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setembro 1, 2011
Arte Correio e a grande rede: Hoje, a arte é este comunicado por Paulo Brusky
Paulo Brusky
A Arte Correio surgiu numa época em que a comunicação, apesar da multiplicidade dos meios, tornou-se mais difícil, enquanto que a arte oficial, cada vez mais, acha-se comprometida pela especulação do mercado capitalista, fugindo a toda a uma realidade para beneficiar uns poucos: burgueses, marchands, críticos e a maioria das galerias que exploram os artistas de maneira insaciável.
A Arte Correio (Mail Art), Arte por Correspondência, Arte Postal, Arte a Domicílio ou qualquer outra denominação que receba não é mais um “ismo”, e sim a saída mais viável que existia para a arte nos últimos anos, e as razões são simples: anti-burguesia, anti-comercial, anti-sistema etc.
Essa arte encurtou as distâncias entre os povos e países, proporcionando exposições e intercâmbios com grande facilidade, onde não há julgamentos nem premiações dos trabalhos, como nos velhos salões e nas caducas bienais. Na Arte Correio, a arte retoma suas principais funções: a informação, o protesto e a denúncia.
Os artistas teorizam sobre o movimento, e surgem os espaços substituindo galerias e museus. Os envelopes/postais/telegramas/selos/faxes/cartas, etc. são trabalhados/executados com colagens, desenhos, ideias, textos, xerox, propostas, carimbos, música visual, poesia sonora, etc. e enviados ao receptor ou aos receptores, como é o caso do Postal Móvel e do Envelope de Circulação, que, depois de passar pelas mãos de diversas pessoas/países, retorna ao transmissor, tornando-se um trabalho bumerangue. O correio é usado como veículo, como meio e como fim, fazendo parte/sendo
a própria obra. Sua burocracia é quebrada, e seu regulamento arcaico é questionado pelos artistas. Enviar uma escultura pelo correio não é Arte Correio: “Quando se envia uma escultura pelo correio, o criador limita-se a utilizar um meio de transporte determinado para transladar uma obra já elaborada. Ao contrário, na nova linguagem artística que estamos analisando, o fato de que a obra deve percorrer determinada distância faz parte de sua estrutura, é a própria obra. A obra foi criada para ser enviada pelo correio, e esse fato condiciona a sua criação (dimensões, franquias, peso, natureza da mensagem, etc.)”. Esse trecho do artigo Arte Correio: uma Nova Forma de Expressão, dos artistas argentinos Horácio Zabala e Edgardo Antonio Vigo, define muito bem a utilização/veiculação do correio como arte.
A I Exposição Internacional de Arte Correio no Brasil foi realizada no Recife, em 1975, organizada por Paulo Bruscky e Ypiranga Filho, e, afora os problemas causados pela burocracia ultrapassada dos Correios, existiram, quase que exclusivamente na América Latina, dificuldades com a censura, que fechou, minutos após a sua abertura, a II Exposição Internacional de Arte Correio, realizada no dia 27 de agosto de 1976, no hall do edifício-sede dos Correios do Recife (Brasil), que patrocinou a amostra. Essa exposição, que contou com a participação de 21 países e 3 mil trabalhos, só chegou a ser vista por algumas dezenas de pessoas e, além da exposição, os artistas-correio brasileiros Paulo Bruscky e Daniel Santiago, organizadores do evento, foram arrastados para a prisão (incomunicáveis) da Polícia Federal, enquanto os trabalhos só foram liberados depois de um mês. Afora os danos, várias peças de artistas brasileiros e estrangeiros ficaram retidas e anexadas ao processo policial até a presente data. O outro fato absurdo ocorrido dentro das “repressões culturais” na América Latina foi o aprisionamento, pelo governo uruguaio, dos artistas-correio Clemente Padin e Jorge Caraballo, de 1977 até 1979. Em abril de 1981, o artista-correio Jesus Caldamez Escobar foi sequestrado pela força militar ditatorial de El Salvador e só não foi assassinado porque conseguiu fugir e exilar-se no México. É sempre assim. Os que pretendem ser “donos da cultura” tentam impor sempre os seus “métodos”.
