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abril 1, 2014
Adriana Varejão no Galpão Fortes Vilaça, São Paulo
Adriana Varejão aborda miscigenação brasileira em nova mostra e lança livro em parceria com antropóloga Lilia Moritz Schwarcz
‘Polvo’ - que também dá nome à linha de tintas criada pela artista - terá instalações simultâneas em galerias de São Paulo e Nova Iorque
Adriana Varejão - Polvo, Galpão Fortes Vilaça, São Paulo, SP - 08/04/2014 a 17/05/2014
Há cinco anos sem realizar no país uma mostra apenas com trabalhos inéditos, Adriana Varejão apresenta a partir do próximo dia 5 de abril, no galpão da Galeria Fortes Vilaça, em São Paulo, a recém-criada série Polvo, fruto de uma pesquisa de forte caráter conceitual, desenvolvida ao longo de mais de 15 anos acerca da representação das cores de pele dos brasileiros e da maneira ambivalente como se define raça no Brasil. Na mesma ocasião será lançado o livro Pérola Imperfeita: A história e as histórias na obra de Adriana Varejão (Editora Cobogó e Companhia das Letras). A publicação, assinada em parceria com a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, realiza um amplo mergulho na trajetória da artista, iluminando as referências de seu processo criativo. Adriana exibe também, a partir de 24 de abril, trabalhos da série Polvo na Lehmann Maupin Gallery, em Nova Iorque, e no segundo semestre inaugura novas exposições no Oi Futuro (RJ) e no ICA Boston.
Tentáculos
Polvo é o nome do conjunto de tintas idealizado e criado por Adriana Varejão, em torno do qual se articulam as exposições que acontecem no mês de abril em São Paulo (dia 5) e Nova Iorque (dia 24) e que teve sua primeira aparição pública em outubro do ano passado, na Victoria Miro Gallery, em Londres.
O ponto de partida para a criação das novas obras foi uma pesquisa de campo elaborada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) - a PNAD (Pesquisa de Amostra em Domicílios) - em 1976 e que consta de maneira integral no livro Pérola Imperfeita. Normalmente, o censo oficial brasileiro classificaria as pessoas em cinco grupos diferentes de acordo com sua cor de pele: branco, preto, vermelho, amarelo e pardo. Naquele ano, no entanto, a pesquisa domiciliar introduziu uma questão em aberto: "Qual é a sua cor?". O resultado foram 136 termos, alguns deles inusitados, cujos significados são muito mais figurativos do que literais.
Varejão selecionou os 33 termos mais exóticos, poéticos ou vinculados a uma interpretação especificamente brasileira de cor como suposto social, e a partir deles criou as suas próprias tintas a óleo baseadas em tons de pele. Assim, surgiram as cores ‘Fogoió’, ‘Enxofrada’, ‘Café com leite’, ‘Branquinha’, ‘Burro quando foge’, ‘Cor firme’, ‘Morenão’, ‘Encerada’ e ‘Queimada de sol’, entre outras.
O resultado mais imediato desse processo é um objeto de arte - uma caixa de design arrojado, com 33 tubos de tinta e cuidadosa tecnologia industrial, em versão bilíngue (múltiplo com tiragem de 200 exemplares) - que parodia o suporte convencional, bem como uma série de retratos da própria Adriana, reelaborados a partir dessas tintas. Ambos estão presentes nas três exposições.
Não são exatamente autorretratos, já que as pinturas originais foram executadas por pintores retratistas, sob encomenda. O caráter autoral, porém, é resgatado a partir das intervenções e reinterpretações dadas pela artista, que considera cada uma das exposições como uma espécie de instalação.
Desta forma, na instalação do Galpão Fortes Vilaça a cor da pele dos retratos permanece neutra, mas a imagem é complementada por uma série de pinturas faciais de caráter geometrizante e inspiração indígena, tornando ainda mais complexo o processo de hibridização e de deslizamento de significados entre os vários trabalhos da série ‘Polvo'. Nas mostras de Londres e Nova Iorque, por sua vez, a cor da pele é alterada, fazendo com que a modelo/autora se funda com as diferentes identidades cromáticas enunciadas na pesquisa e transforme a si própria num símbolo do caráter perverso da categorização social e racial vigente no Brasil.
As exposições encadeiam uma sequência de desafios conceituais que leva o público a refletir sobre questões relativas à desigualdade racial e social; especificidades culturais e ruídos inevitáveis derivados dos processos de tradução/adaptação de sentidos.
“Cor é linguagem”, defende Adriana, ao lembrar exemplos como o da tribo na Indonésia, cujos habitantes não nomeiam as cores, ou dos esquimós, que possuem muito mais classificações para tons de branco do que nós. “Quando nomeamos todos esses matizes de peles, a gente dilui a questão das grandes raças – conceito, aliás, já derrubado por terra pela biologia”, pontua.
O potente conjunto apresentado em Polvo mantém estreita relação com outros trabalhos da artista como Ex-votos e peles (1993), Testemunhas oculares, x, y e z e Castas mexicanas: espanhola, mestiça e castiça (ambos de 1997), que lidam com questões como miscigenação, colonialismo e a cor da pele, destacando o elemento identitário e de dominação mas também as relações de prazer e carnais que se estabelecem nesses contextos assimétricos. Temas que constituem uma espécie de chão do trabalho de Adriana Varejão, quer assumindo um caráter mais metafórico e sutil (como nas Tintas Polvo), quer adotando um caráter de forte expressividade, tributário da arte barroca (como na série Língua). Mesmo afirmando que o trabalho deve levantar questões e não respondê-las, Adriana reconhece a clara posição de crítica ao colonialismo em sua obra. “Gosto do Barroco porque é uma resposta ressignificada, latina, à Europa; uma espécie de contraconquista”, acrescenta.
