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março 1, 2018
Jeanete Musatti na Bolsa de Arte, São Paulo
Individual S/ Título traz à Galeria Bolsa de Arte um panorama abrangente da obra de Jeanete Musatti, com curadoria de Ricardo Resende
A assemblage ganha contornos lúdicos e intimistas, incorporando elementos do universo pessoal da artista a narrativas que fundem ficção e realidade
Após dez anos sem expor, Jeanete Musatti abre o calendário 2018 da Galeria Bolsa de Arte com a mostra S/ Título, que traz Ricardo Resende como curador. Apresentando cerca de 50 trabalhos de diversos períodos dos mais de 40 anos de carreira da artista, a individual traça um panorama abrangente de sua obra, passeando por diferentes vertentes de sua produção, articuladas como partes de uma grande instalação que vai ocupar todo o espaço da galeria. A abertura acontece no dia 8 de março (quinta-feira), a partir das 19h30.
Nas palavras de Ricardo Resende, “Jeanete Musatti coleciona, agrupa dados (objetos) e vestígios (textos e imagens) de sua passagem pelo mundo. Com esse procedimento simples a artista parece tentar levar a cabo o desejo de criar, como descreve Elisabeth Roudinesco, um ‘arquivo absoluto’”.
Nesse arquivo intimista, cada elemento, cada objeto tem um sentido exclusivo que se amplia e modifica a partir das combinações propostas por Musatti. Da mesma maneira funcionam as obras: individualmente e como peças do grande conjunto, também reinterpretadas pelas semelhanças e clivagens com outros trabalhos e com o espaço, e também com a história da artista e, por sua vez, dos espectadores. De inspiração surrealista, os trabalhos de Jeanete Musatti trazem significados abertos, nunca totalmente definíveis, mas sempre reconhecíveis menos pela esfera racional que pela sensível e pela memória afetiva.
Cada uma das duas salas da galeria recebe um grupo diferente de trabalhos: na primeira, instalações e caixas trazem obras inéditas de produção recente; na segunda, desenhos inéditos da década de 1980, que a artista produziu no período em que morou em Londres, trazem uma faceta histórica e mais formalista, da abstração geométrica.
O universo familiar e ao mesmo tempo onírico, lúdico, surge nas caixas-narrativas expostas na primeira sala. São pequenas vitrines, de parede ou com base em metal e tampo de acrílico, em que a artista compõe histórias abertas, que se completam na imaginação do observador e parecem suspensas à ação do tempo, na eternização da cena.
Algumas novidades são as caixas do saci-pererê e a que traz dois pratinhos de baquelite com desenho oriental, ambas forradas ao fundo com sobras de tecidos que a artista coleciona. Dois relevos, quadros em que objetos são dispostos e cobertos com resina branca, oferecem apenas contornos levemente distorcidos para serem completados pelo olhar e imaginação.
A matéria-prima das caixas e relevos, como é próprio da assemblage, são objetos cotidianos, como bonecos, armações de óculos e suportes de copos, que no universo de Musatti são afetivos, pinçados cuidadosamente em suas viagens pelo mundo, e muitas vezes de uso pessoal. Ao contrário de Farnese de Andrade, que dava à técnica uma gravidade que esmiuçava a dor do convívio familiar, nas caixas de Musatti essas questões deixam-se entrever de forma divertida, leve.
Também é do âmbito familiar a instalação que abre a mostra, com mesa baixa e a toalha de renda de grandes proporções (4 X 2,5 metros) presenteada a sua mãe por seu pai, e depois passada para Musatti quando de seu casamento. A peça, que pela altura da mesa acaba por “escorrer” pelo chão, é encimada por um arranjo de flores com um espelho, de onde sai uma tartaruga estilizada em tamanho natural, feita com um casco real e cristais no lugar das patas e da cabeça.
As cadeirinhas colecionadas pela artista, réplicas em escala reduzida de modelos clássicos, formam um círculo no centro da primeira sala. Pendurada em uma vassoura no teto do espaço expositivo, como um totem, uma miríade de braceletes de baquelite são um universo visual colorido e chamativo, remetendo a uma arqueologia dos modismos femininos.
