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julho 27, 2018
RUT na Alfinete, Brasília
Exposição propõe vivência sobre como a transformação do indivíduo e do ambiente impulsionam os processos de criação. O modo de contemplação envolve deitar-se no chão sob bancos de madeira, tocar nas paredes e outras atitudes não-visuais. RUT é o pseudônimo do realizador.
Até a criação chegar a público - se é que um dia chega -, muitos incidentes contribuem para que ela se torne coisa no mundo. O trabalho da arte ganha corpo na interação entre fontes imprevisíveis, tais como intuições, experiências, pensamentos, expressões, diálogos e saberes; então, numa caminhada que se transforma permanentemente durante a in-corpo-ação em direção ao mundo (incorporação), essa é uma tarefa jamais acabada.
O objeto de arte retém um momento desse desenvolvimento onde as coisas vivas ganham corpo, mas representa, também, a própria produção desse momento para que ele venha a ser tecnicamente partilhado, pois nem tudo o que existe está oferecido para os sentidos. Assim, a obra exposta está colocada enquanto resultado provisório, gestado nas ondas de uma vida que bebeu e continua a beber de fontes plurais e que talvez, no ato de contemplação proporcionado pela exposição, possa chegar a outras mentes, a outros processos de criação e vitalidade - os quais nem sempre, aliás, se concretizarão em objetos específicos.
Criar se refere, portanto, a retomar e realizar a fusão das vivências, as quais eventualmente poderiam ser trabalhadas num intuito de partilha, como ação aberta à relação. Nem tudo o que criamos é feito para ser partilhado, mas algumas criações têm exatamente este objetivo: tornar um processo visível e partilhável. Então, vamos colocar as coisas da criação assim, para fazerem contato com o humano, e para fincarem relações provisórias com o que as cerca no mundo? As consequências e resultados dessa partilha, proporcionada pela arte, são imprevisíveis. Dessa maneira, surge o conceito de re\ação.
Essa denominação foi apropriada da informática, como explicado a seguir. A contra-barra, sinal de “escape” (ESC) na linguagem de programação, introduz mudanças na operação de controle, ou seja, interfere no padrão de como um programa se comporta. Na edição de um texto, por exemplo, a quebra de linha faz com que o texto não continue para fora da tela e sim na linha de baixo. A contra-barra, \ , permite transferir os caracteres não- gráficos de um código para dispositivos de saída, os quais podem, então, gerar resultados sensíveis, tais como imagens, impressos, sons, movimentos, entre outros. Podemos supor que, se não houvesse tal saída para as formas sensíveis tipicamente humanas, toda a linguagem de programação permaneceria fechada sobre si mesma, mas isso não traria interesse, pois a função da linguagem é criar fugas do código, escapes, emoções, irrupções não contidas no símbolo ou na palavra.
Re\ação 1, 2 e 3 são objetos híbridos construídos sobre as ideias de repetição e relação. Cada um deles aproxima, num mesmo espaço, sons e videos produzidos em diferentes momentos, para que então esses sons e videos possam interferir materialmente uns sobre os outros, de modo a permitir a variação dos pontos de vistas da contemplação. Re\ação 1 junta expressões relacionadas ao auto-retrato de RUT, em experiências esparsas feitas ao longo de 8 anos (2006-2014):
• a imagem em movimento não só documenta o detalhe do rosto distorcido do retratado refletido numa chapa de cobre, mas também traz os rastros de como essa imagem foi produzida e capturada, ao permitir que as marcas dos dedos deixadas pelo manuseio da chapa apareçam e ao acentuar os defeitos gerados pelo sensor digital da câmera;
• o som original do video permanece, mas a ele foram adicionadas duas trilhas sonoras:
⁃ a primeira delas é a gravação da respiração do artista 8 anos depois;
⁃ a segunda trilha é uma composição musical aleatória, realizada em torno da relação entre a liberdade artística e o sujeito histórico, na qual o que consideramos “criado” advém do resgate de ideias já conhecidas, como forma de remixagem cultural.
A posição do contemplador no espaço influi sobre como ele perceberá as relações entre essas expressões, e o conduzirá através de diferentes sensibilidades intuitivas.
Re\ação 2 ou fêmYa produz a fusão e a relação entre três obras em video:
• Fêmea (2006), onde RUT investigou a possibilidade da geração de imagens não
guiadas por um léxico visual pre-existente;
• Y resultou do registro imagético de viagens, do acúmulo de processos de
reprodução sobre essas imagens (ex.: cópias fotográficas e reprográficas; projecionismo) e da justaposição do material resultante em um vídeo onde cada fotografia é exibida durante menos de 1/4 de segundo;
• Aleluia Irmãos registra cupins alados (popularmente chamados de aleluias) voando com rapidez em torno de uma lâmpada fluorescente.
Re\ação 3 propõe a aproximação entre o som musical e o das gravações de som natural obtido em paisagens rurais e recupera os primórdios do conceito de Re\ação, quando RUT propôs que os sons fosse escutados no contato entre o ouvinte e a parede, no intuito de realizar uma transmissão por meio da vibração dos corpos que se tocam. Esses corpos, um dos quais pertence à obra exposta e o outro ao contemplador, são sistemas de linguagem que se abrem uns para os outros. Junção de trabalhos:
• Regiões audíveis (o Piscar de Olhos) (2006), uma série de referências a paisagens do interior de Minas Gerais guia uma trilha sonora, inscrições a lápis sobre a parede e uma luz avermelhada;
• Setor Faroeste I (2011), paisagens rurais gravadas e disponibilizadas no ambiente, com partes audíveis no contato do ouvido com a parede. RUT lida com os limites existentes entre os sentidos do tato e da audição e entre as ideias de superfície e território;
• Fresta (2018), intervenção realizada especialmente no espaço da Alfinete Galeria, onde um facho de luz se lança através da fresta da porta da sala de manutenção.
Por fim, Loopinheads, proposta feita de cabeceiras com sons calmantes em repetição, destinada ao relaxamento do corpo e à liberação da imaginação. É uma forma de buscar a cura com relação às marcas deixadas pelas demandas do mundo prático, uma vez que na atualidade a sociedade se desenvolve colocando a realização pessoal e a autenticidade de nosso corpo e mente em contradição com o trabalho pela subsistência. Sobreviver, quase sempre, portanto, envolve reprimir o amor ao mundo. Loopinheads pretende retomar a consonância entre o sujeito, a imaginação e a satisfação.
A contemplação dessas proposições espaciais requer ao visitante deitar-se no chão; esse é o modo com que o contemplador adentra sua jornada relacional e se coloca intencionalmente numa posição de descanso ativo.
Embora permita-se influenciar pela tecnologia, essa não deve ser considerada uma exposição de propósito tecnológico. Ela não pretende mostrar a modernidade ou o futuro, embora se aproprie de ideias da contemporaneidade. A proposta é concebida com uso de aparatos obsoletos, entre os quais estão TVs de tubo e sistemas de som mono. Outros acessos, como via Internet, serão viabilizados, mas, assim como todo acesso, serão parciais, motivo pelo qual a disponibilização será feita de acordo com as particularidades de cada meio. A ideia é de que todos somos seres limitados e, nesses limites humanos, é que podemos encontrar e desenvolver nossas potências.
RUT é pseudônimo utilizado pelo artista Allan de Lana, para refletir uma produção que ainda não havia levado a público, contendo obras que possuem um grau alto de formalização e materialidade se comparadas com a produção que Allan costumava mostrar. RUT, um aparente acrônimo, não tem significado.