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janeiro 9, 2018
Carta de Lisette Lagnado sobre seu desligamento da EAV Parque Lage
Caros professores, funcionários e amigos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage,
Comunico meu desligamento da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
Cheguei no início de 2014, a convite de Marcio Botner, Presidente da organização social Oca Lage, então responsável de dois equipamentos de prestígio na cidade, a Casa França-Brasil e a EAV Parque Lage, para atuar como sua vice-presidenta.
Em agosto de 2014, com a saída da diretora da Escola, assumi o cargo, ainda na gestão da Oca Lage, iniciando um novo programa de ensino e exposições.
Quando o estado rompeu com a OS, a então Secretária de Cultura Eva Doris Rosental me pediu para permanecer no cargo.
Em fevereiro deste ano, Eva Doris foi exonerada e o novo Secretário de Cultura nomeou o economista e colecionador Fabio Szwarcwald para meu lugar. Assumi então a função de Curadora de Ensino e Programas Públicos.
Domingo passado, das 11h às 23h, foi aberta a mostra-happening "Escola em Transe", em comemoração aos cinquenta anos do filme Terra em Transe de Glauber Rocha.
O Palacete e os jardins do Parque Lage receberam cerca de 6 mil pessoas, que podiam conferir tanto a mostra final dos alunos nas Cavalariças, com obras selecionadas de professores e ex-estudantes na Capelinha e Galerias 1 e 2, vitrines de documentação, performances, projeções de videoarte, sem contar a III Mostra de Impressos, a II Varanda Sonora e ateliês gratuitos do parquinho lage (núcleo recém-lançado para crianças).
Resultado de um esforço colossal de uma equipe reduzida, das áreas de ensino e produção, além de nossa Biblioteca | Centro de Documentação e Pesquisa, a exposição foi montada em tempo recorde. Graças a nossa determinação coletiva, foi possível apresentar mais de 300 trabalhos de cerca de 200 participantes em menos de 24 horas.
No entanto, foi aberta ainda incompleta, sem a lista de participantes nem fichas técnicas. Cabe informar que parte do atraso se deveu também à chegada tardia de trabalhos após a data prevista, ocorrendo inclusive na própria abertura.
Felizmente, alguns professores estiveram comigo no sábado e dúvidas foram esclarecidas por celular e fotografias com os demais. Puderam testemunhar a quantidade de trabalhos que precisavam subir para paredes monumentais, exigindo uma lógica interna para uma devida valorização.
Fiquei emocionada de ver como os funcionários do ensino e produção se desdobraram para garantir a cada integrante uma visibilidade digna.
É do conhecimento de todos que parte de minha equipe segue trabalhando sem remuneração regular, em condições adversas, pronta a atender solicitações das mais variadas que chegam da Secretaria de Cultura, da Direção e do corpo de professores e alunos. É isso que chamamos de "resistência": manter viva, alegre e atuante uma instituição de ensino a despeito da falta de financiamentos para nossos projetos pedagógico-culturais.
Ressalto que nada disso teria sido possível não fosse a colaboração de Rosa Melo (já exonerada), que se colocou à disposição de forma solidária e veio reforçar a montagem no sábado para podermos honrar a responsabilidade de entregar a exposição prometida.
Hoje, foi feito o levantamento dos ajustes necessários e levado para a Direção, que está ciente dos próximos passos
Gostaria que cada professor transmitisse a suas respectivas turmas o que representou essa montagem em termos de complexidade e coragem no momento político que estamos vivendo. A EAV não é museu, nem galeria. É uma escola de arte!
Nos últimos meses, graças à mobilização de artistas consagrados, a Escola participou da artrio e vendeu a tiragem inteira de múltiplos e arrecadou fundos necessários para garantir um programa de ensino público para 2018. O Jantar Beneficente também foi um sucesso.
No entanto, como se viu acima, a falta de repasses do estado e o desmantelamento da equipe original vem comprometendo a qualidade do meu trabalho, o que me impede de permanecer na estrutura atual.
Ciclos se fecham para que outros iniciem. Devo dizer que foram anos fundamentais para minha vida profissional e afetiva.
Deixo-lhes um forte abraço e meus melhores votos para seguirmos "firmes e atentos" para os novos movimentos de 2018!
Lisette Lagnado
[*] Para aqueles que não puderam ainda ler o texto curatorial, segue abaixo.
Que papel pode ter uma escola de arte frente ao desencanto de um país que, até pouco tempo, afirmava ter conseguido eliminar a pobreza extrema, segundo o estudo "Prosperidade Compartilhada e Erradicação da Pobreza na América Latina e Caribe" do Banco Mundial?
Ao celebrar os 50 anos do mítico filme Terra em Transe de Glauber Rocha, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage se transforma novamente no cenário do Palácio de Alecrim. No roteiro do cineasta baiano, um golpe de Estado tomou a realidade de Eldorado, país forjado na ficção e alocado no Atlântico Sul. A intensa verve dos devaneios de um poeta vencido já era conhecida no seu texto-manifesto "Eztétyka da fome" (1965).
Se a poesia e a política são demais para um só homem (frase de Paulo Martins, protagonista do filme), elas se tornam muito mais pesadas para um homem sozinho. Transe é coletivo. Transe é fome. Transe é visceral. Transe é êxtase religioso. Distorção da realidade - delírio.
Mas o que nos une com o filme Terra em Transe (1967) de Glauber? Tentar compreender que país é esse Eldorado levanta questões atuais. Por exemplo: que valores culturais estamos cultuando? Que escola pública queremos?
Como um convite a outros graus de consciência, "Escola em Transe" reúne artistas (entre professores, estudantes e ex-alunos) para abordar esse clássico do cinema político e discutir a atualidade de uma obra que recebeu vários prêmios europeus, porém provocou uma violenta polêmica cultural entre a direita e a esquerda da época.
Integrada à tradicional mostra final dos alunos, a exposição apresenta pinturas, gravuras, esculturas, performances, intervenções, oficinas abertas, documentos históricos, textos, anotações para aulas, fotografias e filmes que dão tônus à atmosfera da EAV, descortinando seu cotidiano interno.
Ao exibir esse emaranho de fluxos criativos, percebe-se sua dimensão utópica. Além de evidenciar práticas pedagógicas de seus professores, alguns deles atuantes desde os anos 1970, o Parque Lage reivindica uma arte com caráter ético-político e capacidade de chacoalhar estruturas, questionando o rumo de instituições que, obcecadas pela produção de objetos, acrescentam níveis de desigualdade na sociedade.
A luta contra a miséria continua. Colocar em transe modelos que não se sustentam mais é uma forma de investir na imaginação política para erguer outras modos de existência, baseados no afeto e na solidariedade. Só interpelando narrativas hegemônicas uma escola saberá colaborar na construção de processos de autonomia e decolonização do pensamento.