Torna-se difícil determinar a origem da Arte Correio. Em seu artigo Arte Correio: uma Nova Etapa no Processo Revolucionário da Criação (1976), o artista-correio Edgardo Antonio Vigo cita Marcel Duchamp como um pioneiro de Arte Postal:
Nosso propósito é apresentar agora o que consideramos um primitivo da Arte Correio. São duas peças. A primeira se intitula Cita do Domingo, de 6 de fevereiro de 1916, Museu de Arte da Filadélfia (EUA), e consiste em textos escritos à máquina, pegados borda com borda; e a segunda, Podebal Duchamp, telegrama datado de Nova York em 1º de junho de 1921 e que fora enviado por Marcel Duchamp ao seu cunhado Jean Crotti. Seu texto é intraduzível: “PEAU DE BALLE ET BALAI DE CRINI” e é a resposta ao Salão Dada/Exposição Internacional que se celebrava em Paris, na Galeria Montaigne, organizado por Tristan Tzara, prévia negativa de participar do salão e que fora comunicada por carta enviada com anterioridade ao referido telegrama. E, uma vez mais, devemos situar a figura de Marcel Duchamp em processos atuais. Esse gerador de “artetudo” faz-se presente nas comunicações marginais.
E apesar dos trabalhos de Duchamp (Cita do Domingo, de 6 de fevereiro de 1916, e Podebal Duchamp, de 1º de junho de 1921), das experiências dos futuristas e dadaístas, dos cartões-postais dos radioamadores (QSL), do telegrama de Rauschemberg, dos postais e selos de Folon, das cartas desenhadas de Van Gogh para seu irmão Theo, dos poemas postais de Vicente do Rego Monteiro (datados de 1956), de Apollinaire com seus cartões-postais com caligramas e de Mallarmé (que escreveu em envelopes os endereços dos destinatários em quadras poéticas que contavam com a boa vontade dos empregados dos Correios para decifrar seus enigmas poéticos, do Selo Azul de Yves Klein, de 1957, dos postais futuristas de Balla), a Mail Art surgiu na década de 1960, através do Grupo Fluxus, e só veio a tomar impulso como uma grande rede a partir de 1970. De acordo com as pesquisas realizadas, farei um pequeno histórico de alguns fatos importantes:
a) Primeiros artistas a utilizarem a Arte Correio:
1960 O Grupo Fluxus (EUA) — que propõe o intercâmbio de informações, publicações e colaborações ocasionalmente em eventos coletivos — foi o que, pela primeira vez, usou a veiculação do postal como elemento de comunicação criativa. Entre os componentes do grupo, destaca-se a atuação dos artistas Ken Friedman e Armand Fernandes (Arman): eles utilizam o meio de comunicação postal remetendo, como convite, à sua “La plwin” (Galeria Iris Clert, outubro de 1960), uma lata de sardinha.
1961 Robert Filliou, desde Paris, envia seu Estudo para Realizar Poemas a Pouca Velocidade, convites a subscrever para receber no futuro uma série de poemas, possibilitando também a realização do tipo de poemas por ele anunciados.
1962 Ray Johnson inaugura, em Nova York, a Escola de Arte por Correspondência de Nova York e, no ano seguinte, produz um clássico de tendência, escrevendo, no envelope, uma carta, tanto no verso como no reverso. Quebra assim o conceito de privado e produz o estado público das suas aparentes intimidades em diálogo com um terceiro, que até esse momento era de caráter privado.
