improviso.
O olhar atento, generoso e bem-humorado sobre situações e espaços que escapam ao rigor modernista do planejamento e da ordem, abraçando – por desejo ou necessidade – o inesperado e o improviso como ferramentas construtivas é característica marcante na produção de Rochelle Costi ao longo das últimas décadas. Se sua obra surge inicialmente a partir de pequenos objetos sem valor monetário que coleciona desde a infância, tomando principalmente a forma de instalações, rapidamente o afã colecionista da artista se expande para além da fisicalidade do mundo. Ela passa, então, a reunir imagens, muitas das quais relacionadas a arquiteturas e às cidades, mas também a espaços domésticos e a outros elementos da intimidade, bem como ao modo de vida de diferentes populações e extratos sociais.
Em “Reforma”, vê-se uma síntese do trabalho que Rochelle vem realizando nas últimas décadas, sob o ponto de vista da arquitetura. Na individual, a artista se apropria da residência modernista Castor Delgado Perez literalmente como suporte para imagens de espaços que não operam pela mesma lógica que o organiza e foram motivados por outros ideais. Com fotografias impressas em canvas a ocupar paredes inteiras, impressões em tecido e sobre papel de diversas dimensões, a artista apresenta cenas que, apesar de clandestinas, parecem se integrar às linhas arquitetônicas minimalistas da galeria. É o caso, por exemplo, de “Margens” (2018), em que um tecido translúcido de grandes dimensões com a imagem de uma casa ribeirinha do norte do Brasil balança ao vento, sobreposto ao jardim de Burle Marx – um embate entre a natureza e a paisagem planejada, o dentro e o fora, a casa na floresta e a floresta na casa.
Uma rústica casa de madeira do interior do Rio Grande do Sul; uma vista inusitada do Congresso Nacional; quartos e outros ambientes pertencentes aos mais diferentes moradores – de anônimos a Juscelino Kubitscheck –; e um barraco à beira-mar para observação das marés por pescadores são algumas das arquiteturas colocadas em diálogo com a casa de Rino Levi. As configurações dessas estruturas remetem à necessidade de improviso e adaptação, característica tão marcante da cultura brasileira como um todo quanto o ideário modernista que se impregnou ao imaginário nacional desde a década de 1950. Em “Reforma”, ganham o primeiro plano os contrastes de uma nação complexa como o Brasil tomados pelo ponto de vista da construção de espaços que, programados ou não, demonstram uma lógica inesperadamente eficiente.
Héctor Zamora (n. 1974, Cidade do México), por sua vez, ocupa o espaço anexo localizado na parte posterior da Luciana Brito Galeria com uma videoinstalação resultante da performance “CAPA-CANAL”, recentemente apresentada na 11a Bienal do Mercosul.
Tendo iniciado sua carreira no México com uma pesquisa escultórica de caráter mais formalista em que realizava um comentário dos modernismos latino-americanos através de elementos de uso cotidiano, Zamora observa uma mudança significativa em sua produção a partir de sua participação na 27ª Bienal de São Paulo e subsequente mudança para o Brasil: “Passei a me concentrar mais em obras que estabelecem um diálogo com o contexto de sua apresentação. São ações compostas por dois ou três elementos, como destruir um barco ou fazer telhas de barro, que criam catalisadores capazes de repercutir nas conotações pré-existentes no ambiente local e que ao mesmo tempo conseguem se relacionar com valores universais”, explica.
Em sua realização para a 11a Bienal do Mercosul, “CAPA-CANAL” contou com 13 performers de diferentes gêneros e perfis étnico-raciais – representando a heterogeneidade da população brasileira – que, sentados sobre bancos de madeira, modelaram ao longo de duas horas mais de 500 telhas de barro em suas coxas. Posteriormente, as telhas moldadas foram queimadas, dando origem às peças de cerâmica que são exibidas na Luciana Brito Galeria sob a forma de uma instalação que conta ainda com um vídeo inédito, criado a partir de imagens captadas durante a performance.
A obra parte da expressão popular tipicamente brasileira “feito nas coxas”, utilizada para expressar algo mal feito, a qual supostamente teria suas origens no fato de que os escravos moldavam as telhas em suas coxas. “Está comprovado que nunca foram produzidas telhas nas coxas dos escravos, isso é um mito já descartado por historiadores brasileiros. Acredita-se hoje que a expressão tenha surgido na época do Brasil Império, quando ter relações sexuais antes do matrimônio era proibido”, explica o artista.
A expressão – que em Portugal mantém sua conotação original de masturbação ou roçar de coxas – teria, portanto, um cunho sexual, referindo-se a práticas que de alguma forma contornavam a imposição católica do casamento virgem. “Mesmo assim, essa interpretação sobre o trabalho escravo me parece pertinente e é sim parte da obra, porque, mesmo sendo um mito, reflete algo verdadeiro sobre a realidade brasileira, simbolizando muito bem o racismo e a precariedade das relações de trabalho que perduram no Brasil até hoje”, afirma.
Para a exposição, Zamora prepara ainda uma performance inédita, a ser realizada na abertura da mostra. Concebida para a fachada da Luciana Brito Galeria, a obra parte de uma reflexão sobre as contradições do modernismo brasileiro. Em sua faceta arquitetônica, a modernidade deu origem a construções utópicas, algumas das quais tornaram-se símbolos de um país otimista a caminho do progresso, de uma sociedade mais justa e igualitária. Essas mesmas construções, no entanto, falharam em incluir justamente aqueles que as edificaram, tornando-se eventualmente monumentos a um certo bom gosto acessível apenas às classes mais abastadas, denunciando que, de partida, o projeto moderno carregava em si as sementes de sua falência.