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agosto 31, 2017
Das mãos e do barro na Millan, São Paulo
Aracy Amaral assina curadoria de mostra inédita com obras de ceramistas da tradição ancestral paraguaia
114 obras das artistas paraguaias Julia Isídrez, Ediltrudis Noguera e Carolina Noguera ocupam a Galeria e o Anexo Millan
A Galeria Millan recebe, de 02 a 30 de setembro de 2017, a exposição inédita Das mãos e do barro, com curadoria de Aracy Amaral, co-curadoria do artista Osvaldo Salerno, um dos diretores do Museo del Barro, de Assunção, e participação do teórico Ticio Escobar. A mostra, que ocupa os espaços da Galeria e Anexo Millan, apresenta pela primeira vez em São Paulo a visceralidade presente na tradição centenária da cerâmica paraguaia a partir de um conjunto de 114 obras, realizadas em 2017, das artistas daquele país: Julia Isídrez, Ediltrudis Noguera e Carolina Noguera.
A mostra foi concebida por Aracy Amaral em 2009, por ocasião de sua curadoria na Trienal do Chile, quando a curadora teve um contato mais profundo com as obras dessas três artistas guaranis autodidatas que honram uma tradição centenária, cujas raízes remontam ao período pré-colombiano, em seu país de origem. “Artesãs que laboram diuturnamente, tendo aprendido com suas mães, que por sua vez aprenderam com suas mães, numa cadeia que vem quase desde o período colonial até nossos dias. A mulher amassa o barro úmido, o homem trabalha na cestaria ou na marcenaria”, conta Amaral.
Itá e Tobatí, cidades natais de Julia Isídrez e das irmãs Ediltrudis Noguera e Carolina Noguera respectivamente, são dois reconhecidos centros de produção de cerâmica Guarani, povo que cultiva a tradição das artes do barro, caracterizada pela produção de urnas funerárias e vasos votivos. As peças das paraguaias carregam rastros do dia partilhado entre os afazeres domésticos, os cuidados com os filhos e a casa, onde o trabalho em barro acontece ao lado do fogão e do cômodo em que suas famílias dormem. “Os movimentos do lar mudam e aparece outra dinâmica que interrompe o hábito”, define a escritora Lia Colombino.
As três artistas trabalham com o barro com inaudita personalidade e já se apresentaram em importantes exposições na América Latina e na Europa, incluindo a Documenta 13, de Kassel. Carolina Noguera (Compañia 21 Julio, Tobatí, 1972) filha da prestigiosa ceramista Mercedes Areco de Noguera, desde criança começou a trabalhar com a mãe, seguindo a tradição hereditária pré-colonial. Aos 17 anos, Carolina tomou um caminho independente, momento em que começa a desenvolver um estilo próprio, marcado por figuras humanas e angelicais, que até hoje caracteriza sua obra. Começou a adquirir notoriedade a partir do documentário Kambuchi, realizado por Miguel Agüero e que estreou em 2011.
Ediltrudis Noguera (Compañia 21 Julio, Tobatí, 1965), assim como sua irmã Carolina, também dedica-se à arte do barro mas sua prática volta-se para os cântaros (vasos para beber de origem greco-romana) de formas zoomorfas ou antropomorfas, apresentando poderosas imagens de touros, de cavalos e de humanos. Recentemente, seu forno doméstico foi substituído por outro maior para cocção de peças maiores. Tem exposto amplamente no Paraguai e no exterior, a exemplo da Trienal de Santiago, Chile. Em fevereiro de 2017, participou de um seminário de artesanato na Cidade de Antígua, na Guatemala, a convite do Setor de Fomento de BANAMEX, Banco Nacional do México, evento que reuniu grandes mestres da Arte Popular Ibero Americana.
Julia Isídrez (Compañia Caaguazu, Cidade de Itá, 1967), filha da artista Juana Maria Rodas (1925-2013) com quem também aprendeu, assim como as irmãs Noguera, o ofício de ceramista. Seu trabalho concentra-se tanto em peças pequenas, ora inspiradas em animais do ambiente doméstico e seu entorno (cobras, tatus, galinhas, patos, pulgas, aranhas, percevejos, escorpiões, etc.); como também escalas maiores que exploram formatos de vasos e urnas. Expõe internacionalmente desde 1976, incluindo a Galeria da UNESCO, Paris, o Centro de Artes Visuais, Museo del Barro, Assunção (1998,1999), Bienal do Mercosul, Porto Alegre (1999), Feira ARCO, Madrid (2007), 35ª Versão da Mostra Internacional de Artesanato Tradicional, Santiago, Chile (2008), Trienal de Santiago, Chile (2009) e a Documenta de Kassel (2013).
Ao reunir pela primeira vez no Brasil um rico conjunto das obras dessas três artistas, Das mãos e do barro traz uma importante reflexão acerca do fenômeno da arte popular paraguaia bem como sua força expressiva que, ao lado das tradições fabril e musical, estão adquirindo novos contornos diante de uma realidade de comunicação global que amplifica sua produção criativa. Trata-se de obras que traduzem “a passagem do utilitário frente ao fenômeno da contaminação globalizante com uma arte que se faz presente hoje, não apenas em exposições locais e no Museu do Barro, como em eventos internacionais e mostras em outros países”, conta Amaral. Por outro lado, também aponta para o dilema de qualquer tradição centenária entre manter-se ou renovar-se que, ao tentar atender a emergência de um mercado sempre ávido pelo novo, corre o risco de desaparecer.
Aracy Amaral (São Paulo, 1930) é crítica, curadora e historiadora da arte. Prof. Titular da FAU-USP. Diretora da Pinacoteca do Estado (1975-1979) e do Museu de Arte Contemporânea da USP (1982-1986). Recebeu a Fellowship da Simon Guggenheim Memorial Foundation (1978). Membro do Prince Claus Awards Committee (2002-2005), Haia, Holanda. Autora e organizadora de livros, tem publicações sobre arte no Brasil e na América Latina. Curou exposições no Brasil e exterior.