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fevereiro 4, 2018
Carlos Garaicoa no Porto Seguro, São Paulo
A exposição traz aprodução recente de um dos mais conceituados artistas latino-americanos da contemporaneidade. Os trabalhos apresentados propõem reflexões acerca das relações entre arquitetura, urbanismo e geopolítica
Em que medida a arquitetura pode ser entendida como moldura de uma sociedade? Quais os papéis desempenhados pela disciplina num contexto de urbanização? Como ela se curva a eventuais pressões políticas, ideológicas ou mesmo sociais? Essas são algumas das indagações que cercam e estruturam a obra de Carlos Garaicoa, artista multidisciplinar cubano que, entre 7 de fevereiro e 6 de maio, tem seu trabalho celebrado pelo Espaço Cultural Porto Seguro.
Com curadoria de Rodolfo de Athayde, a mostra Carlos Garaicoa: ser urbano reúne 8 trabalhos do artista.Entre instalações, vídeos, fotografias, maquetes e desenhos, as obras apresentam a viagem criativa do autor, para quem a cidade tem papel fundamental. O artista constroi uma poética, que coloca em contraste questões sociais, econômicas e políticas que impactam diretamente na formação das subjetividades e dos conhecimentos do mundo contemporâneo.
“A obra de Garaicoa é, literalmente, a construção física de modelos de espaços utópicos ou reais e a conjugação inusitada de símbolos que constituem também um agudo exercício de conhecimento dos fenômenos humanos, no seu contexto contemporâneo por excelência: a cidade moderna”, afirma o curador, destacando que a mostra ganha força em São Paulo, “uma cidade símbolo da utopia urbana e arquitetônica mundial”.
Para o artista, toda utopia é construída de modo a superar as limitações do presente. Paradoxalmente, entretanto, ela já nasce carregando o prenúncio de sua própria superação. O projeto de uma sociedade ideal entra em crise no instante em quese articula aum programa urbano grandiloquente. Tais questões são constantemente evidenciadas nos trabalhos de Garaicoa, que assume as contradições intrínsecas às diferentes correntes do modernismo como agentes catalisadoresde mudança e transformação social.
“Eu considero que a arquitetura é esse espaço onde posso discutir as ideias existenciais, políticas e históricas. Tenho um interesse muito grande pela fotografia e pela representação do espaço urbano em geral, porém tratando de encontrar outra problemática, mais próxima à ficção e à história", afirma Carlos Garaicoa. “Nessa deriva fui me aproximando da arquitetura e, por fim, necessitando trabalhar com arquitetos, em colaboração com uma equipe grande, tratando de convencê-los o tempo todo de que o que estamos fazendo é arte e não arquitetura”, completa.
A mostra abrange desde obras que se relacionam diretamente com o contexto cubano original do artista a produções feitas a partir do olhar de Garaicoa para as diferentes realidades do mundo, incluindo a brasileira. Exemplo do primeiro caso é a instalação Fin del Silencio[Fim do Silêncio] (2010), que traz um conjunto de tapeçarias que, somadas a duas projeções, estampam assinaturas de tradicionais estabelecimentos comerciais pré-revolucionários de Havana, capital de Cuba, ressignificadas pelo artista.
Já Saving the Safe [Trocadilho em inglês, “Safe”, “cofre” e também “protegido”, algo como “Protegendo o Protegido”](2017) conversa diretamente com o contexto brasileiro e apresenta uma escultura do Banco Central do Brasil em ouro colocada dentro de um cofre, fazendo alusão a um dos principais problemas da sociedade contemporânea na visão do artista: as crises geradas pelo mercado financeiro. A exposição também traz a recente instalação Partitura[Partitura] (2017), uma das mais longas criações do artista, desenvolvida durante cerca de 10 anos com a participação de mais de 70 músicos de rua.
[Abaixo, a descrição completa de todas as obras da mostra]
Sobre o artista
Nascido em Havana em 1967, Carlos Garaicoa sempre se interessou pelas intervenções do homem no espaço público. Em sua juventude, trabalhou como desenhista no exército, produzindo mapas. As técnicas que aprendeu nesse período foram empregadas em sua produção artística, iniciada em 1989, quando, aos 22 anos, ingressou no Instituto Superior de Arte.
Já em seus primeiros trabalhos, ele refletia sobre os usos da cidade e as possibilidades de construir alternativas aos modelos hegemônicos. O tema é constante em sua obra, marcada pelo uso de suportes distintos como vídeo, escultura, instalação e fotografia.
Sua obra integra a coleção de instituições renomadas como o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia (ES), o Guggenheim Museum (EUA) e Tate Modern (UK). No Brasil, Garaicoa já participou da Bienal de São Paulo em 1998, 2004 e 2010. Sua instalação Ahora Juguemos a Desaparecer II [Agora brinquemos de desaparecer II] faz parte do acervo do Instituto Inhotim. O artista teve ainda seu trabalho reverenciado por mostras em importantes instituições culturais do país, entre as quais a Caixa Cultural Rio de Janeiro, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e o Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Garaicoa é hoje um dos artistas mais respeitados do circuito contemporâneo internacional, embora mantenha o vinculo referencial criativo com Cuba. Sua obra abre um leque de temáticas universais, que refletem a experiência de uma vida de viagens contínuas, alternadas com sua estadia dividida entre seus estúdios de Madri e Havana. O artista fundou ainda o programa de residência artísticas “Artista x Artista”, que estimula um diálogo reflexivo sobre arte e outros temas caros à cultura contemporânea, além de promover novos artistas.
