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agosto 24, 2018
Arte-veículo no Sesc Pompeia, São Paulo
O Sesc Pompeia apresenta, entre os dias 28 de agosto e 2 de dezembro de 2018, a exposição coletiva Arte-veículo, que destaca o uso da mídia de massa brasileira como um espaço de intervenção artística. Com curadoria de Ana Maria Maia, a mostra é uma decorrência da pesquisa iniciada com a Bolsa Funarte de Estímulo às Artes Visuais, que a curadora ganhou em 2014 e a partir da qual publicou o livro Arte-veículo: intervenções na mídia de massa brasileira (Editoras Aplicação e Circuito, 2015).
A exposição reúne 47 artistas e coletivos de diferentes gerações e linguagens, como artes visuais, performance, cinema, dança, comunicação popular e ativismo. O público poderá conferir mais de 200 obras que se apropriam dos veículos de comunicação como suporte de difusão ou que trabalham com o imaginário midiático. Vale também observar a habilidade tática para pegar carona em circuitos de amplo alcance e parasitá-los com enunciados desviantes, diz a curadora.
Os trabalhos foram realizados nos últimos 60 anos, compreendendo o período que vai do surgimento da televisão no país, na década de 1950, até a popularização da internet entre os brasileiros, nos anos 2000, passando ainda pelo auge dos jornais impressos. Na exposição, instalada na Área de Convivência da unidade, eles serão divididos de acordo com sete núcleos temáticos.
ARTE-VEÍCULO EM NÚCLEOS
O primeiro núcleo da mostra, “Perder-se”, traz obras em que a visibilidade do artista não era uma premissa para sua realização. Pelo contrário. Atuando de maneira clandestina e pontual em grandes veículos, era possível disseminar um pensamento crítico por meio das artes, principalmente durante a ditadura militar no Brasil.
Entre elas está “Clandestinas” (1975), de Antonio Manuel. Em caráter extraoficial, mas com a confiança de funcionários do jornal O Dia (RJ), o artista conseguiu acessar a arte-final das capas de nove edições e substituir algumas fotografias e textos, imprimindo tiragens alternativas em que notícias e ficções se misturaram. Em “Inserções em circuitos ideológicos – Projeto Coca-Cola” (1970), Cildo Meireles gravou anonimamente em garrafas retornáveis do refrigerante mensagens subversivas, como “Yankees go home” ou “Qual o lugar do objeto de arte?”. Já “A Corda”, de Neide Sá (1967/2010), é uma obra colaborativa, em que o público constrói um varal com recortes de textos e imagens da imprensa, atribuindo novos significados ao material.
Em “Sair às Ruas” estão trabalhos de artistas que fugiram das mostras tradicionais para atuar na esfera pública, deixando as páginas de cultura para ganhar espaço nas editorias de cotidiano.
Um dos integrantes da seção é o Grupo Manga Rosa, que apresenta “Primeiro passo, conquistar espaços” (1981-1982/2018), um outdoor que durante um ano abriu espaço para outros artistas na Rua Consolação, em frente à praça Roosevelt, dando visibilidade e escala urbana aos seus trabalhos. Também serão exibidos diferentes vídeos da TV Viva, grupo que veiculava sua programação de forma itinerante em bairros da periferia de Olinda e de Recife (PE). Um deles é o fala povo “Bom dia Déo: Quem tem medo?” (1984).
“Duelar” é o núcleo em que artistas propuseram duelos simbólicos com a mídia hegemônica. Entre acordos e desacordos, negociar foi uma estratégia recorrente.
“A situação” (1978), uma das primeiras obras de videoarte do Brasil, tem Geraldo Anhaia Mello como âncora de telejornal. O artista tenta divulgar uma notícia sobre o duro período vivido pelo país enquanto se embriaga em frente à câmera. Na noite de abertura da mostra e no dia 1 de dezembro, Aretha Sadick e Explode! apresentam “Vera Verão” (2017-2018), uma performance a partir da personagem vivida pelo ator Jorge Lafond na TV brasileira, alvo de estereótipos, mas também dona de um sarcasmo afiado.
