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abril 17, 2018
Manoel Veiga na Alfinete, Brasília
A narrativa perturbadora de Franz Kafka e o inigualável jogo de luz e sombras de Caravaggio são motor da nova série de trabalhos de dois artistas que vêm se destacando no universo da arte contemporânea brasileira e que expõem, a partir do dia 21 de abril, nas duas salas da Alfinete Galeria. Gisele Camargo apresenta, na Sala Um, as obras que integram a série de pinturas Construção. Já Manoel Veiga exibe, na Sala Dois, os trabalhos de Matéria escura. Ambas as exposições poderão ser vistas até o dia 12 de maio, sempre às quintas e sexta-feiras, das 14h30 às 18h, e aos sábados, das 15h às 20h. Entrada franca.
O pernambucano Manoel Veiga penetrou o universo pictórico do italiano Caravaggio (1571-1610), para encontrar os espaços vazios, os intervalos no magnífico jogo de sombras e luzes que caracteriza a obra deste que é considerado por muitos como um dos maiores nomes da pintura barroca no mundo e certamente o maior pintor da Itália de seu tempo. Manoel Veiga atua apresentando o que seriam recortes de vestes dos personagens de Caravaggio. Pedaços de corpos apenas insinuados, destacando gestos e revelando os movimentos vigorosos por trás de cada figura.
“(...) chegamos ao exercício de Manoel Veiga ao adentrar as narrativas visuais de Caravaggio. Reparem na escolha pelo verbo “adentrar” e na atribuição às criações do mestre como narrativas. Veiga foge do hábito categórico das possíveis lógicas de (re)construção da história da arte como mecanismo de apropriação, o que a tantos artistas é estratégia habitual. Os procedimentos são internalizar, adentrar, deixar-se perder num labirinto de anatomias humanas e de espaços e seus comportamentos. Frear a cada parte de corpo encontrada, tatear às cegas o ar que preenche o espaço. Não é a consonância com um caráter progressista ou conservador, revolucionário ou nostálgico em relação ao passado – no seu caso, personificado em Caravaggio. É que na série “Matéria Escura”, o artista dribla a demonstração arqueológica que se estabelece como estudo de processos, de métodos e que se demonstra nas leituras sobre o pintor na história da arte. O interesse de Veiga recai na premissa de que nas dimensões espaciais de Caravaggio que relatam cenas e parecem registrar instantes há um “onde” a ser reevidenciado como vazio. É com esse sentido de ausência que Veiga traduz Caravaggio. O artista simula outra profundidade na perspectiva arquitetada pelo pintor e lhe acrescenta intervalos vazios. São interstícios constituídos de negros.
Assim, o gesto de adentrar lhe cai como prática. O artista extrai a composição cromática das pinturas, reorganiza o espaço a partir de um desenho de escuro e o que sobra são os intervalos entre as coisas: vestimentas e suas pregas e dobras, reentrâncias, ilusórias perspectivas de baixos-relevos, além dos caimentos de tecidos que formulavam uma espécie de moldura teatral dos espaços caravaggescos. Nestes novos cenários, formulados por uma presença de um negro profundo, Veiga também executa uma reconstrução da imagem do corpo que, nas narrativas de Caravaggio, lhe conferiam tanto um sentido de ação como de escala, mas não com a intenção de aniquilar os personagens e seus gestos. O intuito do artista é dissolver tais performatividades e transpô-las como índices nas vestes dos personagens e nas relações destas com o novo espaço que formula.
Estas arquiteturas traduzidas desde Caravaggio por Manoel Veiga verbalizam uma imagem/espaço que abre como possibilidade de percepção uma análise do ambiente caravaggesco. E neste rasante, o artista torna visível os limites destes objetos, ou seja, a fronteira descritível entre corpo e espaço. Vale também pontuar que com estas extrações de corpos, Veiga fabula uma outra topografia de Caravaggio, ou melhor, a sua versão de relevos para as narrativas do mestre: sugestões de braços, pernas, dorsos, troncos que se misturam esquartejados; modulações de altos e baixos entre um corpo e outro; fronteiras entre primeiro e segundo plano e ponto de fuga; borramentos entre corpos, objetos e espaço e também entre o visível e a sua sombra. Há nesse jogo de inventividade geográfica a evocação de partes do corpo em plena atuação e seus espectros que vibram no escuro da matéria negra que é espaço. Daí que nos parece oportuno relembrar o célebre trecho de um diálogo de Hamlet, quando este indaga a rainha: “Não estás vendo nada ali?”. E ela o responde: “Absolutamente nada, mas tudo o que há eu vejo”.
Galciani Neves
Janeiro 2017
MANOEL VEIGA
Nasceu em 1966, em Recife (PE). Vive e trabalha em São Paulo (SP). Graduado em Engenharia Eletrônica pela UFPE, em 1994 dedica-se às Artes Plásticas. Estudou na Escola Nacional Superior de Belas-Artes e na Escola do Louvre em Paris, França. Em São Paulo, estudou com Rodrigo Naves, Leon Kossovitch, Carlos Fajardo e com Nuno Ramos.
Realizou mostras em instituições e galerias do Brasil e do exterior, com destaque para Galeria Dengler Und Dengler, de Stuttgart (Alemanha); Memorial da América Latina, Paço das Artes e Instituto Tomie Ohtake (São Paulo); Galeria D’Estet D’Ouest, em Paris (França); Museu Oscar Niemeyer e Museu de Arte Contemporânea do Paraná, em Curitiba; Museu Murillo La Greca, MAMAM Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Recife (Pernambuco); Familie Montez Kunstverein, de Frankfurt (Alemanha) e Centro Cultural Parque de Espanha, em Rosario (Argentina).
Recebeu prêmios “Mostras de Artistas no Exterior” (Fundação Bienal de São Paulo / Ministério da Cultura do Brasil), em 2010; Jabuti (Ilustração para Livro Infantil), em 2010; Flamboyant (Salão Nacional de Arte de Goiás) e Menção Especial (Bienal do Recôncavo), ambos em 2006.
Tem obras em coleções públicas como MAC USP São Paulo (SP), Museu Oscar Niemeyer (PR) e MACParaná, em Curitiba (PR), Fundação Joaquim Nabuco, em Recife (PE); MAC Goiânia (GO); MAC Sorocaba (SP); MAMAM Recife (PE).