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agosto 28, 2016

Homo Ludens na Luisa Strina, São Paulo

Belo como o encontro casual entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção.
Lautréamont

[scroll down for English version]

Este texto deve ser lido como complemento da exposição Homo Ludens realizada na Galeria Luisa Strina, entre os dias 31 de agosto e 5 de novembro de 2016. Digo “complemento”, porque ele é um dos muitos gestos necessários para se chegar ao resultado final da exposição. Na realidade, o texto da exposição é a própria mostra e, por isso, não serve como explicação teórica daquilo que se passa nas salas expositivas. As obras apresentadas são marcos metafóricos e poéticos de visualidade plástica e só podem ser lidos presencialmente durante a visita ao espaço expositivo. Isso, se conseguir de fato realizar a mostra em seu potencial lúdico. Em outras palavras: o conceito da exposição só será alcançado uma vez que ocorra o encontro de todas as obras no espaço em questão.

Assim como em outras mostras que curei (a saber, Noite azul elétrico, Tara por livros, On another scale e Cordão dos mentecaptos*), Homo Ludens parte de uma ideia que, de alguma forma, diz respeito a minha relação com o mundo. Em uma era tão mediada pela tecnologia, parece-me que nos distanciamos cada vez mais do que é essencial e do que nos garante a humanidade, como, por exemplo, o ato de parar para sentir o cheiro do campo molhado, ou mesmo o de observar as espécies de pássaros que vivem em nossas cidades ou passam de visita ao longo do ano. Para esta exposição, minha ideia original foi lidar com o conceito de jogo, e o que me atraiu foi antes o processo de convidar artistas para colaborar do que qualquer definição teórica do tema.

Certo dia, jogando frescobol na praia, dei-me conta de que existem várias dimensões de jogos, pois no frescobol não se joga contra alguém, mas com alguém. O outro, no caso, não é um oponente, e as regras, por sua vez, não são bem definidas. Não existe o lance perfeito – a cortada equivale à bola levantada – e o verdadeiro prazer está em manter a bola no ar, em moto-contínuo. Para usar o jargão curatorial contemporâneo: não existe, neste caso, um recorte, uma estratégia ou um conceito pré-concebido. Pensando o frescobol e a ausência de competição no jogo, cheguei ao entendimento do lúdico, à ideia de brincadeira, que foi o que a princípio me interessou.

Os temas foram fluindo naturalmente: a morte, o universo infantil, os meios de produção capitalista, a guerra, o ilusionismo, a estratégia, a fantasia, a história da arte. Mas, neste caso, nada disso se configura estanque ou pretende apreender chaves de entendimento para a exposição. O diálogo com os artistas e as sugestões poéticas que os trabalhos me trouxeram estão distribuídos no tabuleiro expositivo, para que as relações se deem no convívio, admitindo o embate que é próprio do jogo.

Antes de ser pensada, a exposição deve ser experimentada e contemplada. Se me permitirem a ousadia, sugiro ao visitante que faça com que a experiência anteceda a racionalização. Idealmente, o visitante deve se tornar espectador desse “jogo de frescobol” existente entre os objetos dispostos no espaço, para então descobrir as cartas marcadas no tabuleiro do espaço expositivo.

A ideia original é uma espécie de ímã que atrai para o mesmo contexto todos os trabalhos então apresentados. Uma vez no espaço, uma teia de relações faz com que eles deixem de lado sua autonomia enquanto obras de arte para participarem em conjunto dessa proposição lúdica hic et nunc.
Homo Ludens é um termo que tomei emprestado do livro homônimo do historiador holandês Johan Huizinga. No entanto, a exposição não se revela como uma pesquisa em torno dos conceitos desenvolvidos por Huizinga, mas, antes, como um poema inspirado na proposta original do historiador. Afinal, é próprio do homo ludens jogar dentro de uma estrutura cultural com regras determinadas, ressaltando o caráter lúdico da vida.

O homo ludens volta às cavernas e sugere que o artista contemporâneo seja uma espécie de artista rupestre supermediado. Os nossos gestos, as nossas danças, são tão importante quanto o que pensamos e construímos quando produzimos algo. É bom – e belo – fazer uma pausa para contemplar o fato de que somos todos Homo sapiens, Homo faber e Homo ludens.

