|
julho 17, 2018
Ana Maria Tavares na Vermelho, São Paulo
A Vermelho apresenta Rotações Infinitas, a quinta exposição individual de Ana Maria Tavares na galeria, e a primeira individual da artista desde sua exposição antológica No Lugar Mesmo, que ocupou a Pinacoteca do Estado de São Paulo entre novembro de 2016 e abril de 2017, e pela qual a artista foi premiada com o Troféu APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) como Melhor Exposição Retrospectiva de 2016.
A artista participou de bienais internacionais, entre elas a de São Paulo, Cingapura e Istanbul, além de ter feito mostras individuais e participado de coletivas na Asia, Europa e nas Américas, incluindo a seminal mostra Ultramodern: The Art of Contemporary Brazil, no National Museum for Women in the Arts, Washington DC, EUA, em 1993.
Para essa individual na Vermelho, a artista apresenta uma série de novos trabalhos que tem como eixo central o conceito de rotação de arquiteturas autorais criando um diálogo com os arquitetos Adolf Loos (1870–1933), Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) e Oscar Niemeyer (1907-2012).
Porém, ao contrário dos arquitetos citados, que herdam os postulados contra o ornamento, Tavares, a partir do seu trabalho, afirma a presença do ornamento na arquitetura modernista. A artista mantém como estratégia na sua produção a investigação das relações entre arte e arquitetura, natureza e artifício; e ornamento e funcionalidade.
Na Sala Antonio de projeção, a Vermelho apresenta os vídeos Rotação Infinita: Invenzione para Piranesi (da série Airshaft), e Utopias Desviantes II (da série Hieróglifos Sociais), ambos realizados como modelações digitais por Tavares em 2015.
“O conjunto de trabalhos apresentado em Rotações Infinitas parte de uma vontade recorrente em minha produção de apontar para o fato de que apesar de esforços em direção a um purismo programático no campo da arquitetura modernista, essa nunca conseguiu eliminar o ornamento,” diz Ana Maria Tavares. Ela questiona o manifesto Ornamento e Crime, de Adolf Loos (1910), aonde o arquiteto determina uma arquitetura moderna travestida de um purismo que se associa às intolerâncias raciais e de classe.
Dezoito anos depois do Manifesto de Loos, a Alemanha da República de Weimar comissionou de Ludwig Mies van der Rohe a direção artística e a construção de todas as seções da participação alemã na Exposição Internacional de Barcelona de 1929, que incluía o Pavilhão Barcelona. Considerado um marco da arquitetura moderna, o pavilhão deveria representar o espírito de uma nova era para a Alemanha do Pós I Guerra Mundial, uma nação democrática, próspera e culturalmente progressiva. Mies desenhou uma estrutura de espaço contínuo que borrava os limites entre interior e exterior. Como o edifício não deveria abrigar exposições, mas servir apenas como passagem, os materiais escolhidos por Mies eram exóticos e tratavam a edificação como sua própria exposição: as paredes eram feitas de pedras de alta qualidade, como o ônix dourado e o mármore verde da ilha de Tino, na Grécia. Além de serem usados como transparências, os vidros eram tingidos de cinza, verde e branco. Oito colunas cruciformes cromadas refletiam e multiplicavam todo o espaço dentro de si.
Tavares observa que o ornamento execrado pelos modernistas se desliza da forma para os materiais que substituem os adornos artesanais e prostéticos, mesmo que dentro da dinâmica das formas industriais. A artista coloca em cheque o fato de tais materiais serem em si decorativos, assim ornamentais e, por tanto, contaminadas dentro da ótica asséptica difundida por Loos.
Na abertura de Rotações Infinitas, pedras de Travertino aparecem em duas obras da série Skena in aqua (Micropaisagens), de 2018, como duas fotografias bordadas com filamentos metálicos e revelam as impurezas das superfícies das pedras resultantes de seu processo de formação. Esse material “contaminado” traz em si memória - na forma de fósseis de ramos e folhas encravados em sua constituição – e imperfeição – com espaços ocos e com depósito de materiais em bandas mais ou menos paralelas criadas pela ação da água em contato com a rocha. O Travertino carrega a história da arquitetura: é usado a milhares de anos, da Roma Antiga até os dias de hoje. Foi uma das pedras mais utilizadas na arquitetura modernista.
Na sala 1 da galeria, Tavares estabelece um diálogo com Mies van der Rohe e o Pavilão Barcelona de sua autoria. Tavares expõe uma série de trabalhos que conjugam alguns dos materiais usados por van der Rohe com gestos, materiais e formas costumazes da produção da artista.
Em Fotogrametria Hemisférica (Barcelona/ São Paulo), 2018, Tavares cria uma conexão entre a cidade espanhola do prédio de Mies van der Rohe e a cidade aonde ela vive e trabalha.
