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maio 17, 2017
Elida Tessler na Bolsa de Arte, São Paulo
Em sua primeira individual no espaço paulistano da galeria, a artista relê trabalhos marcantes de seus últimos 15 anos de trajetória, frutos de diálogos com obras literárias de escritores como Euclides da Cunha, Franz Kafka, Haroldo de Campos, Manoel Ricardo de Lima, Marcel Proust, Orhan Pamuk e Virginia Woolf
No mesmo dia, o escritor e tradutor Donaldo Schüler lança o livro “Joyce era Louco?”no espaço da Galeria, a partir das 11h30
A relação de Elida Tessler com a palavra data de muitos anos. Seus trabalhos sempre se propuseram a lançar um novo olhar sobre objetos do cotidiano e, também, a realizar uma leitura menos passiva das diversas camadas de texto que permeiam tanto as obras literárias quanto nossas vidas. Nos últimos quinze anos, contudo, seus livros de artista, objetos e instalações vêm dialogando de forma ainda mais intensa com obras literárias, tanto no conteúdo, quanto na palavra como imagem. São cerca de 15 as obras desse período que a artista revisita e relê, resultando em novas edições e conversas entre as obras, a partir do dia 20 de maio na galeria Bolsa de Arte (Mourato Coelho, 790). Não por acaso, a mostra é intitulada Recortar copiar colar.
Em suas criações, Elida implode as fronteiras construídas entre gêneros artísticos e discursos estéticos, fazendo até mesmo a materialidade do papel conversar com o espectador ao constituir as obras. Esse procedimento pode ser observado em muitos dos trabalhos presentes na exposição, entre eles Desertões, composta de 1018 fotografias em lupas de nove centímetros de diâmetro cada. A obra nasceu de um exemplar do escritor e crítico literário Donaldo Schüler, que a presenteou com uma edição de 1938 do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Schüler é escritor e tradutor de James Joyce, Platão, Ésquilo, entre outros escritores, e um importante interlocutor do trabalho de Elida desde antes dessa colaboração. Dele, a galeria recebe o lançamento do livro “Joyce era Louco?” no mesmo dia da abertura, a partir das 11h30. No livro, Donaldo Schüler parte dos ensinamentos de Lacan e de teorias psicanalíticas para realizar uma análise da escrita de Joyce e das significações que ela sustenta. Artes plásticas, cultura grega e psicanálise são elementos presentes no livro que ajudam nessa tarefa. “O que levou Joyce a escrever?”, pergunta, a certa altura do livro. “As invenções delirantes de Joyce libertam, projetam voos inesperados”, diz na obra.“Muito do meu lado leitor vem do Donaldo. Ele é um dos grandes motivadores do meu diálogo com a literatura”, afirma a artista.
O livro Os Sertões, nessa versão de Desertões, é apresentado em uma vitrine que contém dois exemplares, sendo um deles pertencente à biblioteca de João de Souza Machado, proprietário do sebo “Garagem do Livro”, em Porto Alegre. É de láque veio a enciclopédia presente em outra obra da artista, IST ORBITA (2011), concebida especialmente para a 8ª Bienal do Mercosul. Dessa forma, Elida propõe uma conversa entre duas bibliotecas distintas e, também, cria camadas de leitura entre suas criações. Schüler, que já escreveu sobre o trabalho da artista, a define como uma “antiPenélope”, “aquela que rasura com paixão”.“No palimpsesto, o texto escondido vale por vezes mais do que a última versão. A leitores atentos não escapam textos escondidos; conseguem provocar o diálogo do texto oferecido à vista com os textos rasurados”, observa, em texto publicado no catálogo da exposição Gramática Intuitiva, que aconteceu em 2013 na Fundação Iberê Camargo.
A atribuição de sentidos renovados a partir de novas leituras também é o que se vê em Galáxias. Composta de 474 pratos de louça branca com uma palavra impressa em seu centro, esta obra é uma reedição de Horizonte Provável, apresentada em 2004 na varanda do MAC Niterói. Se na edição anterior do trabalho os pratos com inscrições de 585 verbos no infinitivo retirados do livro “A Arte no Horizonte do Provável”, de Haroldo de Campos, ficavam dispostos no espaço circular de janelas do museu, incorporando a paisagem da Baía de Guanabara, desta vez eles se dispõem em uma constelação branca que ocupa a fachada cinza-escura do pátio da galeria. Outros verbos ficam dispostos empilhados, em potência – como falas inacabadas, nome de uma obra e conceito presente em toda a poética da artista. Essa via láctea vertical de verbos serigrafados em superfícies redondas brancas conversam, por sua vez, com a obra mais radical de Haroldo de Campos, Galáxias.
