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agosto 16, 2014
Fundação Iberê Camargo traz ao Brasil exposição inédita sobre Arte Povera
“Limites Sem Limites. Desenhos e Traços da Arte Povera” é a primeira grande mostra realizada no País dedicada a um dos mais emblemáticos movimentos artísticos italianos da segunda metade do século XX. Com curadoria de Gianfranco Maraniello, a Arte Povera foi explorada pelo viés do desenho e terá 25 obras de 12 artistas, incluindo um trabalho inédito desenvolvido especialmente para a Fundação. A visitação acontece de 22 de agosto a 2 de novembro de 2014.
Porto Alegre é a primeira cidade brasileira a receber uma grande exposição dedicada à Arte Povera (Arte Pobre, em tradução livre), um dos mais emblemáticos movimentos artísticos italianos da segunda metade do século XX. Limites Sem Limites. Desenhos e Traços da Arte Povera, a quinta mostra do calendário de 2014 da Fundação Iberê Camargo, apresentará, pela primeira vez na história, um recorte que revela como os artistas do movimento entenderam a prática do desenho.
O norte conceitual da exibição foi escolhido pelo curador Gianfranco Maraniello, diretor do MAMbo – Museu de Arte Moderna de Bolonha. De 22 de agosto e 2 de novembro, o terceiro e o quarto andares da Fundação, além do vão do átrio, serão ocupados com 25 obras de 12 artistas do grupo original da corrente artística que, no final da década de 1960, quando a Itália havia acabado de se recuperar dos efeitos devastadores da Segunda Guerra Mundial e passava por grandes transformações sociais, tentaram quebrar a dicotomia entre a arte e a vida, principalmente através da criação de instalações feitas a partir de materiais do cotidiano.
Para Maraniello, filósofo e ex-professor da Academia de Belas Artes de Brera (Milão), a Arte Povera, assim como os happenings, a arte performática e a Land Art, foi marcada pela desconstrução dos mitos de uma modernidade que alienou o homem da sua produção. “O movimento consistiu em uma redução linguística, um ‘empobrecimento’ dos signos no sentido do retorno ao essencial, uma tentativa de libertação do acúmulo conceitual da tradição”, diz o curador. Em um período dominado pela pintura abstrata, pela Pop Art e pelo Minimalismo, que apesar das propostas radicais, se mantiveram apresentando formas esculpidas e visuais, os artistas da Arte Povera ultrapassaram os limites da pintura e da escultura por meio do uso de materiais que mudam ao longo do tempo, enferrujam e apodrecem. “A adoção de vegetais, minerais brutos, fogo e eletricidade como matéria-prima determinou a estética do grupo, que tinha como foco o caráter provisório da obra, e a sua disponibilidade de ser reconhecida para além de seus limites físicos”, observa Maraniello.
“A exposição em Porto Alegre é a primeira pesquisa sobre o que acontece quando os protagonistas da Arte Povera têm a intenção do desenho”, afirma o curador, que confessa ter se surpreendido com o que descobriu ao longo do processo de concepção da mostra. Não se trata de uma retrospectiva, mas sim de um ensaio sobre como esta prática do desenho, que normalmente inscreve um espaço, foi repensada pelo grupo de forma a ultrapassar os limites da própria obra. Cada um dos artistas do núcleo explorou o gesto de desenhar de uma forma particular, envolvendo o público como elemento ativo e participante. “Em frente ao trabalho, tornamo-nos parte da obra. É com este espírito que o espectador deve se aproximar de todas as instalações e desenhos da exposição, porque cada um deles, é capaz de romper os limites de si mesmo e estimular a nossa imaginação”, completa Maraniello.
Para Fábio Coutinho, superintendente cultural da Fundação Iberê Camargo, a Fundação cumpre mais uma vez com o seu papel de trazer ao Brasil mostras, obras e recortes inéditos das artes visuais. Assim como fizemos com vários artistas nacionais e internacionais, como William Kentridge: Fortuna, e com curadorias inéditas de Iberê Camargo, estamos proporcionando ao público uma exposição de grande importância histórica e conceitual”, diz Coutinho.
