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maio 21, 2015
Niobe Xandó na Marcelo Guarnieri, São Paulo
Precursora de signos contemporâneos, Niobe Xandó tem centenário comemorado em livro e exposição retrospectiva
A Galeria Marcelo Guarnieri apresenta, a partir de 23 de maio, retrospectiva da artista paulista Niobe Xandó. A surpresa das coisas sempre novas contempla, ainda, lançamento de um livro com a trajetória da artista e quase duzentas reproduções de obras.
No dia 20 de fevereiro de 2010, o Brasil perdia uma das maiores representantes brasileiras de sua pintura contemporânea: Niobe Xandó. Nascida em 1915, a múltipla artista atravessou um século de incertezas e intensas transformações, claramente prefiguradas em suas telas e desenhos por contornos que comunicam o choque de culturas e civilizações de nosso tempo: entre o arcaico e o moderno, o primitivo e o futurista.
Para comemorar o centenário da artista, a Galeria Marcelo Guanieri de São Pauloinaugura, no dia 23 de maio (sábado), às 10 horas, a exposição retrospectiva “A surpresa das coisas sempre novas”. Destaque para o lançamento, na ocasião, do livro de colecionador com organização assinada pelo curador Antonio Carlos Suster Abdalla e texto crítico inédito do jornalista Antonio Gonçalves Filho, além de cronologia ilustrada da artista, currículo selecionado e fortuna crítica com apreciações sobre sua obra por alguns dentre os principais críticos brasileiros no século XX, como Vilém Flüsser, Mário Schenberg, Theon Spanudis, Radhá Abramo, Ivo Zanini, Aracy Amaral e Laymert Garcia dos Santos.
Intitulada “A surpresa das coisas sempre novas”, a exposição traça um panorama da artista desde a sua fase figurativa nos anos 50, passando pelo amadurecimento nos anos 60, quando elabora composições em torno de mitos, antecipando os processos metamórficos de suas máscaras sugestivas de culturas ancestrais. Nos anos 60/70, com a arte sob influência do concretismo, Niobe mergulha na arte abstrata, sob uma profusão de signos híbridos. No final da vida, nos anos 90, no auge do mal de Alzheimer, retorna aos desenhos de autorretrato da década de 50, repintando-os. Desta vez, com traços de uma irônica desfiguração, típico sintoma do Alzheimer, no qual o doente não é capaz de reter as próprias feições.
Uma das características que mais individulizaram a artista foi a antecipação - por meio do chamado "letrismo" - de uma das expressões visuais que marcam as atuais metrópoles, as pichações extremas de muros e edifícios.
Caminhando em distintos universos como a cerâmica, totens de madeira, colagens, xerografias, pinturas, desenhos e guaches, a exposição contempla toda a trajetória da artista, desde o início impregnada pelo figurativo, com pinturas de cenas e brinquedos infantis e botequins populares.
Um passeio pela história “a contrapelo”
Numa viagem a contrapelo da História, a exposição “A surpresa das coisas sempre novas” inicia sua jornada com o retorno da artista ao figurativismo, nos anos 1990. Distante de um “retrocesso”, mas próxima de reconciliação com seu traço inicial, Xandó, no auge do mal de Alzheimer que a acometeu, busca numa série de enigmáticos autorretratos a cura instintiva pelo autoconhecimento. Se no início de sua trajetória as imagens apareciam com todas as características que fazem justiça a um rosto, a retomada marca uma irônica desfiguração, típico sintoma do Alzheimer, no qual o doente não é capaz de reter as próprias feições. Releituras de obras como “O Enigma” (1960) adquirem, nas versões do final dos anos 1990, aspectos fantasmagóricos e sobrenaturais.
Como destaca o crítico Alvaro Machado no ensaio “A fonte na rocha”, escrito para o catálogo da retrospectiva da artista na Pinacoteca do Estado de SP, em 1995: “O autorretrato mais recente (...) presentifica, sem dúvida, um terrível drama pessoal, três anos após o diagnóstico do mal neurológico da artista. (...) Ao mesmo tempo, outra interpretação, desarraigada de valores negativos, o compõe, (...) se considerarmos o comportamento de Niobe ao longo de mais de quarenta anos, seja em sociedade – onde desde os primórdios mostrou-se, via de regra, esquiva –, seja em suas relações com galerias e marchands, jamais sedimentadas”.
Essa liberdade compôs de maneira privilegiada a trajetória da artista e marcou suas obras com a peculiaridade de não filiar-se a nenhuma escola ou vanguarda. Porém, a um só tempo, suas telas e desenhos realizam-se plenamente, de forma autoral e ao largo das correntes vigentes, a perfazer legado dirigido à posteridade.