Sobre o curador
Formado em Filosofia pela Universidade Estatal de Moscou (M. V. Lomonosov), Rodolfo de Athayde é curador e produtor cultural. Fundador da “Arte A Produções”, ele é responsável por mais de vinte projetos expositivos nos últimos 10 anos.
Como curador, teve ao seu cargo mostras de grande repercussão de público e da crítica, tais como Los Carpinteros: Objeto Vital;Construções Sensíveis: A experiência geométrica latino-americana coleção Ella Fontanals-Cisneros; A Virada Russa: A Vanguarda na coleção do Museu Estatal Russo de São Petesburgo; Islã: Arte e Civilização; Kandinsky: Tudo começa num ponto;Arte de Cuba, entre outras.
Relação de obras da exposição
Fin del Silencio[Fim do silêncio] (2010)
Conjunto de tapeçarias que, somadas a duas projeções, estampam no chão assinaturas de tradicionais estabelecimentos comerciais pré-revolucionários da capital de Cuba, Havana. A obra faz alusão a um passado marcado tanto pela fartura de determinados grupos quanto pela desigualdade social. Os textos e símbolos originais são alterados e ressignificados pelo artista: Reina [”Reina”, imperativo de “reinar”], por exemplo, vira Reina destruye o redime [Reina, destrói ou redime]; enquanto La lucha [A luta] torna-se La lucha es de todos [A luta é de todos].
Portafolio [Portfólio](2013)
Instalação onde Garaicoa expõe oito pranchas de latão gravadas com palavras que estamparam as bandeiras e faixas de recentes manifestações populares relacionadas à crise econômica em países como Irlanda, Grécia, Chipre, Portugal, Espanha e Itália, entre outros.
Wer im Glashauss sitzt...[Quem tem telhado de vidro] (2013)
A instalação traz uma representação do Haus der Kunst, edifício icônico de Munique, construído durante o governo de Hitler para abrigar a "verdadeira" arte alemã, em oposição à artedas chamadas vanguardas, tida pelos nazistas como "arte degenerada". Com o uso do vidro translúcido e do metalna construção da peça – materiais bastante utilizados pela arquitetura moderna –, o artista subverte a lógica nazista de construir em pedra e em estilo neoclássico. A obra é uma antítese do prédio original, que nessa versão modernista ganha ares do vanguardismo ao qual se opunha.
Infamous Hidden Houses [Infames casas ocultas] (2014)
Série de quatro desenhos que retratam casas de personalidades tristemente famosas do mundo contemporâneo: o terrorista Osama Bin Laden, a fraudadora financeira norte-americana Ruth Madoff, o empresário espanhol acusado de inúmeros crimes de corrupção Francisco Correa e o austríaco Josef Fritzl, figura que ganhou notoriedade internacional por ter mantido a própria filha em cativeiro por mais de 20 anos. Com um traço bastante sutil, o artista delineia tais edifícios, muitas vezes cobertos por uma vegetação exuberante, como se a natureza ajudasse a esconder esses refúgios do olho do público.
Aniversário(2015)
A instalação traz uma coleção de selos inspirada em um exemplar de 1940 desenhado por Richard Klein – artista alemão simpático ao regime nazista.A partir de uma fotografia de Heinrich Hoffmann, fotógrafo pessoal de Adolf Hitler, a estampa marcava as comemorações do 51º aniversário do ditador alemão. Na instalação, ele apresenta um conjunto de 37 selos, elaborados a partir de retratos de figuras políticas internacionais. Na exposição, cada selo é colocado sob uma lente de aumento individual.
Partitura(2017)
Grande instalação desenvolvida ao longo de 10 anos com a participação de mais de 70 músicos de rua. A obra é formada por um conjunto de pedestais com tablets e fones de ouvido, distribuídos pelo espaço como em uma orquestra sinfônica. Cada dispositivo apresenta um músico individual e seus diferentes instrumentos e especificidades, entre cordas, sopro, percussão, voz e composição. Ao centro, ocupando o lugar do regente, há um pequeno palco com três telas e caixas de som, por meio das quais a interpretação dos músicos pode ser apreciada como um todo.
Saving the Safe (Banco Central do Brasil)) [Jogo de palavras no inglês: “safe”, “cofre”, é também “salvo”, “protegido”. Algo como “Protegendo o Protegido”](2017)
Instalação que traz uma escultura do Banco Central do Brasil em ouro que, colocada dentro de um cofre, faz referência a uma das principais tensões da sociedade contemporânea, as das crises geradas pelo mercado financeiro. Ao mesmo tempoem que instiga desejo, a valiosíssima joia representa a ideia de uma instituição que também pode violentar, justamente por assegurar a si própria e seus interesses em detrimento das dificuldades vividas pelos indivíduos - em parte, ocasionadas por instituições como ela, inevitavelmente presas às flutuações do mercado financeiro e às especulações globais.
Abismo (2017)
A animaçãoestuda a convergência entre a gestualidade teatral de Hitler em seus discursos e sua conhecida obsessão pela música clássica. A melodia que serve de base à obra é uma interpretação de Quatuor pour la fin du temps (Quarteto pelo fim do tempo), peça composta por Olivier Messiaen enquanto estava confinado no campo de prisioneiros de guerra de Stalag VIII-A. A peça foi executada pela primeira vez em 1941, por Messiaen e outros três músicos detentos, no próprio campo de concentração, ante um público estupefato. As mãos reproduzem os gestos mais comuns de Hitler em seus inflamados discursos. Essa mímica alienada, de estéril regente de orquestra, se apresenta em dissonante convivência com a sonoridade vanguardista, nascida em resistência ao cativeiro.