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novembro 6, 2017
Implosão: Trans(relacion)ando Hubert Fichte no MAM Bahia e CAHO, Salvador e Rio de Janeiro
Obra de figura chave do underground literário alemão dos anos 1960 chega finalmente ao Brasil, com lançamento de livro e exposição que reúne trabalhos inspirados nas viagens erótico-etnográficas do escritor pelo país
Fichte gostava de sexo. E gostava de viajar. Gostava particularmente do Brasil e dos brasileiros. Um dos maiores autores cults alemães, poeta maldito e cronista do submundo de Hamburgo, Hubert Fichte (1935-86) ganha exposições de arte e edições de sua obra em diversos países. Um grande projeto internacional, concebido por Anselm Franke e Diedrich Diederichsen, lançado na Alemanha pela Haus der Kulturen der Welt (HKW) em parceria com o Goethe-Institut, leva o legado de Fichte às cidades que ele visitou e sobre as quais escrevia: Lisboa, Salvador, Rio de Janeiro, Dakar, Nova Iorque, Santiago do Chile, entre outras. No Brasil, a mostra Implosão: Trans(relacion)ando Hubert Fichte, com curadoria do filósofo Max Jorge Hinderer Cruz e do artista Amilcar Packer, será aberta na capital baiana em 7 de novembro, no Museu de Arte Moderna da Bahia, seguindo até 17 de dezembro; e, nas terras cariocas, no dia 25 de novembro, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, onde permanece até 13 de janeiro de 2018. Em ambas as cidades, será lançado um dos livros seminais para compreensão do trabalho do autor, “Explosão. Romance da Etnologia”, com tradução para o português de Marcelo Backes e selo da editora Hedra. “Explosão” também será lançado em São Paulo, em 28 de novembro, no Goethe-Institut, seguido de pocket show com o compositor e instrumentista Negro Leo e participação do artista alemão Diedrich Diederichsen.
A mostra “Implosão: Trans(relacion)ando Hubert Fichte” reúne trabalhos de artistas contemporâneos, principalmente brasileiros, convidados a incursionar no universo de Fichte, desdobrando-o em criações inéditas ao lado de trabalhos históricos. A exposição propõe um questionamento sobre os olhares, posições, preconceitos e lugares de fala do poeta libertário alemão, judeu, homossexual, que procurou no Brasil novas alianças minoritárias, tanto nos terreiros quanto nos banheiros públicos. Participam Ayrson Heráclito (BA), Coletivo Bonobando (RJ), Letícia Barreto (SP), Michelle Mattiuzzi (SP/BA), Negro Leo (MA), Pan African Space Station (África do Sul) e Rodrigo Bueno (SP). Além disso, a mostra apresentará instalações e obras de arquivo que se alinham com o próprio olhar de Fichte em seu contexto histórico, assinadas por Hélio Oiticica, Leonore Mau e Alair Gomes.
Juntamente à edição do livro de Fichte em português, será também lançada uma publicação de título homônimo à exposição, editada por meio de uma colaboração entre a dupla de curadores da mostra e a pesquisadora Cíntia Guedes. São reunidos textos, conversas e entrevistas com alguns dos artistas participantes, assim como com figuras relevantes do cenário político e intelectual brasileiro, como Indianara Siqueira, a performer e ensaísta Jota Mombaça, Mateus Ah, a fotógrafa e diretora de cinema Vanessa Oliveira, o antropólogo Sérgio Ferreti, o Coletivo Bonobando, a antropóloga e diretora de teatro Adriana Schneider e o músico Negro Leo.
Em Salvador, o projeto ainda se vincula ao XIII Panorama Internacional Coisa de Cinema, onde irá exibir quatro foto-filmes de Fichte e Leonore Mau, no dia 9 de novembro. A sessão será acompanhada de mais um momento de lançamento do livro “Explosão. Romance da Etnologia”, com uma leitura do Coletivo Bonobando.