A virada em sua biografia acontece no início dos anos 1960. Niobe deixa de olhar para a realidade e passa a elaborar composições em torno de mitos. Notransculturalismo que resulta destaca-se um “passeio” pela arte surrealista,com asflores e jardins fantásticos que antecipam os processos metamórficos de suasmáscaras sugestivas de culturas ancestrais, mais adiante. “Articulação inconsciente entre a perplexidade do homem atual perante o mundo”, nas palavras do filósofoVilém Flüsser, na qual uma espécie de realismo fantástico afirma-se com formas autenticamente brasileiras.
Se nos anos 1960/70, o mundo da artes visuais encontrava-se sob influência da arte concreta e, logo em seguida, conceitual, com características predominantemente intelectuais, frias, Niobe mergulhou, com olhar projetivo e visionário, em uma profusão de signos humanos híbridos. “Em certa medida, ela já suspeitava que a modernidade estava diante de uma mutação antropológica”, afirma o crítico Antonio Gonçalves Filho.
Atenta aos movimentos de contestação daquelas décadas, encontramos nessa fase a busca de uma “outra escrita”, como, por exemplo, na colagem com um rosto que nos remete ao cartaz do musical “Hair”, de Rado e Ragni. Nesse mesmo período, quando viveu e pintou entre Londres e Paris, a artista recebe proposta do astro Mick Jaggerpara assinar capa de disco da banda Rolling Stones.
Nos anos 1980, Niobe se investe como uma espécie de “arqueóloga do inconsciente”, recuperando o construtivismo – até então não avaliado pela história da arte – presente na figuração de culturas ameríndias–, bem como sua possível relação com expressões contemporâneas, para pensar uma nova sintaxe visual. Em 1984/85, o diálogo entre o arcaico e o moderno revela-se numa radical mudança de rota, na qual as obras assumem caráter abstrato lírico e prenunciam novos alfabetos contemporâneos, a exemplo das pichações que hoje recobrem as metrópoles americanas.
SOBRE O LIVRO
Na ocasião da exposição será lançado o livro em homenagem ao centenário da artista, intitulado “A surpresa das coisas novas”, que abrange pesquisa minuciosa de Antonio Carlos Suster Abdalla e texto inédito do crítico do jornal “O Estado de São Paulo” Antonio Gonçalves Filho. São 264 páginas, com 194 reproduções de obras de todas as fases da artista, além de outras trinta ilustrações, e trechos dos principais textos críticos escritos a seu respeito. O livro, que será vendido na Galeria Marcelo Guarnieri e em livrarias, ao preço de R$ 50, integrando o projeto “Vale Cultura” do MinC, Governo Federal.
“Este livro foi idealizado para comemorar o centenário de nascimento de Niobe. É um desafio às novas gerações. Mostra o trabalho de uma grande artista, com obras instigantes, repletas da mais variada e rica simbologia – obra analisada por quase cento e cinquenta textos críticos, mas, ainda assim, um pouco distante de todo o merecido reconhecimento”, sintetiza Antonio Carlos Suster Abdalla. Contempla-se, ainda, na esteira das homenagens à artista, a exibição de filme sobre as obras de Niobe dirigido por André Azevedo.
“O diálogo entre o arcaico e o moderno, presente desde sempre na obra da artista, revela-se particularmente rico nessa década, na qual sua pintura sofre uma transformação radical, assumindo um caráter abstrato, lírico, em plena era dos novos selvagens alemães e da transvanguarda italiana (por volta de 1984/85)."Antonio Gonçalves Filho, no texto crítico do livro em homenagem à artista Niobe Xandó “A surpresa das coisas sempre novas”.
"Niobe não é caso único, evidentemente, mas seria temerário citar outros artistas mais recentes que puseram em prática tamanha autonomia de ação. Isoladamente, lembro-me de Picasso – para nomear alguém sem contestação –, que teve idêntica marca no surpreendente e fascinante desenvolvimento de sua vida artística. Talvez possamos nos lembrar de outros vinte ou trinta artistas, entre os mais conhecidos, com igual característica em seus trabalhos. De qualquer forma, neste livro, reforço a ideia de que Niobe produziu uma obra absolutamente vital.” Antonio Carlos Suster Abdalla, no livro em homenagem à artista, “A surpresa das coisas sempre novas”.
“O letrismo é um capítulo especial na obra da pintora. Niobe se aproxima dessa modalidade artística nos moldes desenvolvidos pelo romeno Isadore Isou e pelo francês Maurice Lemâitre, que a artista chegou a conhecer em Paris. Porém, de um alfabeto decifrável desenvolvido a partir de símbolos, ela passa a explorar por sua conta a própria figurabilidade da escrita, 'interrogando a idéia da imagem que a visualidade da escrita comporta' – nas palavras de Laymert Garcia dos Santos sobre Xandó. Nada mais pertinentemente contemporâneo que essa fase da artista, que vai ao encontro das mais ousadas expressões visuais coletivas das atuais metrópoles, como em certas pichações extremas de muros e edifícios”. (Alvaro Machado)