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outubro 12, 2015
Edgard de Souza na Vermelho, São Paulo
Edgard de Souza justapõe obras que parecem antagônicas em sua produção. Características marcantes em sua obra - a dualidade entre em um espaço íntimo de investigação e um trabalho voltado ao público, e o virtuosismo na produção de suas peças tridimensionais - estão presentes em sua primeira individual na Galeria Vermelho.
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De um lado, Edgard de Souza explicita o seu virtuosismo na construção de esculturas, como nas obras Autofagia II, de 2015, que traz a figura espelhada, uma constante em sua obra; e em Acaso (hélice) e Acaso (Saci), ambas de 2015, aonde o ato de nutrir-se da própria carne (como apontado pelo título da escultura anterior) aparece amplificado. Autofagia II é a maior e mais intrincada escultura em bronze já produzida pelo artista. Os dois corpos que se cruzam, não são mais simétricos, parecem estar em pleno embate aonde apenas um sobreviverá, num amálgama entre lascívia e luta. Do outro lado estão os desenhos da série Rabisco, de 2015, aonde o artista nos mostra o novo território de seu embate de autodevoração. À primeira vista, os desenhos em caneta sobre papel, parecem gatafunhos e garatujas aleatórios e pueris.
São, no entanto, resultado de um procedimento constante na obra do artista, como nos autorretratos em cibachrome de fins dos anos de 1990. As fotografias desse período parecem servir tanto como exploração de seu próprio corpo para o desenvolvimento de suas esculturas, quanto como um nó com a própria obra – mais uma vez a autodevoração.
Esses autorretratos foram editados pelo selo Edições Tijuana em formato de livro de artista, em lançamento simultâneo a abertura da exposição e deflagram as primeiras montagens, em estudos rudimentares, feitas pelo artista utilizando um aparelho de fax para combinar imagens.
De modo parecido ao das fotografias, os Rabiscos registram movimentos de Edgard de Souza. São desenhos feitos durante missões simples: dançar, falar ao telefone, usar as duas mão ao mesmo tempo, usar a caneta até o fim, ser simétrico, evitar a simetria. Cada uma dessas incumbências gera um desenho diferente, seja gráfica ou materialmente, que se impõe sobre o suporte de modo diferente. No entanto são embates e análises de seu corpo, que parece presente em cada um deles. Por vezes, o esforço dispendido na aplicação do corpo sobre o papel é tanto que a pigmentação da tinta se funde com entalhos formados pelo movimento repetitivo e terminam por compor superfícies de características epidérmicas.
Em Restauro, 2011, o artista restaura um pano de chão velho e rasgado em um processo manual de costura, oferecendo vida a um objeto morto. O movimento é contrário aos dos Rabiscos: devolvendo ao pano as sua forma original, porém repleto da habilidade construtiva do artista.
Na série Conforto, desenvolvida entre 2013 e 2015, Edgard desloca almofadas que parecem provindas de cadeiras e que deveriam oferecer aconchego e bem-estar ao status de escultura. As almofadas, além de terem seu lugar e posição desvirtuados, são deformadas em feitio entre conchas seguras e protetoras e formas desajustadas e austeras.
O conforto de Edgard de Souza parece estar nesse terreno entre o controle absoluto do virtuoso e a perda de controle que move sua produção adiante.
A crítica e curadora Lisette Lagnado, escreveu no catálogo da exposição panorâmica do artista na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2004 que “Se tomarmos como paradigma existencial que Edgard de Souza começa a produzir num período marcado pelo ‘medo’, será inevitável constatar um recolhimento para um sítio interno”. Lagnado se refere ao aparecimento da AIDS e o subsequente adoecimento de algumas pessoas que rodeavam o artista na década de 1980. O aparecimento da doença instala um vetor inversamente proporcional ao da efervescência jovem daquele instante. Entram em embate impulsos de selvageria e de abrigo; de racionalidade e barbárie com a mesma intensidade.
Essa duplicidade é vista na produção de Edgard desde suas primeiras esculturas construídas como animais-mobília-anamórficos de fins da década de 1980 e início da década de 1990. Nesse momento, pernas de móveis como criados-mudos e poltronas, elaborados para fins de solidez ou repouso, são encimados por formas orgânicas finalizadas com peles de animais como vacas, zebras ou cobras que formam buracos, falos destorcidos ou lembram cavalos prontos para serem montados. São repouso e saracoteio em um.