* Noite azul elétrico, Mendes Wood DM, 2013; Tara por livros, Galeria Bergamin Gomide, 2014; On another scale, Galleria Continua, San Gimigniano, 2014; Cordão dos mentecaptos, Pivô Arte e Pesquisa, São Paulo, 2016.


As beautiful as the chance meeting on a dissecting table of a sewing machine and an umbrella.
Lautréamont

This text must be read as a complement to the exhibition Homo Ludens, held at Galeria Luisa Strina from August 31st to November 5th, 2016. I say ‘complement’ because it is one among the many gestures required to reach the exhibition’s final result. Actually, the exhibition’s text is the exhibition itself and, for this very reason, it doesn’t work as a theoretical explanation of what goes on the exhibition rooms. The works presented are both metaphorical and poetic tags of plastic visuality, and can only be read in person while visiting the space – considering the exhibition can accomplish its ludic potential. In other words: the exhibition’s concept can only be reached once the encounter of all the works take place in the space at stake.

Just as in other exhibitions curated by me (i.e., Noite azul elétrico, Tara por livros, On another scale, andCordão dos mentecaptos)*, Homo Ludens derives from an idea that somehow concerns my relation with the world. In a time so mediated by technology, it seems to me that we are getting farther and farther from what is essential and what ensures our humanity, such as the act of making a pause and feeling the smell of wet grass or even observing species of birds that live in our cities or just pass by visiting throughout the year. For this exhibition, my original idea was to deal with the concept of game, being attracted rather by the process of inviting artists to collaborate than any other theoretical definition of the theme.

One day, while playing racquetball at the beach, I realized that are several dimensions of games. In this specific one, you don’t play against someone, but rather along with someone. The other, in this case, is not an opponent, and the rules, on their turn, aren’t much defined. There is no such thing as the perfect move – a spike and a dig play equal parts –, and the real pleasure lays on keeping the ball on the air, in perpetual motion. To use the contemporary curatorial jargon: in this instance, there is no preconceived scope, strategy or concept. Thinking about racquetball and the absence of competition in it, I ended up understanding what ludic is and the idea of playing, which interested me in the first place.

The themes then flowed naturally: death, the child universe, the capitalist means of production, war, illusionism, strategy, fantasy, art history. Although, in this case, nothing sets itself steadily nor intends to apprehend keys to understand the exhibition. The dialogue with the artists and the poetic suggestions the works brought me are distributed on the exhibition gameboard so that their relations come up while living together, given that the confrontation is the game itself.

Before being conceived, the exhibition must be experimented and contemplated. If such boldness is tolerated, I suggest the visitor to make an effort so that the experience can precede rationalization. Ideally, the visitor must become a spectator to the ‘racquetball game’ that already exists among the objects positioned on the space, for then figuring out what are the singled out cards on the exhibition’s gameboard.
The original idea is a sort of magnet attracting all the displayed works to the same context. Once in the space, a web of relations makes them waive their autonomy as artworks in order to jointly take part of this ludic proposition hic et nunc.

Homo ludens is a term borrowed from the homonymous book by Dutch historian Johan Huizinga. Yet, the exhibition doesn’t reveal itself as a research ensuing from the concepts developed by him, but rather as a poem inspired by the historian’s original proposition. After all, it is proper to the Homo ludens to play within a cultural structure with determined rules, highlighting the ludic aspect of life.

The Homo ludens goes back to the cave and suggests the contemporary artist as some sort of super-mediated cave painter. Our gestures and dances are so important as what we think and build while producing something. It is good – and beautiful – to make a pause and contemplate the fact that we are all Homo sapiens, Homo faber and Homo ludens.

* Noite azul elétrico [Electric blue night], Mendes Wood DM, 2013; Tara por livros [Book fetish], Galeria Bergamin Gomide, 2014; On another scale, Galleria Continua, San Gimignano, 2014; Cordão dos mentecaptos [Bubbleheads crowd], Pivô Arte e Pesquisa, São Paulo, 2016.

Posted by Patricia Canetti at 3:50 PM