Seguindo o percurso, “Hackear” reúne trabalhos feitos por artistas e grupos que, de diferentes maneiras, se alojaram no seio dos grandes sistemas e corporações para tentar minar sua força ou orientá-la para objetivos opostos. Pautada na busca por modelos de comunicação livre e em rede, a discussão abrange representantes do movimento de Mídia Tática, ocorrido no Brasil e no mundo no início dos anos 2000.
Nele está o vídeo “Barraco da Grobo” (2003), dos videohackers. Uma equipe do SPTV (TV Globo) fazia a cobertura do Festival Mídia Tática Brasil, em São Paulo, mas repórter e organizadores se desentenderam. A matéria não foi exibida na TV, mas o registro do confronto feito pela equipe do evento foi publicado na internet. “Arquivos táticos” (2000-2018) reúne memórias de quase 20 anos de iniciativas de artistas e ativistas de diferentes movimentos que foram organizadas por Giseli Vasconcelos, Tati Wells (midiatatica.info) e Cristina Ribas (desarquivo.org).
O quinto núcleo, “Ouviver”, mostra intervenções artísticas que fizeram reverberar vozes silenciadas por muito tempo, como o trabalho de Éder Oliveira, que vem pintando grandes retratos de jovens das periferias de Belém, suspeitos de crimes e que estampam as páginas policiais da imprensa paraense, ou “Seis dias em Ouricuri” (1976), de Eduardo Coutinho. O documentarista atuava como diretor do programa Globo Repórter (TV Globo) e, à revelia do manual de redação da emissora, que determinava planos de entrevistas curtos e objetivos, ele saia em campo para praticar escutas longas e atentas dos seus entrevistados.
Também se destaca a obra “Ensacamento” (1979), do 3NÓS3 (Hudinilson Jr., Mário Ramiro e Rafael França). Durante uma madrugada em São Paulo, o grupo cobriu as cabeças de diversas esculturas públicas com sacos plásticos – como se fazia em torturas por asfixia –, telefonando anonimamente para os principais veículos de imprensa da cidade na manhã seguinte para relatar o ato de “vandalismo” e conseguir várias matérias de denúncia nos cadernos de vida urbana.
Em discordância com a premissa de verdade imparcial propagada por alguns veículos da imprensa, artistas mostram em “Ficcionalizar” como diferentes modos de narrar a realidade podem criar versões da mesma, sempre subjetivas e questionáveis.
Isso fica evidente em “Soap Opera” (1990), uma videoinstalação de Aimberê César e Márcia X., em que um mesmo vídeo é exibido em quatro telas diferentes, tendo alteradas as escalas de cor das imagens e a trilha sonora. Em “Souzousareta Geijutsuka” (2006), Yuri Firmeza inventou um artista para participar de um projeto no Museu de Arte Contemporânea de Fortaleza. Com a equipe do museu e uma assessoria de imprensa, ele forjou um currículo internacional e um completo material de divulgação e a farsa só foi revelada na abertura da mostra, suscitando um debate acalorado nos veículos da cidade e do país.
Na última parte da exposição, “Experimentar a Linguagem”, são exibidos trabalhos de artistas que utilizaram redações de jornais e estúdios de TV como verdadeiros laboratórios de pesquisa.
Uma das pioneiras do vídeo no Brasil, Analívia Cordeiro realizou uma sequência de obras nos estúdios da TV Cultura, em São Paulo. “M3X3” (1973), a primeira delas, é uma coreografia de videodança para nove bailarinas e três câmeras. Já Nuno Ramos utilizou falas editadas de William Bonner e Renata Vasconcelos, apresentadores do Jornal Nacional (TV Globo), os fazendo “cantar” a música “Lígia” (2017), de Tom Jobim.
