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maio 16, 2018
Ismaïl Bahri no Porto Seguro, São Paulo
Apresentada pela primeira vez no Jeu de Paume, de Paris, exposição Instrumentos traz seleção de nove vídeos do artista visual franco-tunisiano
Tomar o particular para refletir sobre o todo. Voltar-se para uma gotícula de água sobre a pele e chamar atenção para o tempo que nos cerca. Tomá-la como uma ferramenta de auscultação, que revela e amplia a força vital pulsante para, no fim, explicitar o desejo por um ritmo orgânico, avesso à agitação do mundo contemporâneo e da vida nas grandes metrópoles. É este o norte de Ligne [Linha], obra que sintetiza e abre Instrumentos, exposição do franco-tunisiano Ismaïl Bahri que o Espaço Cultural Porto Seguro recebe entre 22 de maio e 22 de julho.
Assinada por Marie Bertran, curadora independente, e por Marta Gili, diretora do Jeu de Paume, de Paris, a exposição reúne nove videoinstalações do artista visual, a maior parte delas apresentada no centro de arte contemporânea parisiense entre junho e setembro de 2017. Em São Paulo, a mostra - primeira individual do artista na América Latina – conta com a correalização de Expomus Exposições, Museus, Projetos Culturais Ltda.
Os vídeos da exposição voltam-se para movimentos e elementos singelos: a veia pulsa, a linha separa, a mão amassa, o vento sopra, o fogo queima. Água, papel e tinta transformam-se de objetos a sujeitos protagonistas. “Na maioria das obras de Ismaïl Bahri, os instrumentos atuam como meio de intersecção entre o mundo físico e o mundo das ideias, liberando sutilmente uma série de hipóteses, cujos vereditos parecem ser indefinidamente adiados”, afirma Marta Gili.
Os trabalhos ganham força pelo enredo que se estabelece entre eles – diálogos acerca de temas como memória, território, pertencimento e envolvimento, sempre mediante a exploração de uma cartografia afetiva pessoal. A sobriedade da exposição surpreende o interlocutor e pode causar certo estranhamento. “Um dos pontos fortes de seu trabalho é que ele prende a atenção. O olho procura por pistas ou sinais e se esforça para encontrar uma maneira de compreender a imagem, enxerga-a como um enigma a ser resolvido”, diz Marie Bertran.
Muitas vezes tênues e efêmeros, os fenômenos observados sob as lentes de Ismaïl nos obrigam a ajustar nossa percepção e o alcance do olhar. A ausência de som em muitos dos trabalhos reforça a densidade do conjunto: levam o visitante a uma jornada interior, pelo reconhecimento de si e de todos em uma ação aparentemente banal.
“Valorizo em meu trabalho a busca pela simplicidade. O desafio está em, justamente, arranjar uma maneira de como expor uma questão pessoal para tratar um problema que é de todos”, afirma o artista. Nesta empreitada, Ismaïl dispõe-se a investigar, de modo extenuante, objetos, escalas, ângulos e linguagens.
Ao longo dos trabalhos, o artista percorre um caminho crescente: o plano, que no início toma como foco uma gota de não mais que dois, três milímetros, vai se alargando até compreender uma paisagem inteira dentro dos limites da projeção. O mesmo ocorre com o conteúdo, material e mais figurativo em um primeiro momento, fluído e mais abstrato ao final.
Para o crítico e curador François Piron, a impermanência está no cerne do trabalho de Ismaïl. “O artista se posiciona como um observador, anda por aí e fala de miopia em relação ao seu trabalho. Ele então configura o que ele chama de dispositivo de captura para esses gestos, geralmente usando vídeo, mas também fotografia e som, sem distinção. É muitas vezes fora do quadro da imagem que o significado emerge, na presença perceptível do mundo circundante, que de repente é revelado”, afirma.
“A obra de Ismaïl Bahri tem uma atuação potente e transformadora. Ela opera a partir de elementos muito sutis, mas que em seus trabalhos, passam a ser instrumentos de conexões inesperadas”, afirma Rodrigo Villela, diretor executivo do Espaço Cultural Porto Seguro.
Sobre o artista
Ismaïl Bahri nasceu em 1978, em Túnis, capital da Tunísia. Atualmente, vive e trabalha entre sua cidade natal e as francesas Paris e Lyon. O vídeo ocupa um lugar importante em seu trabalho, embora o artista crie também desenhos, fotografias e instalações. Sua obra volta-se a elementos simples da vida cotidiana, sobre os quais desenvolve processos e atribui questões universais.
Participou da 13ª Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes, e expôs em instituições culturais como o Centro de Arte Contemporânea La Criée, em Rennes; no Jeu de Paume, em Paris; Les Églises, em Chelles; e no museu alemão Staatliche Kunsthalle, em Karlsruhe.
Seus vídeos já foram exibidos nos festivais internacionais de cinema de Toronto, Nova York, Roterdam e Marselha; e a obra “Filme em branco” fez parte da exposição Levantes, de Georges Didi-Huberman, no Sesc Pinheiros (2017). Seus trabalhos apresentam relações profundas com a obra de artistas como o chileno Alfredo Jaar (com quem dividiu mesa na abertura da Paris Photo em 2017), o albanês Anri Sala, o belga Francis Alÿs ou o brasileiro Jonathas de Andrade, com os quais participou da Bienal de Sarjah (2013).