SOBRE HUBERT FICHTE (21 de março de 1935, Perleberg/Alemanha – 8 de março de 1986, Hamburgo/Alemanha) – Escritor alemão, bi-/homossexual, de pai judeu e criado durante a Segunda Guerra, é uma figura chave do underground literário alemão dos anos 1960, também frequentemente relacionado ao universo beatnik. Após a fama do seu romance “Die Palette” (1968), decidiu viajar pelo mundo seguindo as rotas das diásporas africanas pelo Senegal, Benin, Nigéria, Togo, Haiti, República Dominicana, Granada, Venezuela, EUA e, sobretudo, pelo Brasil, escrevendo seu ciclo inacabado de 18 romances e ensaios sob o título “A História da Sensibilidade”. Fichte viveu os últimos anos de sua vida com HIV/AIDS, principalmente em Hamburgo, e faleceu em 1986 depois de complicações de saúde.
No Brasil, circulou principalmente pelo Rio de Janeiro, Salvador e São Luís, por três extensos períodos entre 1969, 1971-72 e 1981-82, desenvolvendo o que chamou de “antropologia experimental” ou “etnopoesia”. Percebido como escritor polêmico, Fichte sem dúvida fez sua contribuição ao mundo literário por meio de um impressionante compêndio de pesquisas sobre as religiões afro-americanas no Brasil, como o candomblé e o Tambor de Mina, e ao mesmo tempo desenhou vastas cartografias do submundo gay nas metrópoles brasileiras, durante o período militar. Dessa interseção complexa nasce uma “outra” poesia, uma “outra” etnografia, uma “outra” forma de jornalismo e comentário político; uma magnífica obra por descobrir e que ao mesmo tempo exige “outras leituras” e um desafio “transrelacional” para o leitor contemporâneo, ainda mais para o leitor brasileiro em 2017.
SOBRE O LIVRO – “Explosão. Romance da Etnologia” é um dos romances centrais da “História da Sensibilidade” fichteana. O livro resume as viagens e andanças de Fichte pelo Brasil – Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, Recife, Belém, Manaus –, visitando terreiros, mães de santo, celebridades da antropologia, banheiros públicos, os “cinemões” da época – lugares de encontro gay –, ladeiras estreitas e praças escuras. No Brasil, ele tem sua primeira edição pela editora Hedra, com tradução do escritor, professor, tradutor e crítico literário Marcelo Backes.
SOBRE O PROJETO – O grande projeto internacional, batizado como “Hubert Fichte: amor e etnologia”, foi concebido por Anselm Franke, curador do departamento de artes plásticas da HKW, e o autor e crítico Diedrich Diederichsen, que respondem pela direção artística da iniciativa. Sua primeira exposição foi inaugurada em 23 de setembro de 2017 em Lisboa, Portugal. Depois do Brasil, seguirá para Chile, Senegal e EUA, terminando na Alemanha, em 2019. Cada mostra que compõe o projeto geral conta com curadores locais, gerando, assim, exposições singulares, que levam em consideração as especificidades de cada contexto, assim como as particularidades dos escritos de Fichte em relação a cada cidade.
“Hubert Fichte: amor e etnologia” é uma realização da Haus der Kulturen der Welt (HKW), Berlim, e do Goethe-Institut, em parceria com a Forberg-Schneider Stiftung e S. Fischer Stiftung, tendo apoio institucional do Museu de Arte Moderna da Bahia, vinculado ao Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) e Secretaria de Cultura do Governo do Estado da Bahia (SecultBA), e do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Secretaria Municipal de Cultura e Prefeitura do Rio de Janeiro.
“IMPLOSÃO: TRANS(RELACION)ANDO HUBERT FICHTE”
ARTISTAS CONVIDADOS e OBRAS CRIADAS
AYRSON HERÁCLITO (Macaúbas, BA) – Artista visual, curador e professor, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CAHL/UFRB). Suas obras transitam pela instalação, performance, fotografia e audiovisual, lidam com frequência com elementos da cultura afro-brasileira e suas conexões entre a África e a sua diáspora na América e já foram vistas e premiadas na Bahia e em mostras, festivais e bienais internacionais, em países como Bélgica, Angola e Portugal. Foi curador-chefe da 3ª Bienal da Bahia. Possui obras em acervos do Brasil e do exterior.
