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fevereiro 2, 2012
Desejo Expandido: Sobre o trabalho de Nan Goldin por Adon Peres
Desejo Expandido: Sobre o trabalho de Nan Goldin
Introdução:
O trabalho de Nan Goldin é sobre história. Ele revela sua própria história assim como a daqueles que estavam ou estão ao seu redor. Histórias que ela compartilhou ou compartilha com outras pessoas, momentos, ideias, alegrias e dores. Sua obra é um registro da Goldin Age(1). Utilizando a fotografia, diferentes imagens podem ser apresentadas separadamente ou juntas criando slide shows ou montagens que revelam um retrato estendido de pessoas e situações nas quais o desejo pela liberdade, por experiências e por preservar a história como ela é, sem manipulação, é a sua principal característica. Goldin capta essa imensa quantidade de informação sem filtrar, analisar ou categorizar. Suas imagens vêm de relacionamentos, não de observações. Elas também funcionam como uma tentativa de manter as pessoas vivas, pelo menos na lembrança, além de deixar um registro sobre uma vida que ninguém mais pode mudar.
Sobre fotografar amigos:
O que é claramente peculiar no trabalho de Nan Goldin é a percepção de comunidade, a visão, a honestidade e a crueza que flui de suas imagens. Isso está ligado à sua particular abordagem de captar imagens e à sua técnica. Desde sempre, Goldin tem fotografado seus amigos. Ela precisa criar uma intimidade com as pessoas que estão na frente de sua câmera. Ela precisa estar perto o suficiente para isso. Certa vez ela afirmou: “Para mim, tirar uma foto não é um ato de desapego. É uma forma de tocar em alguém – é uma carícia. Observo com olhos calorosos, não com um olhar frio.”(2) Suas fotos passam uma sensação tátil porque é possível sentir seu desejo de tocar, mas nunca de maneira agressiva ou insistente.
“A noção comum”, Goldin escreveu, “é que um fotógrafo é um voyeur por natureza, o último a ser convidado à festa. Mas não sou penetra; esta é minha festa. Esta é minha família, minha história”.(3)
Sobre a Técnica:
Para expressar seu amor pelo o que ela fotografa, Goldin escolheu o a “estética do snapshot”, que é para ela uma das formas mais elevadas de fotografia. Em seu trabalho, o foco é frequentemente errático, a câmera balança e as exposições estão erradas. O resultado é que as fotos parecem espontâneas, mas os retratos não são simplesmente cândidos, eles também revelam uma elevada cumplicidade.
“Meu trabalho vem do snapshot. É a forma de fotografia mais definida pelo amor. As pessoas fotografam por amor, e o fazem para lembrar – pessoas, lugares e momentos. Elas criam uma história registrando uma história. E é exatamente esse o meu trabalho. A razão de eu manter a “estética do snapshot” é porque considero o snapshot o tipo mais elevado de fotografia. Para mim, fotografia é como desenho. O traço revela a pessoa... É algo muito íntimo. Algo ligado à assinatura de uma pessoa… o olhar de uma pessoa – e a forma como ela vê a vida, algo impossível de colocar em palavras”.(4)
Suas fotografias não parecem compostas de uma forma clássica, apesar de algumas o serem, e mantêm uma impressão de informalidade e intimidade que ela utiliza desde suas fotos em preto-e-branco tiradas no final dos anos 60. Tendo um instinto especial em relação às pessoas para chegar ao cerne das coisas profunda e rapidamente, durante toda sua carreira Goldin procurou manter esse difícil equilíbrio entre ingenuidade e reconhecimento. Seu jeito próprio de equilibrar composição, cor e luz artificial ou natural dá às suas fotografias um brilho mágico.
Assim, a beleza de suas imagens vem da combinação de um formalismo e da “estética do snapshot”, de um jeito inato e perspicaz de lidar com a luz, e da apreciação pelas cores ricas, sensuais e supersaturadas perceptíveis em lugares incomuns. O poder de suas imagens é aprimorado pela intensidade de sua relação com seus temas. Goldin é uma fotógrafa de retratos, e nesse ato obsessivo de retratar para ela mesma, reúne retratos de pessoas cuja realidade emocional instável ela respeita. Ela não reduziria suas imagens a caricaturas. Nem suas imagens seriam veladas pelo eufemismo ou por um classicismo de bom gosto.
A partir de 1986, com fotografias de sua amante, Siobhan Liddel, Goldin encontra uma poderosa sobriedade no seu trabalho. A cor está enfraquecida e a habitual teatralidade luminosa da fotografia que carrega a assinatura de Goldin está ausente. Conquistando uma nova simplicidade pela eliminação da abundância de detalhes conflitantes, as fotografias de Goldin dessa série, no entanto, exalam sensualidade através da amplitude de cores e de luz, que são reguladas para transmitir as escalas variadas da paixão, do amor, do êxtase e do desespero nesse relacionamento.