Esse duelo é amplificado pelas figuras espelhadas na produção de Edgard de Souza, como no banco Sem título de 1990, nas cadeiras Sem Título, de 1997, no bronze Sem título de 1997 e em Autofagia I, de 2013. Nessas peças, o duplo é igual e parece consumir a si mesmo, como sugerido no título da peça mais recente. Como no processo celular de mesmo nome, as esculturas parecem ingerir-se num processo que envolve morte e vida simultaneamente.
Edgard de Souza juxtaposes artworks that seem contrary in his production. Striking characteristics in his work – the duality between an intimate space of investigation and a work aimed at the public, as well as the virtuosity in the production of his tridimensional pieces – are present in his first solo show at Galeria Vermelho.
On the one hand, Edgard de Souza clearly evidences his virtuosity in the construction of sculptures, such as the works Autofagia II [Autophagia II], 2015, which involves a mirrored figure, a constant in his oeuvre, and Acaso (hélice) [Random (Helix)] and Acaso (Saci) [Random (Saci)], both from 2015, where the act of eating one’s own flesh (as indicated by the title of the aforementioned sculpture, Autofagia) appears amplified. Autofagia II is the largest and most intricate bronze sculpture ever produced by the artist. The two bodies that intercross each other are no longer symmetric; they seem to be engaged in a struggle where only one will survive, in an amalgam between lasciviousness and fighting. On the other hand, in the drawings of the Rabisco [Doodle] series from 2015, the artist shows us a new territory of his self-devouring clash. At first sight, the drawings in ballpoint pen on paper look like random childish scrawls and scribbles.
They are, however, the result of a recurrent procedure in the artist’s work, like the self-portraits in Cibachrome made in the late 1990s. The photographs from that period seem to serve as an exploration of his own body for the development of his sculptures, as well as a knot made with his own work – once again, the self-devouring.
Those self-portraits, published by the Edições Tijuana label in the format of an artist’s book, are being released simultaneously with the opening of the exhibition and provide a look at the artist’s first rudimentary studies in the use of a fax machine to combine images.
Somewhat like the procedure in the photographs, the Rabiscos record movements by Edgard de Souza. They are drawings made during simple challenges: drawing while dancing, while talking on the phone, using two hands at the same time, using the pen until it runs out of ink, being symmetric, avoiding symmetry. Each of these tasks gives rise to a graphically or materially different drawing that is imposed on the paper in a different way. They are nevertheless struggles and analyses of his body, which seems to be present in each of them. Sometimes, the effort expended in the application of the body on the paper is so great that the pigmentation of the ink blends with the grooves made by the repetitive movement and winds up composing surfaces with skinlike characteristics.
In Restauro [Restoration], 2015, the artist restores an old and torn floorcloth, sewing it by hand, giving life to a dead object. The movement is opposite to that of the Rabiscos: returning the cloth to its original form, though steeped in the artist’s constructive skill.
In the Conforto [Comfort] series, produced between 2013 and 2015, Edgard displaces cushions that seem to have come from chairs and which should offer a sense of coziness and well-being to the sculpture. Besides having their positions displaced, the cushions have been deformed to resemble something halfway between safe, protective seashells and stark, disarranged shapes.
Edgard de Souza’s comfort seems to lie in this terrain between absolutely controlled virtuosity and the lack of control that moves his production forward.
In the catalogue of the artist’s retrospective at the Pinacoteca do Estado de São Paulo, in 2004, critic and curator Lisette Lagnado wrote that “If we take as an existential paradigm that Edgard de Souza began to produce in a period marked by ‘fear,’ we will inevitably observe a withdraw to an inner place.” Lagnado is referring to the appearance of AIDS and the subsequent sickness of some people who surrounded the artist in the 1980s. The appearance of the disease offset the young effervescence of that time. A clashing arose between the equally intense drives of wildness and shelter, and between rationality and barbarity.
This dualness has been visible in Edgard’s production since his first sculptures constructed as anamorphic furniture-animals in the late 1980s and early 1990s. In those works, legs of furniture pieces such as bedside tables and armchairs, made for purposes of solidity or rest, are crowned by organic shapes made with the skins of animals such as cows, zebras or snakes that form holes or distorted phalluses, or resemble horses ready to be mounted. They are rest and restlessness rolled into one.
The duel is enlarged by the mirrored figures in Edgard de Souza’s production, like the Sem título bench from 1990, the Sem Título chair from 1997, the Sem título bronze sculpture from 1997, and Autofagia I from 2013. In these pieces, the two elements of the dual are equal and seem to be eating one another, as suggested by the title of the most recent piece. As in the cellular process of the same name, the sculptures seem to be ingesting themselves in a process that involves death and life at one and the same moment.