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novembro 4, 2011
Anotações Sobre a Pintura, de Alice Vinagre por Fernando Cocchiarale
Anotações Sobre a Pintura, de Alice Vinagre
Fernando Cocchiarale
Esta é a quinta versão de Anotações sobre pintura, de Alice Vinagre. As edições anteriores — expostas, respectivamente, na Paraíba, no Recife, em Alagoas e novamente, em agosto passado, na capital pernambucana —, ainda que fundadas nas mesmas questões pictóricas e orientadas por uma mesma lógica de ocupação espacial, vêm permitindo à artista produzir trabalhos não só inéditos, como também experimentalmente encadeados com seus desdobramentos processuais precedentes.
Concebida para tornar o espaço da Galeria do Centro Cultural do Banco do Nordeste (CCBNB), na cidade de Fortaleza, um ambiente pictórico imersivo, ainda que formado por dezenas de pinturas sobre cartão independentes, essa mostra radicaliza o transbordamento do trabalho de Alice do quadro (simultaneamente autônomo e modular) para o espaço expositivo, já evidente nas Anotações que a precederam, sobretudo a última, realizada no Santander Cultural – Recife. Essas duas versões, mais do que as anteriores, deslocam-nos da contemplação estética estrita para a experimentação sensório-poético-pictórica. Se a primeira exige a clara demarcação de campos de observação — por exemplo, o quadro —, a segunda suscita um lugar ambientado para a experiência poética.
Diferenças à parte, todas as versões desta série possuem características comuns: as centenas de trabalhos sobre cartão produzidos pela artista a partir de 2008 possuem um mesmo e único formato (120 x 115 cm). Neles, o tratamento é monocromático, de predomínio ora azul, ora vermelho. Característica que favorece não só sua montagem modular, como também, por meio dela, a criação de ambientes pictóricos sempre renovados, graças à necessária reedição sequencial das pinturas em função do espaço expositivo.
A tensão entre obra única (cada cartão) e sua montagem modular (permitida pelas mesmas dimensões de seus formatos e pela monocromia) é, portanto, parte fundamental do cerne poético dessas Anotações. Ela introduz na montagem uma tensão maior, de teor histórico: à época da revolução industrial, processos de produção artesanais e métodos de construção mecanizados eram tidos como incompatíveis.
Há que se considerar, no entanto, que todo o processo de produção de Alice é manual, da pintura dos cartões à sua disposição no espaço, e que essa tensão só aparece no trabalho por meio de uma operação poética: seus cartões distinguem-se uns dos outros graças aos impulsos específicos que os singularizam e qualificam como obras, e a modulação concede às partes que a formam uma função modular restrita apenas à sua formatação e à monocromia.
Feitas pela mão e por algumas outras decisões correlatas da artista – como a atribuição de dimensões iguais para todos os cartões, o predomínio evidente de uma cor e a montagem/edição das pinturas sobre cartão no próprio espaço expositivo –, as Anotações resultam em trabalhos ambientais únicos, que, no entanto, preservam a potência própria e autônoma das pinturas que os constroem. Cada versão é, se tomada em seu conjunto, uma pintura significativamente provisória formada por dezenas de quadros singulares e perenes. Nesse sentido, uma possível associação com a azulejaria ou com o papel de parede deve ser descartada. Nestes, a repetição regular da padronagem é quase uma exigência; aqui, ao contrário, a busca é inversa: formar um conjunto a partir da diversidade.
Há nestas montagens um transbordamento que nos remete a um dos momentos conclusivos da história recente da pintura – história que, em um sentido estritamente operacional, começa na protorrenascença e se expande, conseguindo contornar as recorrentes declarações de sua morte, iniciadas no século XIX e que perduram até nossos dias.
Se, ao afirmar o teor bidimensional objetivo da tela, a pintura moderna colocou em crise a construção perspectivada e pictórico-ilusionista (pintura a óleo), seus desdobramentos (a partir dos primórdios da produção contemporânea, na passagem da década de 1950 para a de 1960) passaram pela crítica ao quadro, explícita nos trabalhos de alguns artistas.