Confira mais detalhes sobre cada um dos trabalhos apresentados na mostra:
1. Ligne [Linha] | 1’
Ligne dá conta de uma observação íntima de um corpo. Aqui, apenas a água é usada como ferramenta de exploração, reagindo às batidas do coração. Devido às suas propriedades ampliadoras, reluzentes e vibratórias, atua como um meio sensível às menores intensidades que atravessam o corpo. A gota permanece na superfície, mas sonda, por capilaridade, uma interioridade subterrânea.
2. Orientations [Orientações] | 22’’
O vídeo “Orientations” é feito de um plano-sequência filmado por uma câmera subjetiva que apresenta uma caminhada pela cidade de Túnis. O que está fora de campo, refletido em um copo cheio de tinta, serve de bússola, espécie de boia ilusória para um caminhar funambulesco. Neste instrumento óptico bastante simples, a aparição de fragmentos da cidade orienta, tende a um horizonte. O vídeo mostra um caminhar míope, uma colheita de imagens no limite do transbordamento e do delírio dos sentidos.
3. Revers [Reverso/Inverso/Avesso] | 56’48
Através do processo simples e repetitivo de amassar e desamassar uma página de revista, o vídeo traz à tona noções de desintegração, reprodução, transmutação e, centralmente, impermanência. Em um movimento cíclico incessante, a imagem desaparece pouco a pouco: liberta-se do papel, transforma-se em pó e marca as mãos do artista – resultado do contato repetitivo e da acumulação residual de calor e informação.
4. Dénouement[Desenlace] | 8’
Um quadro branco é dividido por um traço preto que vibra. O espaço, a princípio indecifrável, manifesta progressivamente suas qualidades, a partir do momento em que um corpo aparece ao fundo da tela, ligado à câmera por um longo e delgado fio que se tensiona e se relaxa alternadamente. Percebemos que estamos em uma paisagem nevada, dividida por este fio que parece correr o risco de se romper a qualquer momento. A própria paisagem é progressivamente captada, apreendida por este dispositivo. Ela também irá desaparecer pouco a pouco, absorvida pelo emaranhado do fio. A imagem do novelo que ocupa por fim o quadro inteiro é importante, porque indica, em sentido inverso, que toda demonstração traz em si uma dimensão oculta e que ver consiste precisamente em buscar o que está distante, depositado no fundo das formas e dos detalhes que habitam nossa proximidade, por mais insignificantes que sejam à primeira vista.
5. Source [Fonte] | 8’25’’
Duas mãos seguram uma folha de papel. Gradualmente, no centro, surge uma mancha escura, logo convertida em furo, resultado do fogo que lentamente consome a superfície branca. A duração do vídeo é exatamente o tempo que o fogo leva para consumir o papel, com seu belo círculo vermelho em expansão, até chegar às mãos que o mantinham.
6. Esquisse [Esboço] | 5’18”
Plano sequência de cinco minutos que mostra uma bandeira agitada por ventos violentos. Em uma imagem superexposta, ora apresenta-se branca, ora negra – sempre lisa, sem estampas, sem nação, tal como o artista, um sujeito do mundo com raízes múltiplas. Não por acaso, a bandeira é instalada em uma praia do Mar Mediterrâneo, à frente de um trecho que separa a Tunísia da Europa. Sensível às menores variações de luz, a paisagem só é revelada ao interlocutor quando o sol é escondido pelas nuvens que pairam sobre a cena.
7. Foyer [Lareira/Foco] | 31’23’’
No início, Foyer parece ser uma projeção sem filme, onde a única coisa visível é uma tela branca, acompanhada por vozes diversas. Elas são enunciadas por pessoas que se aproximam do cinegrafista, questionando-o sobre o que ele está fazendo. Entre elas, aproximam-se um fotógrafo amador, um transeunte curioso, um policial e um grupo de jovens. À medida que a situação se desenvolve, as discussões revelam os princípios de uma experiência cinematográfica em andamento. A câmera faz as vezes de uma lareira, em torno da qual as pessoas se reúnem, falam, discutem e escutam. Inicialmente centradas na câmera, tais conversas logo revelam pontos de vista singulares, que traçam as formas de uma certa paisagem social e política. São falas que permitem entrever o contexto no qual se desdobra a experiência de um trabalho que tateia em busca de um caminho em um mundo que se agita.
8. Sondes [Sondas] | 15’55”
Obra que mostra a formação quase imperceptível de um montículo sobre a palma da mão de alguém. A princípio, é difícil reconhecer a natureza exata desse monte. Algo escapa. Mas o que tal experiência ativa no corpo que a retém?
9. Film [Filme] |2’30”
O trabalho agrupa uma série de vídeos curtos com base em um mesmo procedimento: um trecho do jornal do dia é cortado, enrolado e posto sobre uma superfície de tinta preta. Ao contato com a tinta, o rolo de papel se desdobra, libertando-se do gesto que o modelou. O objeto ganha vida, ao mesmo tempo em que revela, em um movimento cinemático precário, um conteúdo imprevisto: os índices de uma atualidade que não cessa de fugir. Ao mesmo tempo que explora uma espécie de arqueologia do cinema, tal dispositivo remete ao tempo que passa, em que a tinta, seja líquida ou impressa, é o registro da história humana em curso.