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outubro 12, 2016
Tunga na Millan, São Paulo
Tunga, um dos mais potentes criadores da arte contemporânea brasileira, morreu precocemente em junho passado, aos 64 anos, deixando pronta aquela que seria a sua próxima exposição. A Galeria Millan dá continuidade aos planos do artista e inaugura, no próximo dia 15 de outubro, em seus dois endereços na Vila Madalena, a mostra Pálpebras, reunindo um conjunto de mais de trinta trabalhos inéditos ou pouco vistos no Brasil.
Na sede mais antiga da Millan poderão ser vistos os Phanógrafos, peças derivadas da série Cooking Crystals (2010). Pouco exibidas desde então, são caixas que servem como recipiente, ou suporte, para assemblages de diferentes objetos e materiais, como garrafas, cálices, âmbar, pedras ou elementos escatológicos. Objetos que, segundo Tunga escreveu, têm “algo de talismã”, se “configurando como uma lamparina”.
No segundo andar será remontada uma complexa instalação performática intitulada Delivered in Voices, de 2015, exibida apenas uma vez no próprio estúdio de Tunga. O espaço abrigará também projeções e desenhos, com o intuito de ampliar as leituras de sua obra plural e transmutável, revelando por exemplo as conexões entre produções bidimensionais e tridimensionais, enfatizando a importância da linha no trabalho do artista.
“Certamente não será uma mera exibição de peças. Nós estamos elaborando os espaços de forma a potencializar ao máximo a mostra. O trabalho de Tunga estará na atmosfera e não apenas fisicamente em suas criações”, explica André Millan, que há exatos 30 anos, em 1986, realizou a primeira exposição do artista pernambucano.
No Anexo, novo espaço inaugurado no ano passado, será exposta a série das Morfológicas, esculturas orgânicas que remetem ao corpo, sensuais, por vezes surreais e muitas vezes eróticas – lembrando vulvas, glandes, bocas e seios – que se originaram de outros conjuntos de trabalhos (como na série From la Voie Humide, de 2014), mas nunca foram mostradas independentemente no Brasil, mesmo que respeitando sua posição um tanto indefinida entre estudo de forma (como indica o próprio título) e obra acabada.
Inicialmente eram só pequenas peças em cera moldadas à mão, que foram ganhando versões um pouco maiores (de 30 a 60 cm), em bronze ou barbotina (um tipo de cerâmica líquida). Um desses projetos começou a ser confeccionado em grandes dimensões para a Feira Internacional de Arte Contemporânea (FIAC), em Paris. A peça, intitulada A seus pés, tem sete metros e – como é usual em seu trabalho – é composta por diferentes partes. O elemento central é uma forma roliça e longa, com unhas em cada extremidade, como se fossem dedos que apontam para lados distintos. Um deles está grávido, como se gerando as vagens que dele pendem. A peça não chegou a ser fundida em versão final e o que o público verá é a prova de artista, que há algum tempo habita o Laboratório Agnut, o famoso ateliê de Tunga, que leva seu nome de trás para frente.
Ocupando quatro andares e com uma equipe de dez pessoas, o estúdio foi responsável pelo enorme dinamismo de Tunga nos últimos anos, produzindo de 30 a 60 peças anuais, e continua responsável pelo legado do artista. Num primeiro momento, dedica-se à produção da mostra paulistana e à viabilização da homenagem que Inhotim prestará a ele em 8 e 9 de setembro, como parte das celebrações do 10o aniversário da instituição. Serão realizadas performances, readaptações em torno do pavilhão do artista e parcerias com o serviço educativo. E em seguida dará continuidade a um intenso esforço de catalogação e gestão do acervo, a cargo do único filho de Tunga.
Dentre os compromissos pendentes há também uma participação em exposição a ser realizada no Ambika P3 Gallery, em Londres, que reunirá diversos documentos históricos e obras de diferentes épocas relacionadas à medicina e à alquimia, em março do ano que vem. Outro desafio futuro é a realização de uma grande exposição itinerante, que terá início na América do Sul e seguirá depois para a América do Norte e Europa, conta Millan. “Era um privilégio trabalhar com ele. Tunga dizia que o trabalho era uma desculpa para estarmos juntos”, lembra.
Se o processo de montar a última mostra idealizada por Tunga é rico e intenso, é também muito doloroso, diz Fernando Sant’Anna, seu assistente, amigo e diretor de produção por longos 15 anos. Ele lembra que a parte que o artista mais gostava era esse momento final de montar a exposição. “Faço isso por ele. Seria muito injusto o público não ver”, afirma, relembrando que a mostra já deveria ter ocorrido ano passado mas a evolução da doença inviabilizou o projeto. “É importante deixar claro que tudo foi decisão do Tunga. Essa é nossa motivação”, acrescenta Mario Vitor Marques, produtor executivo do Agnut.
Não se trata, de forma alguma, de uma tentativa de síntese ou de olhar retrospectivo, mesmo porque no caso de Tunga a noção de retrospectiva não parece fazer sentido. Afinal, seu trabalho parece marcado por um retorno cíclico a um manancial de elementos, físicos e psíquicos, que ressurgem de tempos em tempos, transfigurados em diferentes leituras.
Um dos aspectos mais marcantes da produção do artista é a sensação de incompletude que ela gera no espectador. Diante de seu trabalho temos a impressão de que estamos diante de vestígios de algo que já ocorreu. “A maioria das obras de arte leva à pergunta ‘O que quer dizer isso?’. As peças dele nos fazem perguntar: ‘Como isso foi parar aí?’”, sintetiza Sant’Anna. É como se testemunhássemos, interagíssemos com fragmentos de alguma história ou ação passada, seja pelo caráter instável de seus arranjos, que permitem infinitas possibilidades de reagrupamento, seja pelas várias camadas de leitura que se sobrepõem, criando um hipnótico enigma.
Esses mesmos ecos temporais se fazem sentir nas obras mais recentes. Mesmo que em vários momentos assumam um caráter mais escultórico, os aspectos centrais de seus mais de 40 anos de intensa produção – período no qual Tunga flertou com o surrealismo, se avizinhou da arte conceitual e muitas vezes pareceu agir mais como um xamã ou um cientista – estão novamente presentes.