As obras
Ao iniciar a visita pelo quarto andar da Fundação, o público encontrará instalações de Luciano Fabro (1936-2007). Em uma delas, “Groma Monoteista” (1984-2005), o artista reconstitui uma groma, instrumento arcaico utilizado pelos romanos para medir campos. Nas hastes do grande objeto, que mede mais de dois metros de altura, são dependurados símbolos das religiões monoteístas, num trabalho que lida com a relação entre a marcação de fronteiras, os desenhos de territórios, e os determinantes culturais. Ao lado desta obra, estarão uma tela de Pino Pascali (1935-1968), “Torso di Negra” (1964-65) – uma superfície monocromática que se delineia graças às protuberâncias provocadas por câmaras de ar, exibindo figuras aleatórias que se revelam a partir dos desenhos que evocamos na nossa mente –, e desenhos de Emílio Prini (1943-), compostos de caracteres escritos à máquina e impressos no Brasil de acordo com instruções do artista.
Um dos mais aclamados artistas do movimento, o grego Jannis Kounellis (1936) – o único não italiano do núcleo –, estará representado por dois trabalhos na segunda sala deste piso. Em uma das obras, de 1988, uma barra de ferro e uma placa de metal são “sustentadas” por um desenho, colocadas sobre ele, de forma a redefinir as relações entre o suporte e o conteúdo do quadro. Na mesma sala estará uma instalação de outro grande expoente da Arte Povera, Michelangelo Pistoletto (1933). “Il disegno dello Specchio” (1979) consiste em uma série de espelhos cortados em diferentes formatos, que refletem partes do mundo em movimento em suas silhuetas. “Não se trata, portanto, de uma representação, mas sim de um dispositivo sempre aberto, capaz de acomodar em sua superfície o mundo em mudança, uma realidade que está sempre ativa, e que se torna visível e sempre renovada aos olhos de todos nós”, destaca o curador. Ao lado desta obra estará um conjunto de telas de Alighiero Boetti (1940-1994), feitas de coordenadas numéricas sobre papel quadriculado que acabam se tornando emaranhados geométricos.
No mesmo andar, serão apresentadas obras do casal Mario Merz (1925-2003) e Marisa Merz (1926). Ela, a única mulher integrante do movimento, mostrará uma composição de delicados desenhos e uma instalação de malhas de cobre permeáveis à luz, capazes de projetar sombras e envolver a arquitetura do espaço expositivo na obra. As intervenções dele também interagem com o ambiente. Em uma delas, de 1997, sete animais criados em papel e com materiais luminosos, como sombras de representações pré-históricas que se libertam no espaço, serão colocadas na rampa que leva os visitantes do quarto andar ao terceiro andar da Fundação. Como comenta o curador, “Merz não circunscreve a obra no interior do perímetro de uma folha, mas produz uma contínua ruptura da gramática expositiva, extrapolando das formas convencionais de produção artística e da codificação dos lugares considerados pertinentes para a arte".
Seguindo a visita, no terceiro andar, o público visualizará quatro obras de Giulio Paolini (1940). Uma parte de “Aula di disegno” (Happy Days, 2006-2014) será desenhada diretamente na parede do prédio pelo assistente do artista. Trata-se da representação de uma sala. Como diz Maraniello, “com essa estratégia, as dimensões ambientais da obra constituem uma geometria imersiva para o visitante, entregue à própria posição de espectador e, simultaneamente, de possível personagem na cena aparentemente figurada”.
Outra obra que contará com a participação de um montador italiano intervindo nos espaços da Fundação Iberê Camargo é “Oltremare” (1978-2014), uma das duas produções de Giovanni Anselmo (1934) que serão apresentadas em Porto Alegre. É deste artista também a obra “Il panorama com mano che lo indica” (1980), composta por uma pedra sobre o chão e, acima dela, pelo desenho de uma mão que aponta para o espectador, devolvendo a ele o ato de olhar. “É como se a obra nos re-olhasse”, comenta o curador.