O erotismo contido, a redução de detalhe e a dependência na luz natural são características dos trabalhos posteriores de Goldin. Ela ampliou sua amplitude expressiva por meio de cores e luz. Se no passado Goldin haiva sido um mestre da nebulosidade noturna e encontrava glamour em objetos kitsch capturados sob a iluminação de estúdio, ela agora, assim como nos seus retratos de meados dos anos 90, mostra uma apreciação por tons mais tradicionais, graduações típicas da pintura e por jogos sutis com a luz natural. O ponto de vista mudou de alguém que se considerava essencialmente americana para uma suavidade que parece ter surgido da sua experiência na Europa daqueles anos quando Goldin vivia entre Nova York e Berlim.
Sobre Slide shows:
A medida em que as imagens se acumulavam, Goldin começou a pensar mais como uma cineasta do que como uma fotógrafa; editando e seqüenciando os fragmentos capturados de luz e os aspectos do dia a dia ainda pouco explorados pela fotografia. O significado das imagens de Goldin, vistas repetidamente ao longo do tempo, em diferentes combinações, é fluido e nunca exatamente o mesmo. Ao final, o trabalho pode ser compreendido não como single frames, mas como cambiantes constelações de imagens.
“Quando eu era uma adolescente, sempre achava que eu estava dentro de um filme – não acho que isso é algo tão incomum”. Como ela explica, ela não é a estrela ou o diretor, mas o narrador. “Nunca liguei muito para a fotografia, então não havia tanta pressão para ser perfeita, por isso conseguia fotografar – enquanto o cinema sempre foi meu medium número um”. (5)
No final dos anos 70, tendo desenvolvido intuitivamente seu ponto de vista fotografando amigos, Goldin encontrou no também amador passatempo do slide show a resposta para o sequenciamento e edição de imagens. Ela descobre que seu interesse pela fotografia estava ligado à criação de narrativas com imagens. Então optou por um forte fluir narrativo que impulsionava um grupo de imagens para um todo com teor afetivo.
Em 1981, Goldin mostrou alguns slides com som e letras de uma banda ao vivo. Ela intitulou esse trabalho em homenagem a uma canção de Kurt Weil na “The Threepenny Opera”: The Ballad of Sexual Dependency (A Balada da Dependência Sexual). Essa performance efêmera se tornou um trabalho distinto. Contudo, apesar de ter mantido uma essência narrativa consistente, o trabalho também se transformou ao longo do tempo. Até hoje, assim como na maioria dos slide shows que ela produz, as imagens continuam a mudar a cada apresentação.
Mais tarde Goldin adicionou uma trilha-sonora gravada com outras canções e letras com o objetivo de tornar o significado das imagens mais claro. As trilhas de blues, reggae, rock e ópera estruturam e alinham a sucessão de imagens, enquanto as letras pulsam de desejo erótico. Como cineasta, ela frequentemente sente o desejo de ilustrar alguma canção, de trazer uma analogia visual ou de fazer algo acontecer a uma determinada parte de uma canção. Às vezes as imagens estão literalmente relacionadas com as letras das músicas. Às vezes estão ironicamente desligadas das letras. Às vezes as letras não têm sentido, mas falam sobre as expectativas românticas que caracterizam esses tipos de relacionamentos.
Sobre Montagens em Grid:
Foi durante o desenvolvimento de slide shows que Goldin realmente realizou as primeiras edições de todas as imagens que ela vinha acumulando. Nesse momento ela estabeleceu a estrutura para seus futuros trabalhos. A partir daí, ela passaria a editar imagens individuais, ordenando e reordenando todas dentro do seu tipo de narrativa. Nesse novo processo de edição que organiza a estrutura narrativa do seu trabalho, que ela tem usado desde então, Goldin captura imagens uma por uma, sem predeterminar seus significados, mas depois as reúne no que ela chama de retrato estendido. Continuamente atualizadas e assim nunca finalizadas, elas mais precisamente se aproximam da forma como a memória funciona. Ela rejeita a compressão da experiência a uma única imagem.
Nas fotos de dois amigos, Alf Bold e Gilles Dussein, que morreram de AIDS, Goldin os fotografa nos espaços íntimos de sofrimento aos quais apenas amigos e familiares tinham acesso. Quando ela decidiu mostrar esses retratos, ela os agrupou em sequência, como tinham sido tirados ao longo do tempo, formando montagens que mostram a passagem da saúde para a morte e mantendo o espírito íntimo e suave que marcou seu relacionamento com os dois homens.
A apresentação em montagens subestima a força de qualquer imagem isolada e força o observador a realizar conexões formais e emocionais encima, embaixo e sob a superfície, e a experimentar o todo como um tipo de caleidoscópio. Nos últimos anos, Goldin tem usado esse tipo de formato de montagem em grid como uma forma de configurar o espaço como uma densidade de pessoas, de corpos, de retratos – o grid, um eco do slide show, resume sua visão de que a história e o tempo existem como um agregado de vidas individuais.