O segundo espaço, mais ao fundo da galeria, tem caráter histórico. Cerca de 20 desenhos que a artista produziu durante o período em que morou em Londres, na década de 1980, inéditos, ganham agora exibição completa. Compostos por segmentos de reta que se encontram em pontos de acúmulo de tinta, nas cores preta e vermelha sobre fundo branco, compõem delicadas partituras, como na música, uma das paixões de Musatti.
Sintetizando tanto o espírito da obra da artista quanto da exposição S/ Título, diz Resende: “A obra de Jeanete Musatti trabalha com a modificação de nossa noção de escala e com a fragmentação do tempo, operando manejos originais do perto e do longe, do hiato localizado entre o trabalho e quem o observa, e do vazio do espaço expositivo, que começa onde termina a obra. Um trabalho como esse gera, portanto, uma nova percepção dramática da natureza e do mundo como formas naturais de conhecimento do destino do homem”.
“Trata-se, assim, de obra com forte conteúdo ontológico, na qual muitas inquietações, individuais e coletivas, estão expressas de forma contundente, carregada de poesia – um desejo de dar permanência a uma realidade fluida, sabendo que na vida nada é permanente. Os trabalhos que dão corpo à obra da artista constituem uma forma de enxergar a totalidade das coisas de uma ótica que coloca o humano em escala menor, diante da imensidão do mundo e da nossa noção do infinito”.
Sobre a artista
Jeanete Musatti nasceu em São Paulo em 18 de julho de 1944. Casada com o colecionador Bruno Musatti, passou a usar seu sobrenome em vez de Leirner, sua família: irmã de Adolpho e prima de Nelson, também é tia de Jac Leirner. Foi aluna da húngara Yolanda Mohalyi e do catalão Joan Ponç, e frequentou a Escola Brasil, onde se aproximou de Baravelli e suas colagens. Sua exposição de estreia foi em 1973, no Masp, a convite de Pietro Maria Bardi, e a segunda aconteceu na Paulo Figueiredo Galeria de Arte. Entre suas individuais, estão Sonhos de Pondji - Aquarelas e lançamento do livro homônimo (escrito pela artista), em 1979, no Paço das Artes; Jeanete Musatti: Uma Exposição dentro de uma Exposição, em 2008, na Galeria Nara Roesler; e em 1995, no Instituto Moreira Salles e Museu Guido Viaro (Curitiba). Entre as coletivas, destacam-se São Paulo não É uma Cidade - Invenções do Centro, curadoria de Paulo Herkenhoff para o Sesc 24 de Maio, em 2017/2018; Tarsila e Mulheres Modernas no Rio, em 2015; no Museu de Arte do Rio (MAR); Bordando Arte, curadoria de Moacir dos Anjos para a Pinacoteca do Estado, em 2008; Um Século de Arte Brasileira: Coleção Gilberto Chateaubriand, também na Pinacoteca, em 2006, passando pelo Museu de Arte Moderna da Bahia (2007) e pelo Museu de Arte de Santa Catarina (2008); e a VI Bienal de La Habana: El Individuo y su Memoria, em 1997, em Havana; além de mostras no MAM SP, MAM RJ, Itaú Cultural e British Council, entre outros. Tem obras em coleções públicas como MASP, MAC USP, MAM RJ, MAC Niterói e Deutsche Bank.
Sobre o curador
Ricardo Resende, mestre em História da Arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), tem carreira centrada na área museológica. Trabalhou de 1988 a 2002, entre o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, quando desempenhou as funções de arte-educador, produtor de exposições, museógrafo, curador assistente e curador de exposições. De março de 2005 a março de 2007, foi diretor do Museu de Arte Contemporânea do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, no Ceará. De Janeiro de 2009 a junho de 2010, foi diretor do Centro de Artes Visuais da Fundação Nacional das Artes, do Ministério da Cultura. Diretor Geral do Centro Cultural São Paulo de 2010 a 2014. É curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea desde 2014, no Rio de Janeiro. Também curador da Fundação Marcos Amaro, desde 2017, em Itu.