A escolha do nome Polvo não foi imediata, mas responde com perfeição ao preciosismo compositivo da artista: trata-se de um animal (em clara referência às tradicionais tintas Águia, marca carioca que produziu as cores imaginadas por Adriana) que libera pigmento para se esconder e cuja composição é feita da mesma substância que a melanina humana, reforçando ainda mais o caráter metafórico do título. Esse caráter de paródia, reflexão simbólica sobre o mundo e suas contradições a partir de elementos aparentemente banais, tão presente na obra de Adriana Varejão, se faz sentir também por meio da ambiguidade semântica do termo polvo, foneticamente muito próximo ao coletivo e simbólico povo.
Diálogo
O livro Pérola Imperfeita: A história e as histórias na obra de Adriana Varejão (Editora Cobogó e Companhia das Letras) é fruto de uma fértil e inusitada parceria entre a artista e Lilia Schwarcz, que já rendera, em 2009, um ensaio para o livro Entre Carnes e Mares (Ed. Cobogó).
O objetivo primeiro desse novo livro, iniciado há cerca de quatro anos, era o de identificar e iluminar os fortes nexos existentes entre a obra de Adriana Varejão e a História. A tentação inicial de adotar um método de análise mais tradicional foi abandonado imediatamente. E a obra, um robusto volume de 360 páginas, reverbera de forma intensa o desejo de compreender essa trajetória não como uma cronologia fechada, mas como uma trama de narrativas e imagens entrelaçadas onde muitas temporalidades acabam por se misturar. Como explica Lilia, o ensaio busca questionar fronteiras estabelecidas, como as que dividem o sujeito do objeto de análise, a academia da produção artística, o histórico do contemporâneo.
O resultado é uma obra ao mesmo tempo visual e conceitual, descritiva e expressiva em que fronteiras entre ficção e não ficção encontram-se muitas vezes borradas. A narrativa, em primeira pessoa, foi escrita por Lilia. Mas a autoria é conjunta, fruto de uma construção recíproca entre texto e imagem e resultado de um diálogo inesperado entre as duas. “Procurei explicitar as referências e iluminar o processo criativo da Adriana”, explica a antropóloga.
No entanto, muitas vezes a obra vai além das intenções primeiras da artista, sugerindo outras “histórias”, não exatamente presas ao sentido original que Adriana conferiu ou mesmo a que buscou inspiração. “A ideia era que Lilia tratasse a História de forma mais antropofágica, como eu faço”, complementa a artista.
A reflexão sobre identidade e a tentativa de trazer à tona histórias ocultas, e pouco visitadas por uma História oficial, estão no cerne da aclamada produção da artista e, portanto, são os elementos centrais dessa reflexão. “Há algo de subversivo nesse processo, uma vez que potencializa elementos até então silenciosos”, conclui a historiadora e antropóloga. Além do mais, o livro mistura “histórias” públicas com histórias pessoais, introduzindo vários elementos da biografia da artista, igualmente “canibalizados” em sua obra.
O livro se organiza em torno de cinco capítulos, que enfocam as diferentes séries elaboradas e reelaboradas pela artista, passando de uma análise mais genérica da questão do colonialismo no trabalho, num alentado primeiro capítulo, a temas mais específicos, que envolvem pratos, saunas, gravidez entre os Yanomami, tatuagens, ama-divers, espelhos até chegar numa viagem em torno da importância da paródia e da antropofagia na arte de Adriana. O livro dialoga ainda com as referências e releituras que Adriana propõe de obras de artistas como Jean-Baptiste Debret (1768-1848), Nicolas-Antoine Taunay, Bordalo Pinheiro (1846-1905) ou da cultura Yanomami.
Não há roteiro preciso. As narrativas e histórias se mesclam e seguem um curso bastante livre, num trajeto quase circular, como ressalta Lilia, ao lembrar que o livro praticamente começa e termina com referência ao trabalho com as tintas Polvo e ao complicado tema da raça e das cores; aliás especialidade também da antropóloga.
Esse uso negociado e fluido das cores, que não elimina (apenas camufla) a enrijecida hierarquia social existente no Brasil é questão tratada por Lilia em muitos de seus livros, como O espetáculo das raças, aliás – e como se pode perceber pela leitura de Pérola imperfeita – texto e pretexto para o começo da amizade entre as duas.
No caso do livro, as imagens de referência e as diversas histórias sugeridas e evocadas sucessivamente têm peso quase equivalente ao do trabalho de Adriana. Ao longo da leitura, fica evidente como a artista devora e reprocessa criativamente as referências mais distintas, da paisagem tropical às saunas e piscinas de Budapeste, das gravuras de De Bry às pinturas de casta mexicanas e tradições da Igreja Católica.
Outro aspecto essencial da publicação é o equilíbrio sutil entre a escrita, as referências visuais e históricas fortemente presentes e a própria obra de Adriana Varejão. “Uma das coisas mais interessantes deste trabalho é que nem as obras ilustram o texto, nem o texto simplesmente narra as imagens”, destaca Isabel Diegues, da Editora Cobogó, a quem coube o papel de permitir e estimular o diálogo entre as duas autoras, dando corpo ao livro. A editora ressalta também o caráter inédito dessa aproximação, ainda rara no mercado editorial brasileiro, entre o campo da produção artística contemporânea e a reflexão acadêmica. “Nossa pérola é um pouco isso”, afirma, parafraseando o título do livro.