Sobre Espaços vazios:
Intensamente sintonizada à relação entre pessoa e lugar durante toda sua carreira – as pessoas eram frequentemente fotografadas nos recintos e espaços que lhes pertenciam – Goldin no entanto também fotografou lugares vazios de pessoas: a paisagem e o cenário urbano e interiores. Seguindo uma tradição fotográfica que permite que o espaço físico funcione como uma metáfora para o estado de espírito, Goldin criou como parte de suas próprias experiências de vida um caminho alternativo. De várias maneiras, ela usa o vazio desses lugares como uma metáfora para a perda. Esses espaços são característicos de Goldin, pois eles funcionam ao mesmo tempo como registros de espaços físicos e analogias para a atividade humana.
O sentido de vivência que reside num espaço físico não-povoado é impressionante. Essas fotografias parecem paradoxais dentro da obra de Goldin, que está normalmente focada em pessoas, nos espaços de interação social e em momentos de auto-preservação. Mas os espaços vazios e as paisagens são espaços de retiro, memória e contemplação. Formam um contraponto às outras imagens e testemunham sua imaginativa captura da presença da ausência.
Sobre Metamorfose:
No início de sua fase escolar, por volta de 1964, o mundo de Goldin girava em torno da auto-definição num espaço construído e criado por ela mesma, registrado pelo ato constante de fotografar. Sem carregar o fardo dos estereótipos tradicionais, Goldin e seus amigos se reinventaram, inspirados pelos filmes e revistas de moda com os quais eles aprenderam sobre a manifestação visível do sexo e do desejo. A câmera revelaria uma nova identidade, independente da sociedade convencional e relacionada ao mundo construído de cada um e à simbiose fantástica com o glamour. As fotografias feitas nesse período se juntam às feitas posteriormente, no início dos anos 90, de drag queens exibindo um prazer irrestrito por belos corpos, pela maquiagem e pela vestimenta. A beleza, a transcendência à classificação macho-fêmea, o humor, e a coragem que Goldin aprecia estão investidas em suas fotografias, tirando pessoas da vida real e as colocando em situações de arte.
Fim:
As fotografias de Nan Goldin, como todos os casos de amor, são histórias de desejo. O ponto de vista que ela estabelece com seus sujeitos mistura revelação de identidade com projeção. Sua abordagem fotográfica nesses relacionamentos tem o sentido de manter viva a energia que conecta as pessoas ao invés de mumificá-las ou embalsamá-las. Ela não pede nada menos do medium da fotografia do que o uso do poder e da beleza da luz para revelar a verdade, amenizar a dor, fortalecer o caráter e iluminar o caminho para a paz.
Todo o trabalho de Goldin é sobre como restaurar uma narrativa de uma vida pela história. Sua intenção é realizar um trabalho que conecta com a vida das pessoas, para repor a abstração e a distância do documento com um confronto empático e sincero de experiências e emoções. Assim, a tradição do documento – carregado desde sua origem de intenção moral, mas também de distanciamento – é diferente quando a fotógrafa está envolvida com seu assunto.
Ao narrar histórias de uma subcultura e construir um banco de imagens de uma Era, Goldin provoca. A fotografia lhe dá uma voz que não pode ser censurada, silenciada ou perdida, que não pode desaparecer. Suas imagens validaam seus pensamentos, refletem sua identidade mutante, suas experiências, e seus sentimentos, simplesmente mantendo um registro fotográfico que ninguém pode controlar ou reescrever.
Nota:
Certa vez alguém me contou que Walter Benjamim sonhou escrever um livro só com citações. Um grande conhecedor de livros, como poderíamos esperar, ele achava que algumas coisas já estavam tão bem expressas que não valia a pena reescrevê-las. Elas perderiam sua autenticidade devido a um compromisso com a originalidade. E eu realmente concordo com isso. Enquanto fazia minhas pesquisas para escrever este texto, eu me deparei com o livro I’ll Be Your Mirror (Serei Seu Espelho), um catálogo publicado na época da primeira grande exposição de Goldin ocorrida no Whitney Museum of American Art em Nova York em outubro de 1996. Devido à minha abordagem pessoal em relação ao seu trabalho e aos momentos em que passei em sua companhia no seu estúdio em Paris, achei nesse livro um espelho perfeito dela e de sua obra. Já que seu trabalho está ligado basicamente aos seus amigos e companhia, achei que seria perfeitamente apropriado dar a eles algumas de suas próprias palavras já que Goldin nos deu suas imagens. Espero que nenhum deles ache isso inconveniente...
Agradecimentos a: David Armstrong, Marvin Heiferman, J. Hoberman, Walter Keller, Elisabeth Sussman e, é claro, acima de tudo, Nan Goldin.
Adon Peres
Notas
1. Expressão usada na entrada: The Goldin Age of Movie-Going - My Number One Medium All My Life. Nan Goldin talking with J. Hoberman em I’ll Be Your Mirror, catálogo da exposição. Whitney Museum of American Art, Outubro 1996 – Janeiro 1997, Whitney Museum of American Art, Nova York, 1996, p 135.
N.T.: Goldin Age é uma referência a Golden Age, Idade do Ouro – época sempre no passado em que tudo era melhor e mais pleno.
2. Ibid. em : On Acceptance: A Conversation. Nan Goldin talking with David Armstrong and Walter Keller, p. 452.
3. Ibid., p. 135.
4. Ibid., p. 453.
5. Ibid., p. 136.