1965 Mieko Shiomi realiza uma proposta postal que deve ser respondida e devolvida pelo receptor: com essas respostas, dará forma à sua obra Poema Espacial nº 1. O texto da sua proposta é o seguinte:
Uma Série de Poemas Espaciais: nº 1
Escreva uma palavra (ou palavras) no cartão que segue junto
com esta e deixe-o em algum lugar. Faz-me saber qual é a palavra
e o lugar para que eu possa fazer um plano com sua distribuição sobre um mapa do mundo, o qual será enviado a cada participante. MIEKO SHIOMI
b) Devido à grande quantidade de exposições de Arte Correio realizadas atualmente em todo o mundo, citarei apenas as mais antigas e algumas mais recentes: N.Y.C.S. Show, organizada por Ray Johnson, EUA/1970; Bienal of Paris, organizada por J. M. Poinsot, França/1971; One Year, One Man Show, organizada por Ken Friedman, EUA/1972; International Cyclopedia of Plans and Ocurrences, organizada por David Det Hompson, EUA/1973; Artists Stamp and Stam Images, organizada por Hervé Fischer, Suíça/1974; Festival de La Postal Creativa, organizada por Clemente Padim, Uruguai/1974; Inc Art, organizada por Terry Ried e Nicholas Spill, Nova Zelândia/1974; I St. New York, City Postcards Show, organizada por Fletcher Copp, EUA/1975–1976; Ultima Exposición Internacional de Arte Por Correspondencia, organizada por E. A. Vigo e Horácio Zabala, Argentina/1975; I Exposição Internacional de Arte Postal, organizada por Paulo Bruscky e Ypiranga Filho, Brasil/1975; International Rubber Stamps Exhibition, organizada por Mike Nulty, Inglaterra/1977; Image Bank Postcard Show, Canadá/1977; Mail Art Exhibition Internacional, organizada pelo Studio Levi, Espanha/1977; Gray Matter, Mail Art Show, organizada por S. Hitchocock, EUA/1978.
c) A partir de 1972, vários artigos começam a ser publicados, destacando-se, entre eles: Correspondence: New Art School, de Thomas Albright, Rolling Stones Magazine, EUA/1972; Out of the Gelerry, into the Mailbox, de Jerry G. Bowles, Art in America, EUA/1972; An Authentik and Histotokal Discourse on the Phenomenon of Mail Arte, Art in America, de David Zack, EUA/1973; Arte Correio: uma Nova Etapa no Processo Revolucionário de Criação, de Edgardo Antonio Vigo, Argentina/1976; Send Letters, Postcard, Drawings, and Objects...,
de Lawrence Alloway, Art Jornal, 1977.
d) Várias publicações de Arte Correio surgem: Ovum, Ephemera, Running Dog Press, Stamp in Praxis, Vile, Intermedia, Cisoria Arte, Cabaret Voltaire, OR, Geiger, Orgon, Super Vision, Telegramarte, Doc(k)s, Multipostais, Arte Classificada, Heut Kunst, Soft Art Press, Buzon de Arte, Front, Karimbada, A Margem, Experiências, Totem, Tabu, Povis, entre várias outras que são publicadas em diversos países. Além do livro Mail Art: Comunicação a Distância/Conceito, do francês Jean-Marc Poisot (1971), os artistas norte-americanos Mike Crane e Mary Stofflet publicaram o livro Correspondence art: source book for the network of international postal art activity (1984).
Na Arte Correspondência, o museu cede lugar aos arquivos (Parachutes Center for Cultural Affairs/Canadá, Small Press Archive/Bélgica, Bruscky Arquivo/Brasil, etc.) e às caixas postais. Boletins informativos sobre eventos e publicações em geral são editados e remetidos aos artistas
de todo o mundo, como é o caso do Info, editado por Klaus Groh, do International Artist Cooperation/Alemanha, e do informativo do Centro de Arte Brasileira de Informação e União (Cambiu), editado por Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Silvio Hansen, J. Medeiros, Unhandeijara Lisboa, Marconi Notaro e outros artistas.
Além dos boletins, existem as “correntes”, nas quais você faz novos contatos, remetendo um trabalho de Arte Postal para o primeiro nome da lista, que é automaticamente excluído, sendo o segundo passado para o primeiro, o terceiro para o segundo, etc., que inclui seu nome em último lugar, tira cópias, geralmente em número de dez, e as envia a outros artistas. Quando seu nome chega em primeiro lugar, você começa a receber trabalhos de vários artistas de diversos países que você nunca havia contatado. Existem ainda os slogans criados pelos artistas, como é o caso do artista-correio alemão Robert Refheldt: “Arte é contato, é a vida na arte” e de Paulo Bruscky: “Assim se Fax Arte” e “Arte em todos os sentidos” e “Arte em Trânsito”.
O número de artistas-correio aumenta dia a dia: o subterrâneo estourou, tornando a arte simples. É lamentável que alguns artistas quebrem essa corrente, deixando de responder alguns trabalhos recebidos.
