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agosto 2, 2014
Julio Villani na Marcelo Guarnieri, Ribeirão Preto
É por uma breve nota no projeto Passagen-Werk [2] que Walter Benjamin confronta a noção de vestígio à de aura, ambas remetendo às emoções podendo ser despertadas por objetos naquele que os observa. De acordo com o aforismo que o filósofo propõe, “o vestígio é o advento de algo próximo, por mais distante que possa ser o que o deixou; a aura é a manifestação de uma distância, por mais próximo que possa ser o que a evoca.”
Os objetos de Julio Villani, são ao mesmo tempo familiares e fantásticos, tributários das duas noções.
A função original dos utensílios desponta sob suas formas, tornando-os – apesar de sua idade – em vestígios de uma memória comum.
O blecaute do destino prático dos antigos apetrechos permite sua apropriação enquanto objetos. As formas domésticas tornam-se então recipientes das projeções imaginárias do artista; elementos que contrariam as exigências da funcionalidade para atender uma experiência de um tipo diferente: viram sonhos, seres com sopro de vida, evasão.
Proporcionando-lhes uma história que os distancia da sua fabricação – transformando os objetos pertencendo à um momento histórico específico em figuras atemporais – Villani os reveste de aura.
Esses objetos são, de certa forma, os seus Traumhäuser (casas de sonho). O termo, cunhado por Walter Benjamin, descreve edifícios de formas historicistas – que tem uma "aparência" familiar – reinvestidos de novos usos relacionados com um sonho.
Os Traumhäuser surgem à partir de uma prática contraria à da oniromancia surrealista. Ao invés de extrair dos sonhos elementos à serem aplicados à realidade, seu ponto de partida é material: objetos arqueológicos, bibelôs, fragmentos, imagens desbotadas ou utensílios obsoletos, os vestígios se unem para formar um mundo povoado de objetos e seres, criando uma paisagem de sonho, levando a uma experiência fantástica.
O olhar que deita Villani sobre os objetos resgatados nos mercados de pulga parisienses é desse tipo: premendo os olhos, ele vê na concha uma garça, a bigorna é tatu.
Os bichos se impõem à visão do artista sem terem sido suscitados por um exercício de memória consciente. Se ele adiciona aqui um rabo, umas asas acolá, é simplesmente para nos dar a ver a sua visão, que se inscreve em seguida no espectador como a revelação de uma realidade nunca percebida – e no entanto presente – no objeto de origem.
Nesse sentido, os almost readymades de Villani materializam o estado de espírito descrito por Proust quando do memorável episódio da madalena: de repente, o que fora perdido é reencontrado.
Julio Villani, 1956 - Marília - São Paulo, Brasil. Vive e trabalha em Paris, França.
Cursou Artes Plásticas na FAAP - Fundação Armando Álvares Penteado, na Watford School of Arts de Londres e na École Nationale Supérieure des Beaux Arts de Paris. Participou de diversas exposições individuais e coletivas, das quais destacam-se nas seguintes instituições: Pinacoteca do Estado de São Paulo; Paço Imperial, Rio de Janeiro; Museo del Barrio, Nova York, EUA; Centro de Arte Reina Sofia, Madrid, Espanha; MAM - Museu de Arte de São Paulo; MAM - Museu de Arte do Rio de Janeiro; Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris, França.
1 Jean Baudrillard, Le système des objets, Paris, Editions Gallimard, 1968
2 Texto (inacabado) redigido por Walter Benjamin entre 1927 e 1940 sobre as passagens cobertas de Paris. Em francês, os diversos textos do projeto foram reunidos e editados sob o titulo Paris capitale du XIXème siècle, Paris, Les Editions du Cerf, 1989. Ilaria Brocchini, Traces et disparition : à partir de l’oeuvre de Walter Benjamin, Paris, L’Harmattan, 2006.
3 Ele desenvolvera posteriormente mais além essa noção, sobretudo no ensaio A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica.
4 Walter Benjamin, Paris capitale du XIXème siècle, op cit.
5 Georges Teyssot, Walter Benjamin, Les maisons oniriques, Paris, Collection Hermann Philosophie, 2013
6 Jean-Paul Dollé, Walter Benjamin, Passeur de temps, prefacio de Walter Benjamin et l’architecture, direção Libero Andreotti, Paris, Editions de la Villette, 2011