Ainda neste núcleo a “Reforma gráfica e editorial do Jornal do Brasil” (1957-1961), uma força-tarefa de jornalistas, artistas, poetas e críticos de vanguarda, encabeçada por nomes como Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Jânio de Freitas e Reynaldo Jardim, mostra como em cinco anos, o Jornal do Brasil (RJ) deixou de ser uma página de classificados e matérias da Agência Nacional e foi adquirindo textos próprios, fotografias e uma mancha gráfica limpa e eficaz.
(RE)INSERÇÃO NA IMPRENSA
Além da exposição no Sesc Pompeia, “Arte-veículo” também terá obras reinseridas ou inseridas em meios de comunicação brasileiros. A ação volta ao contexto original das intervenções midiáticas históricas e amplia a esfera de alcance dos artistas para outros públicos.
Entre elas, está “Furos” (1989/2018), de Jac Leirner. Dentro de um projeto comissionado pelo Jornal da Tarde (SP), a artista agiu sobre o processo de impressão e fez com que as páginas recebessem pequenas fissuras. Praticamente em branco, elas carregaram apenas as marcas como narrativa e o duplo sentido do título, já que furo também significa uma notícia em primeira mão.
Criado por Daniel Santiago, “Verzuimd Braziel” (1995/2018), ou “Brasil desamparado”, traduzido do holandês, é um projeto de “ovolatria artística”, que foi realizada em Pernambuco como ação presencial e agora ganhará transmissão em uma emissora de TV, conforme previa o artista.
PROGRAMAS PÚBLICOS
Uma agenda de encontros, performances e laboratórios completa a exposição. Distribuídos ao longo de três meses, esses eventos dão acesso a episódios de uma trajetória de relações entre os artistas e os veículos de comunicação no Brasil. Um repertório histórico e iniciativas comissionadas são articulados de modo a convocar o público a refletir sobre as disputas por um imaginário midiático hoje, diz Ana Maria Maia.
Na noite de abertura, além da performance “Vera Verão”, de Aretha Sadick e Explode!, haverá ação de montagem de “A Corda”, de Neide Sá. Entre os dias 30 de agosto e 1 de setembro, Cris Ribas, Giseli Vasconcelos e Tati Wells promovem “Arquivos táticos”, um laboratório teórico e prático para discutir uma memória de 20 anos da internet livre no Brasil, com 20 vagas abertas ao público (inscrições na Central de Atendimento do Sesc Pompeia).
Em novembro, destaque para “Teatro de Sanidades”, uma performance que reúne um grupo de mulheres e, no entorno, mas também em cena, a cobertura dos seus movimentos por youtubers convidados.
CANAL DIGITAL
Para dar continuidade ao arquivo e à memória sobre intervenções midiáticas no Brasil, mesmo depois de encerrada a mostra, “Arte-veículo” torna-se um canal no YouTube. Nessa rede digital, serão indexados alguns trabalhos em suporte audiovisual provenientes de outras páginas.
A partir de agosto de 2018, o canal também passa a receber depoimentos em vídeo de artistas e grupos participantes do projeto, com narrativas sobre cada obra que possibilitem perceber o contexto, as ferramentas e as estratégias a partir dos quais vieram a existir. Também poderão ser assistidos os registros integrais das conversas e performances da exposição no Sesc Pompeia.
SOBRE A CURADORA
Ana Maria Maia é pesquisadora, curadora e professora de arte contemporânea, nascida no Recife (PE) e radicada em São Paulo (SP) desde 2009. Tem doutorado em Teoria e Crítica de Arte pela Universidade de São Paulo (USP). Foi curadora adjunta do 33º Panorama de Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo (2013) e curadora do Rumos Artes Visuais do Itaú Cultural (2011-2). Realizou curadorias de mostras como “A Marquise, o MAM e nós no meio” (MAM São Paulo, 2018), “Elefante branco com paninho em cima” (MIS São Paulo, 2016) e “O efeito da frase” (Museu Murillo La Greca, Recife, 2012). É autora de "Flávio de Carvalho" (Editora Azougue, 2015) e "Arte-veículo: intervenções na mídia de massa brasileira" (Editora Aplicação e Editora Circuito, 2015).