Para o poeta e crítico Adolfo Montejo Navas, no texto “Ímã-imagético”, Elida Tessler promove uma “intersemiose entre as linguagens verbais e imagéticas até o ponto de se confundirem”. Ele ressalta “o ouvido fino da artista” para a “escuta de ressonâncias visuais nas próprias coisas”, fazendo com que ela produza poesia visual. E completa: “Como parte de uma estratégia espiritual, as suas partituras sígnico-objetuais mostram um amplo registro dês-construtivo correndo sempre paralelo a uma condição humanista e em curso, que quer outra galáxia de sentidos.”
Para a artista, não há separação entre visualidade e textualidade. Pelo contrário, essas imbricações ajudam-na a se movimentar no espaço mental, a se deslocar em tempos históricos diferentes, a permutar pontos de vista. “A experiência visual da leitura também se incorpora ao projeto final. A intimidade acontece, creio, quando me permito adentrar o texto a partir de uma sugestão do autor, com uma proposição que nasce de dentro da narrativa”.
Kafka, Virgínia Woolf, Orhan Pamuk e Marcel Proust são alguns dos outros escritores cujas criações foram adentradas pela artista. No livro A la recherche Du Temps Perdu (Em Busca do Tempo Perdido), de Proust, por exemplo, Elida transforma espaço em tempo (e vice-versa) ao intervir com um carimbo nas páginas da edição francesa da obra, utilizando o mesmo símbolo do sistema de transporte urbano parisiense (RATP) dos mapas da cidade. Sobre todas as palavras tempo (temps), a artista carimba a frase “Vous Êtes Ici” (Você Está Aqui).
Três trabalhos têm ainda origem em um mesmo objeto do cotidiano: a máquina de escrever. Em Carta ao pai (2015), trabalho com mesmo nome do livro de Kafka, 617 peças de máquina datilográfica ficam dispostas sobre uma mesa de ferro de quase três metros de comprimento, na cor branca. Já em Desmáquina, 4200 fotografias do processo de desmanche de uma máquina de escrever colocadas em animação em looping realizada pelo artista Eduardo Montelli mostram uma máquina de escrever desfeita. E pares das letras da máquina de escrever estão ainda na obra O Tempo Passa, compondo os ponteiros de 22 relógios em caixa de acrílico transparente. O nome vem de um romance de Virginia Woolf.
Outras três obras são oriundas de um mesmo título literário como gatilho para a criação: o livro Meu Nome é Vermelho, de Orhan Pamuk, que se passa em um ateliê de caligrafia e iluminuras do século XVI. Dele, surgem os trabalhos Meu Nome Também É Vermelho (2009), Meu Nome Ainda É Vermelho (2010) e //(2010). No primeiro, a edição impressa da tradução brasileira sofre intervenções em tinta para caligrafia vermelha, feitas com cálamo de vidro italiano: todas as letras são riscadas com um traço vermelho, exceto as que designam coisas vermelhas, como rubi, sangue etc. No segundo, há cinco gravuras em metal (água tinta e água forte), com as quais foi confeccionado um livro que reproduz o capítulo 31 do romance de Pamuk, a partir do trabalho de 2009. Na terceira, a série de gravuras em metal apresentam somente os traços vermelhos, evocando um outro alfabeto.
Elida Tessler é artista plástica e foi professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS até 2016. Realizou doutorado em História da Arte Contemporânea na Université de Paris I - Panthéon-Sorbonne (França), onde residiu de 1988 a 1993. Entre 2009 e 2010, realizou o Pós-Doutorado na EHESS - Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales e junto ao Centro de Filosofia da Arte - UFR de Philosophie - Université de Paris I- Panthéon – Sorbonne. Como pesquisadora, desenvolveu sua pesquisa em torno das questões que envolvem arte e literatura, relacionando a palavra escrita à imagem visual.
Foi fundadora em 1993 e coordenou até 2009, junto com Jailton Moreira, o Torreão, espaço de produção e pesquisa em arte contemporânea, em Porto Alegre. Manteve o grupo de pesquisa .p.a.r.t.e.s.c.r.i.t.a., onde articula produção e reflexão crítica a partir de textos de artistas e da presença da palavra em produções contemporâneas de arte.
Suas obras já foram expostas em mostras individuais e coletivas no Brasil. Individuais suas aconteceram em lugares como Pinacoteca do Estado e Centro Universitário Maria Antônia, em São Paulo, Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC-RJ), Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre eMuseu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, em Recife (PE). Suas obras também foram expostas em mostras coletivas no Museu de Arte Contemporânea da USP, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-SP), no Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Paço das Artes, no Sesc Pompeia (SP) e no Instituto Tomie Ohtake. Fora do país, realizou individuais na Austrália, no Chile, no México e em Paris e participou de coletivas em Madrid, Miami e Oslo. Há obras suas em importantes coleções, como a da Cisneros Fontanals Art Foundation (CIFO), do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do 21cMuseum (Louisville, EUA) e da Pinacoteca do Estado de São Paulo.