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maio 17, 2017
Flavia Ribeiro na Marcelo Guarnieri, São Paulo
Suponhamos que inicialmente não seja desenho. Desinvestido de sua função de projeto, o desenho existe apenas como um segundo encontro, uma forma de entender, no plano, aquilo que já foi modelado no espaço. Uma espécie de tradução. É assim que surgem, no papel, tipos diversos de algo parecido a estruturas empilhadas, que podiam bem ser esqueletos de cadeiras ou mesas sem tampo. Embora sustentadas por pernas finíssimas e desajeitadas, parecem robustas, e talvez por essa ambiguidade, nos deixem confusos sobre o seu tempo de vida: seriam ainda esqueletos, em processo de fortalecimento para um dia suportar a carne, ou seriam já esqueletos, pura carcaça? Não ocupam sozinhos o espaço do papel, dividem o plano com campos de cor que podem vir em amarelo ou cinza, delimitados pela forma assertiva de um retângulo. Talvez seja da cor que se trata a carne. Na segunda dimensão, é ela quem tenta preencher o vazio dos corpos-esqueletos construídos pela artista.
Suponhamos, então, que inicialmente seja o espaço. Testar peso, tamanho, equilíbrio e textura. Tocar, moldar e fundir para descobrir do que se trata. Mexer nas coisas e fazer parte delas, doar um pedaço do próprio corpo por meio do gesto. Ribeiro precisa trazê-las para a terceira dimensão, transformá-las, enfim, em coisas: coisas que pesam, imóveis sobre o chão ou pendentes no ar. Pesam também no tempo, quando fundidas em bronze, matéria que carrega o valor da história e o símbolo da eternidade. O bronze, aqui, dá corpo à estruturas tortas, aparentemente frágeis, mas que, evidentemente, jamais quebrarão; petrifica um galho de árvore, eximindo da matéria-orgânica seu desejo maior: a vida.
Aliás, não seria a própria experiência da vida uma questão no trabalho de Flávia Ribeiro? Bem distante da abordagem literal ou religiosa, Ribeiro nos permite refletir sobre ela a partir de noções como movimento e transformação. Seus objetos parecem estar sempre em trânsito, pulando da terceira para a segunda dimensão, ou da segunda para a terceira; assumem múltiplas formas de existência, sendo papelão e parafina para logo então ser bronze, ou ser guache para depois ser veludo; podem articular-se em módulos como peças soltas, o que lhes permite infinitas combinações; também podem ser pendentes a partir de pontos de apoio fixados na parede, atestando a força da gravidade que rege e organiza nossa forma de vida neste planeta; constroem-se a partir do desejo constante de cercar espaços cheios de vazios, reivindicando seu direito de existência entre o tudo e o nada; evidenciam, enfim, em suas superfícies, o vigor do gesto de uma mão inquieta, seja no traço do lápis, seja na modelagem da parafina. Assim, somos instigados a acompanhá-los, caminhando pra lá e pra cá de modo a alcançá-los, curvando a coluna ou esticando o pescoço, sentindo no corpo e na alma o efeito de suas variadas texturas, dimensões e atmosferas; aliviados quando diante das superfícies lisíssimas do gesso ou sufocados pelo preto absoluto de uma manta de feltro muito grossa. A relação que estabelecemos com os trabalhos de Flávia Ribeiro, aliás, não precisa ser mediada pelas palavras, afinal, ninguém precisa nos dizer que estamos vivos: podemos sentir.
Flávia Ribeiro apresenta nesta mostra, trabalhos, em grande parte desenhos e esculturas, produzidos entre 2014 e 2017. Apesar de se apresentarem visualmente distintos entre si, todos eles são parte integrante de um mesmo conjunto de interesses de Ribeiro, que passam pelas questões da matéria, do corpo e da linguagem, e embora sejam pensados como peças individuais, possuem uma forte relação de irmandade tanto no processo de produção, quanto na montagem da exposição. Entre objeto e ser é a primeira de mais duas mostras individuais de Flávia Ribeiro que serão apresentadas nas unidades do Rio de Janeiro e de Ribeirão Preto da Galeria Marcelo Guarnieri.
A exposição Flávia Ribeiro - Entre objeto e ser poderá ser vista de 20 de Maio, até o dia 1º de Julho na Galeria Marcelo Guarnieri de São Paulo.
Flávia Ribeiro nasceu em São Paulo em 1954, onde vive e trabalha.
Frequentou a Escola Brasil, no início dos anos 1970, onde foi aluna de Carlos Fajardo, José Resende, Frederico Nasser e Luiz Paulo Baravelli. Em 1978, mudou-se para Londres, onde frequentou o curso de gravura na Slade School of Fine Art. Posteriormente, em 1996, voltou a morar em Londres com o apoio da Fundação Vitae e do British Council.
Sua obra contempla diversas pesquisas no campo da escultura, gravura e livros de artista, além de ter o desenho como fundamental instrumento em seu processo de trabalho. Para Ribeiro o desenho é uma ferramenta do pensamento, um primeiro encontro com novos interesses e novas questões. Através do desenho, realizado de forma obsessiva, a artista vai afirmando e aprofundando as questões que lhe interessam.
Em suas esculturas, a artista trata das possibilidades plásticas e simbólicas da matéria. O bronze, o estanho, a cera, o ouro, gesso ou veludo surgem no trabalho da artista quase sempre em situações de contraste, quando, por exemplo, uma organza fina e translúcida repousa sobre uma superfície lisa de gesso ao mesmo tempo em que sustenta objetos de bronze densos e negros ou ainda banhados a ouro, revelando ao observador o vigor das qualidades de cada objeto e potencializando seu apelo tátil. O corpo transfere uma parte de si às peças no momento em que são criados e é também convocado quando elas são expostas. Há uma espécie de dinâmica dos encontros que se faz pelo sensorial em suas esculturas, desenhos e livros de artista.
Principais exposições individuais: Mecânica, Projeto Parede, MAM, São Paulo, Brasil; Atravessamentos, Galeria Millan, São Paulo , Brasil; Gabinete de Leitura, Galeria vermelho, São Paulo, Brasil; Reliquiae Rerum, Capela do Morumbi, São Paulo, Brasil.
Principais exposições coletivas: O espírito de cada época, IFF - Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto, Brasil; Ouro, CBBB - Centro Cultural Banco do BRasil, Rio de Janeiro, BRasil; 18° FEstival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil, SESC Pompéia, São Paulo, Brasil; GRavura Extrema, Centre de la Gravure et de L’Image Imprimé, Bélgica; Entre/Aberto, XI Bienal Internacional de Cuenca, Equador; Gabinete de Desenho, Museu de Arte Moderna, São Paulo e Galeria Mirante, Caixa Cultural, Salvador, Brasil;Modernos, Pós Modernos, Etc, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil ; Novas Aquisições, Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife, Brasil; Calming the Clouds, The Foundation 3.14, Bergen, Noruega; Arte Cidade III, Indústrias Matarazzo, São Paulo, Brasil; V International Istambul Biennial, Imperial Mint, Istambul, Turquia; A Little Object, Centre for Freudian Analysis and Research, Londres, Inglaterra; XX e XXIII Bienal Internacional de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Coleções que possuem seus trabalhos: Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil; Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, Brasil; Coleção do Itamaraty, Brasília, Brasil; Museu de Arte Moderna, São Paulo, Brasil; Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife, Brasil; CACI, Centro de Arte Contemporânea Inhotim, Brumadinho, Minas Gerais, Brasil; Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto, Brasil.