A Arte Correio é como história da história não escrita.
Este texto foi escrito em 1976, retrabalhado em 1981 e já foi publicado no Brasil, na Polônia, nos Estados Unidos, na Alemanha e na Itália em:
1) Jornal Letreiro nº 2, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal – RN – Brasil. Julho/agosto, 1977.
2) Jornal da Cidade nº 183 – de 20 a 26/04/78. Recife – PE – Brasil.
3) Livro Mantua Mail 78. Centro Documentazione Organizzazione. Parma – Italia, 1978.
4) Magazine Sztuka, de 04/05/1978. Lipiel – Sierpien – Polônia, 1979.
5) Artists Report – Mail Art. Org.: Angelika Schimdt – Holzapfel & Sauter. Stuttgart – Alemanha, 1979.
6) Arte – Novos Meios/Multimeios – Brasil 70/80.
Org.: Daisy Paccinini. Fundação Armando Alvares Penteado. São Paulo – Brasil, 1985.
7) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Org.: Glória Ferreira. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
8) Escritos de Artistas: Anos 60/70. Orgs.: Glória Ferreira e Cecília Cotrim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
Bruscky, Paulo (Recife, 1949) Trabalha com diversas linguagens e mídias, tais como desenhos, performances, happenings, copyart e fax-art, arte postal, intervenções urbanas, fotografia, filmes, poesia visual, experimentações sonoras e intervenções em jornais. Sua primeira exposição individual ocorreu em 1970, na Galeria da Empetur, no Recife. Em 1973, ingressou no Movimento Internacional de Arte Correio e, desde então, além de entrar em contato com artistas internacionais do Fluxus e do grupo Gutai do Japão, entre outros, passou a participar de uma infinidade de exposições de arte postal em todo o mundo. Em 1981, recebeu o Guggenheim Fellowship por um ano e viveu em Nova Iorque. Nesse mesmo ano, foi convidado a participar na XVI Bienal Internacional de São Paulo, assim como em 1989 e 2004, com uma sala especial que reconstrói seu ateliê. Participou da primeira Bienal de Havana, em 1984, e em 2009 foi homenageado com uma sala especial na X Bienal de Havana, Cuba. Ainda em 2009, participou da Bienal do Mercosul. Entre suas exposições na última década, incluem-se: Bienal Brasil Século XX, Fundação Bienal de São Paulo (1994); Arte Conceitual e Conceitualismos: anos 70, acervo MAC/USP, Galeria de Arte do Sesi São Paulo (2001); 27º Panorama Atual de Arte Brasileira, Museu de Arte Moderna de São Paulo (2001), Prêmio Aquisitivo. Mostra Retrospectiva no Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte – MG, 2010. Exposição individual no Parque Lage, no Rio de Janeiro, 2010. Mostra retrospectiva na Galeria do SESC Garanhuns – PE. Em 2011, participa da exposição Aberto Brasília, no Centro Cultural Banco do Brasil, onde pintou um cavalo em homenagem à Vicente do Rego Monteiro. Participa, na Fundação PROA em Buenos Aires, da mostra Sistemas, Acciones y Procesos, 1965–1975, 2011. Exibição “Cuando Brasil devoró el Cine (60–70), Museo Reina Sofia, Espanha, 2011. Artista convidado para a Bienal da Polônia em 2012. As principais publicações sobre o artista são “Paulo Bruscky: Arte, Arquivo e Utopia”, de Cristina Freire; “Arte em todos os Sentidos”, de Cristiana Tejo; “Poiesis Bruscky”, de Adolfo Montejo e “Circuito Atelier: Paulo Bruscky”, de Marilia Andrés Ribeiro e Marconi Drummond. Publica o livro com seus textos teóricos “Arte e Multimeios” em 2011. No mesmo ano, lança uma coletânea de seus poemas sob o título “Arquivo Impresso: Poesia Inédita”, organizada por Ricardo Aleixo e Flávio Vignoli, Belo Horizonte – MG. Tem obras em acervos como os do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Recife) e Tate Modern de Londres. Vive e trabalha no Recife.