Unindo materiais como o Travertino, chapas frisadas de aço inox de cores cambiantes e mármore verde, a artista cria campos pictóricos que propõe uma rotação entre as obras de van der Rohe, de Niemeyer e a sua. Além da organização modular característica de alguns de seus trabalhos, Tavares incrustou no mármore verde diversas lentes por onde se pode ver retroiluminados, planos da Oca que o arquiteto Oscar Niemeyer projetou para o Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
A Oca já foi objeto de investigação de Ana Maria Tavares em obras como a série Eclipse (Hieróglifos sociais) (2011), que são projeções da estrutura da arquitetura da Oca, que a transformam em um corpo de luz e sombra através da impressão das imagens sobre vidro e espelho. A Oca também aparece no vídeo Utopias Desviantes II (da série Hieróglifos Sociais), de 2015, que a Vermelho exibe na Sala Antonio em paralelo à exposição da artista. O filme, construído digitalmente, explora o interior da Oca. As manipulações digitais fazem uso de rebatimentos especulares múltiplos, que geram, segundo a artista, “uma arquitetura desviante que cede lugar a uma visão de mundo em abismo”. Como parte da série Hieróglifos Sociais, há ainda a série de Desviantes (2011), que propõe uma reflexão crítica acerca do legado modernista brasileiro a partir da releitura da arquitetura da Oca. Com esse procedimento, a artista cria um universo desviante, contaminado, ao mesmo tempo em que simula oferece a possibilidade de retomada à ordem racional, plantada na idealização do mundo modernista.
A cor e a textura das projeções da Oca em Utopias Desviantes e em Desviantes, parecem estar espelhados no mármore verde Guatemala que Tavares usa nas obras da primeira sala da galeria. O mesmo mármore também espelha os Airshafts e os Airshafts para Piranesi, da série Tautorama (2008/ 2015), bem como Rotação Infinita: Invenzione para Piranesi (da série Airshaft), 2015, também em exibição na Sala Antonio durante a exposição. Esses são ambientes 3D, onde um espaço ficcional é construído para comentar a vida utópica e mecânica imaginada pelo modernismo, a partir da obra de Piranesi, mas que revela um mundo perdido abissal.
No caso de Airshaft, a ideia é reproduzir um mundo que respira inquieto e quebra-se constantemente em uma perspectiva espelhada e fragmentada. As Prisões de Giovanni Battista Piranesi (1720-1778), Carceri d'invenzione, ou Prisões Imaginárias, influenciaram Tavares no desenvolvimento de seu olhar sob essa vida mecanizada para a produção dessas obras. Os Carceris de Piranesi são uma série de 16 gravuras que mostram enormes abóbadas subterrâneas com escadas e poderosas máquinas. As rotações promovidas por Ana Maria Tavares entre sua obra e a de Piranesi culminaram em uma exposição realizada em 2015 no Museu Lasar Segal, em São Paulo, intitulada Cárceres a duas vozes.
O diálogo com van der Rohe está presente também em Disjunção Colunar (para Mies), 2018, obra que passa a fazer parte de um conjunto de trabalhos que têm a coluna como eixo de diálogo entre a produção da artista e arquitetos como Niemeyer e Lina Bo Bardi. Disjunção Colunar (para Mies) reproduz uma das 8 colunas em aço inox do Pavilhão Barcelona, porém com 150 cm de altura, medida de referência para cortes de plantas baixa de arquitetura.
A coluna de Mies reverbera em outros trabalhos apresentados, como em Paisagens Mudas (Janela para Mies), 2018, composta por uma moldura frisada em aço inox que circunda uma composição de duas chapas de vidro – como nos jogos de transparências do Pavilhão Barcelona – e duas peças de chapas frisadas de aço inox. O inox multiplica a modulação cruciforme das colunas em uma planificação vertical a qual espelha e fragmenta seu entorno de maneira caleidoscópica com seus múltiplos ângulos.
A obra Barcelona (Antigodlin), de 2018, mostra um campo pictórico alongado e modular composto por Travertino, mármore Verde Guatemala e por uma placa de aço inox frisado furta-cor. A depender do ponto de visão do observador, por conta de um volume angular acrescentado pela artista, a peça se torna pequena e sucinta ou se revela em sua horizontalidade expandida. O título faz referência ao pavilhão de van der Rohe e a algo que está oblíquo ou, algo que está em oposição a Deus. A peça é um elogio ao ornamento.
No segundo andar da galeria estão os conjuntos da série Empenas Cegas. Ainda Loos (da série Condomínios), 2018, nos quais Tavares continua o diáogo com o arquiteto Adolf Loos, iniciado na exposição Atlântica Moderna: Puros e Negros, realizada em 2014 no Museu Vale. Em 1927, o arquiteto modernista checo Adolf Loos (1870 –1933) desenvolveu um projeto nunca realizado para a residência da cantora e bailarina afro-americana Josephine Baker (1906 –1975). O projeto partia de uma reforma rigorosa sobre duas casas existentes em uma esquina da Avenue Bugeaud, em Paris. A residência, que seria adornada em seu exterior por listras horizontais de mármore branco e preto, teria janelas fundas e pequenas para oferecer privacidade a sua ilustre moradora e para, como apreciava Loos, manter a atenção no interior da construção. No centro do prédio, estaria uma piscina que rasgaria dois andares da edificação, tendo vitrines em seu andar inferior propiciando aos convidados da artista observar seu corpo rompendo as águas.
Em Empenas Cegas, Ana Maria Tavares cria módulos angulados em mármore Striatto Olympo, de procedência Bulgara, cuja matéria sedimentada faz lembrar as listras da fachada da casa Baker. Os polígonos de Empena Cega são como múltiplas visões da fachada do projeto de Loos. As formas também podem ser vistas como positivos moldados a partir das estreitas janelas da residência, que nunca foram pensadas para dar uma visão ao longe, mas sim, irromper a visão que procurasse escapar do ambiente ilibado de Loos.