Os quadrados negros sobre fundo branco suprematistas (c. 1913) de Kasimir Malevitch já anunciavam o fim da representação e o começo da era da pura sensibilidade na arte. Seu teor monocromático significava, para o artista, a sensibilidade da ausência do objeto (representado), que favoreceu a emergência de uma nova consciência a respeito do sentido da pintura: em lugar do ilusionismo, o teor objetual do quadro.
Décadas mais tarde, nos anos 1950, as telas cortadas de Lucio Fontana, as Combine paintings de Robert Rauschenberg (produzidas com tinta e objetos apropriados pelo artista) e as pinturas azuis e o Vide (mostrado em 1958 na Galeria Iris Clert, em Paris, vazia e pintada de branco) de Yves Klein, entre outros, marcam o avanço da crítica ao quadro como suporte único da pintura.
Nessa mesma época, surge no Brasil a proposta de uma pintura depois do quadro, elaborada por Hélio Oiticica em seus escritos e obras. Para levá-la adiante, ele precisou buscar alternativas para esse suporte convencional de modo a permitir a expansão do campo pictórico para o espaço real. Essa operação poética, no entanto, precisa assumir uma definição clara do que é a pintura, já que sua existência deve ser preservada com o abandono do quadro. Caso contrário, a proposta em questão não se sustentaria. Oiticica não titubeia na resposta:
A experiência da cor, elemento exclusivo da pintura, tornou-se para mim o eixo mesmo do que faço, a maneira pela qual inicio uma obra. [...] A cor é uma das dimensões da obra. É inseparável do fenômeno total, da estrutura, do espaço e do tempo, mas como esses três é um elemento distinto, dialético, uma das dimensões. Portanto possui um desenvolvimento próprio, elementar, pois é o núcleo mesmo da pintura, sua razão de ser. Quando, porém, a cor não está mais submetida ao retângulo, nem a qualquer representação sobre este retângulo, ela tende a se “corporificar”; torna-se temporal, cria sua própria estrutura, que a obra passa então a ser o “corpo da cor”.[OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. 5 out. 1960. p. 23.]
Se a cor é mesmo um elemento exclusivo da pintura (e isso importa menos do que o triunfo dessa ideia na obra do próprio Hélio), então é lógico supor sua existência em outros campos espaciais que não o do quadro, argumento que assegura a proposta de uma pintura expandida para além do quadro praticada por Oiticica, abrindo um novo campo de possibilidades para o artista brasileiro.
Ao investigar novas possibilidades de uma pintura expandida, Alice Vinagre movimenta-se, ainda que não deliberadamente, nesse campo aberto ainda no modernismo, mas que só se consolidou na contemporaneidade. Isso não quer dizer que sua pintura seja herdeira do construtivismo brasileiro – seus cartões transbordam a formalização estrita graças à evocação icônica que esses trabalhos não cessam de promover. A aproximação dessas Anotações com a herança histórica citada se torna, entretanto, inevitável quando se trata da criação de ambientes pictóricos.
Na versão atual de Anotações sobre pintura, os cartões escolhidos por Alice para impregnar cromaticamente o espaço podem ser visualmente separados em dois conjuntos: um predominantemente vermelho, pintado em 2008 e retrabalhado agora para a mostra de Fortaleza; outro formado por cartões azuis, produzidos em 2011 (teias e redes que fizeram parte da edição das Anotações no Santander, tecidas a pincel com uma paciência feminina que evoca Penélope).
A montagem na Galeria do CCBNB assume a distinção cromática entre esses dois conjuntos de cartões, dispondo-os separadamente para criar um espaço único: um cubo central recoberto inteiramente com cartões azuis é o foco cromático principal da instalação, já que uma, duas ou três de suas cinco faces (a face voltada para o piso não pode ser vista) são passíveis de serem vistas, dependendo da localização do observador. Complementando o ambiente pictórico, uma das paredes da sala que contém o cubo de tramas azuis sustenta a virtual projeção de uma de suas faces, sugerida pela modulação de cartões vermelhos.
Essas faces permitem a expansão da trama em rede de cada pintura para o conjunto em que se integram. São configurações gráficas de redes que podem ser referidas aos atravessamentos descontínuos das tramas de um cartão para as tramas dos outros. Podem ser também tomadas como atravessamentos de categorias e práticas estanques — desenho, pintura e escultura — voltadas para a preservação dos ofícios num mundo em rede, no qual, inversamente, eles estão ameaçados.