OBRA: O sagrado e a visibilidade (fotografia e vídeo) – O desejo explosivo de Hubert Fichte em revelar os segredos dos rituais do Candomblé no Brasil motiva a criação de uma produção artística contemporânea que apresenta as tensões e negociações entre distintos extratos sociais na Bahia da década de 1970.
COLETIVO BONOBANDO (Rio de Janeiro, RJ) – Bando de artistas autônomos, criado em 2014. É formado por artistas de diversos lugares do Rio de Janeiro, com formações, idades, vivências e experiências distintas. Busca conectar a cidade, ocupando espaços: a rua, o beco, a praça e também o teatro. Por meio de relações em rede, o Bonobando trabalha para a construção do conhecimento compartilhado, abordando questões contundentes do Brasil contemporâneo e redimensionando as fronteiras entre estética e política.
OBRA: Etno-Fetiche (performance cênica e instalação) – Apresenta situações, compostas por cenas, ações e instalações, que atritam, em exercício descolonizador, a obra de Hubert Fichte.
LETÍCIA BARRETO (Sorocaba, SP) – Como bolsista da Fundação Rotary Internacional, estudou Artes Plásticas no Instituto Lorenzo de Medici, em Florença, Itália. Lá, fez cursos de formação e especialização para professores em artes plásticas. É mestre em Artes Visuais e Intermédia pela Universidade de Évora, Portugal. O seu trabalho artístico desenvolve-se através de vários meios de expressão, privilegiando a pintura, o desenho, a fotografia, a analogia visual, a intervenção sobre objetos e a intervenção urbana. Participa desde 1992 de exposições coletivas e individuais, tendo já exposto no Brasil, Itália, Estados Unidos, Equador e Portugal. Em 2007, emigrou para Lisboa a convite do Nextart, onde trabalhou por seis anos. Entre 2013 e 2016, coordenou o projeto Nextart Brasil em Sorocaba, São Paulo. Em 2017, voltou a Portugal, para dar continuidade ao seu trabalho artístico e como arte educadora.
OBRA: Entre torres de marfim e deuses de ébano (pintura) – Para além de investigar o racismo e sua construção histórica, o interesse da artista está especialmente em reconhecer o papel da “branquitude” nesse contexto. Em sua obra, a reação química da água sanitária sobre o tecido alude metaforicamente a um “branqueamento do pensamento”, marcadamente etnocentrista. A marca do preconceito, assim como a da água sanitária, é profunda e permanente. Nesse processo de apagamento, de despigmentação das superfícies, a artista tenta, emprestando uma expressão de Fichte, “chegar às camadas mais profundas de si”, ao investigar a própria identidade branca e racismo, herdado das sociedades onde nasceu e vive, racismo institucionalizado e entranhado na cultura e nos hábitos cotidianos, estrutural na formação social. As pinturas foram concebidas a partir de fotografias históricas, onde os aspectos do exótico/erótico são bastante evidentes. No discurso sobre a baianidade, quem é realmente o “outro”?
MICHELLE MATIUZZI (Nascida em São Paulo, SP, vive e trabalha em Salvador, BA) –Performer e escritora negra. Residente do programa CAPACETE em Atenas, em colaboração com a Documenta 14, 2017.
OBRA: Whitenografy (vídeo-performance) – Um processo que se inicia com a experiência numa residência artística internacional na cidade de Atenas, na Grécia, que tem como pano de fundo a Documenta 14. Trata-se de um desejo de criar narrativas e imagens que apontem os paradigmas estéticos, éticos e políticos da branquitude, como parte de uma pesquisa inscrita no marco dos estudos deste tema.