A experimentação com materiais alternativos, eletricidade e processos químicos é marca do trabalho de Gilberto Zorio (1944), que terá três obras expostas no terceiro andar, seguindo a ordem da visitação. Elas são compostas por pares de desenhos dependurados que se completam na interação com o espaço, pelas variações de luz. “Disegno Torre Stelle” (2012), por exemplo, que é um desenho feito sobre papel impregnado de fósforo e outras substâncias fluorescentes, necessita receber dez minutos de luminosidade para, por um minuto, revelar as formas de uma estrela. Em relação ao trabalho de Zorio, Maraniello destaca que “a arte não permanece ancorada na própria certeza diurna e na estabilidade da obra. Ela pertence ao mundo, animada pelos mesmos componentes orgânicos e químicos que tudo transformam, e que o homem tenta conter na arbitrária imaginação de processos figurativos da mente”.
É deste artista também a instalação inédita apresentada na exposição, que ficará suspensa no vão do átrio: Um cabo de aço que, em suas curvas, tem desenhada a palavra “ódio” (Odio, 2014). Nos sulcos do chumbo de que a palavra é feita, é possível enxergar o entrelaçado de fios de cobre, um dos materiais privilegiados pelo artista por sua capacidade de condução. Construída sobre o conflito entre a leveza do objeto e o perturbador substantivo, a obra foi pensada especialmente para esta exposição.
O trabalho de grandes dimensões de Giuseppe Penone (1947), “Trappola di Luce” (1988), que ocupará toda a parede da última sala da mostra medindo quase dez metros de largura, encerra a visita. O artista lida com as possibilidades do carvão em suas diferentes formas, inclusive cristalizadas, para criar barras como se fossem ramos de uma figueira e de sabugueiro.
Mais sobre o movimento artístico
O termo “Arte Povera”, derivado do “Teatro Pobre” teorizado por Jerzy Grotowski, foi usado pelo crítico de arte Germano Celant em 1967 para descrever o grupo de artistas italianos que, a partir do final dos anos 1960, tentaram quebrar a dicotomia entre a arte e a vida, principalmente através da criação de instalações feitas a partir de materiais do cotidiano. A primeira exposição de Arte Povera foi realizada na Galleria La Bertesca, em Gênova, em 1967. Posteriormente, o grupo realizou mostras em cidades como Bolonha e Amalfi. Em geral, o trabalho dos artistas é caracterizado por composições de objetos aparentemente desconexos. É o caso de “Vênus dos Trapos” (1967), de Michelangelo Pistoletto, que coloca uma estátua de jardim da deusa romana diante de uma pilha de trapos que podem ser interpretados como os detritos da sociedade moderna. A Arte Povera também se relaciona com o momento político de sua época, que culminou com os protestos estudantis de 1968. Isto é evidente em obras como a irônica “Itália Dourada” (1971), de Luciano Fabro, que consiste em um mapa da Itália feito em bronze dourado pendurado de cabeça para baixo. Além de expressar interesse em questões sociais, o grupo estava preocupado com a criação de diversas formas de interação física entre a obra de arte e o seu espectador. Em 1971, Germano Celant decretou o fim do movimento em favor da experiência de cada um dos artistas, que vieram a desenvolver percursos específicos com distintas sensibilidades quanto às práticas e ao uso de materiais.
Mais sobre o curador Gianfranco Maraniello
Gianfranco Maraniello (1971) é o diretor do MAMbo – Museu de Arte Moderna de Bolonha. Ele foi curador do Museu de Arte Contemporânea de Roma e da Bienal de Shangai em 2006. Curou inúmeras exposições na Itália e em prestigiados museus internacionais. Interessado nos pontos de virada linguística da arte contemporânea, lidou frequentemente com a nova vanguarda que emergiu na Europa na segunda metade dos anos 1960, criando mostras como Arte Povera 1968 (com Germano Celant) e relevantes monografias dos protagonistas do movimento como Giovanni Anselmo, Giuseppe Penone e Gilberto Zorio. Editou a coleção “Giuseppe Penone. Writings 1968 – 2008”.