NEGRO LEO (São Luís, MA) – Compositor e instrumentista, tem oito discos lançados. Entre 2014 e 2015, lançou “Ilhas de Calor” e “Niños Heroes”, discos que lhe renderam resenhas no The New York Times, na revista Playboy norte-americana e o levaram a palcos prestigiados no mundo, como Cafe Oto e Counterflows Festival. Atuou como compositor da trilha sonora do filme “Intuito”, de Gregorio Gananian.
OBRA: Coisado (instalação sonora) – A instalação sonora proposta é resultado de sons captados em ambientes públicos e privados. O título “Coisado”, expressão corrente em várias regiões do Brasil, refere-se ao efeito de “coisa” (no sentido mágico) sobre algo ou alguém, algo que pretendemos aplicar ao dispositivo de investigação. O artista reuniu gravações de campo da festa de bumba meu boi, tambores de crioula, sons urbanos de São Luís (MA), coro gravado em ambiente controlado, e, depois, inseriu esses sons numa interface que os tornasse tocáveis simultaneamente com uma banda, por sua vez, mesclada de instrumentos convencionais e não convencionais, como piano e um tocador de fitas cassete. Assim como os aspectos normativos da língua são inconscientemente assimilados pelo uso, a intenção aqui é levar ao espectador o resultado da investigação sonora através do uso imaginativo e mágico do dispositivo. A opção pela investigação de manifestações culturais da diáspora negra e sua consequente imaginação sônica é devir do sonho do autor. Tudo isso transformado por processos mágicos.
PAN AFRICAN SPACE STATION (África do Sul) - Fundada pela Plataforma Chimurenga em 2008, a Estação Espacial Pan Africana (PASS) é um periódico, um estúdio de rádio em tempo real, um espaço de performance e exposição; uma plataforma de pesquisa e arquivo vivo, bem como uma estação de rádio na internet.
OBRA: Refavela: Brazil at FESTAC ‘77 (podcast) – O podcast é uma exploração da participação do Brasil no 2º World Black and African Festival of Arts and Culture (FESTAC '77), que foi realizado em Lagos, Nigéria, em janeiro e fevereiro de 1977. FESTAC '77 é considerado como um importante momento do Brasil no seu processo de “tornar-se africano”, e o trabalho examina o impacto desse evento por meio de gravações que resultaram dele, como os álbuns “Refavela”, de Gilberto Gil, e “Bicho”, de Caetano Veloso.
RODRIGO BUENO (Campinas, SP) – Artista à frente do Ateliê Mata Adentro, um galpão no bairro paulistano da Lapa, onde articulam-se diversos processos criativos que recuperam resíduos da cidade e os transformam em ambientes, encontros, pinturas e jardins que falam da continuidade da vida, do eixo que sustenta o todo, da cultura em constante movimento. Coordena a criação de espaços dinâmicos verdes, fundamentados na recuperação de materiais, encontro, cultivo, ritual e celebração no Goethe-Institut, em unidades do SESC e principalmente em seu atelier. Participou de residências em diferentes localidades do mundo, foi convidado da Bienal de São Paulo 2008 e expôs em importantes instituições brasileiras e em galerias e instituições em Bruxelas, Londres, Nova Iorque, São Francisco, Paris, Buenos Aires, Bogotá e Lima.
OBRA: Rebentos (instalação) – Eixo cósmico da sala central do térreo. Deslocamentos em turbulência assentam-se. Rebentos gravitam suspensos pelo espaço. Em expansão, mapa de tensões. Piso, paredes e teto – o desenho desafiado. Através. Condutores da trama. O que foi limite de território, divisão e medo, agora se desdobra como abertura – movimento e possibilidade. Ferramentas de Ogum, Iansã e Ossain emergem na Madeira, Ferro e Fogo. Potência dinâmica. Chamada ancestral. O Rebento nasce agora como objeto livre, transcendente em nova função. Reflexo.