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setembro 1, 2011
Arte do meu tempo, tenho pressa. Por Cristiana Tejo
A arte postal usa o correio como suporte, assim como outras formas de arte usam tela, papel, ferro e madeira. Ulisses Carrión
Esta exposição busca situar os visitantes no tempo e no espaço da Arte Correio a partir de um de seus pioneiros no Brasil: o artista pernambucano Paulo Bruscky. Trata-se de uma tarefa ainda mais relevante numa época em que a internet 2.0 achatou ainda mais a noção de espacialidade e o discurso midiático vende a “crença” de que vivemos num mundo sem fronteiras. Compreender a historicidade de uma forma de fazer arte colaborativamente em rede e fora das instituições convencionais de arte antes do surgimento da grande rede (WWW) é uma tarefa incontornável para nos dar condição de compreender o momento em que vivemos. Tratava-se de uma forma de furar bloqueios de várias ordens (regimes ditatoriais, conservadorismo institucional, diferenças ideológicas e culturais, entre outras) e de criar formas de intercâmbio e de conexão entre artistas de várias partes do globo. Importante lembrar ainda que nos anos 1970 a Arte, com A maiúsculo, havia se transformado em uma miríade de formas tão experimentais e imateriais por vezes, que faria um especialista em arte do início do século XX desconhecer completamente o que estava sendo feito naquele momento. Quando as definições de arte foram implodidas e as instituições artísticas se viram forçadas a se modificarem em todos os níveis, surgia a tal da Arte Contemporânea. A Arte Correio encarna de forma singular a atitude que inundaria a arte e o mundo daí para frente.
Abordar a Arte Correio é uma tarefa ingrata para qualquer forma de sistematização, incluindo realizar exposições sobre ela, já que fluidez, fragmentação, fluxo, interconexão de circuitos e polifonia são a tônica do movimento. Contar a história da Arte Correio é sempre narrar uma parte da história, a partir da experiência e dos arquivos dos artistas participantes, uma narrativa com vários prováveis começos e contextos locais tão diversos que impede qualquer abordagem absoluta. Mostras deste movimento, portanto, são iniciativas que já traem a própria lógica anti-institucional de troca e participação horizontal da Arte Correio. Mesmo diante do exposto, publicizar as estratégias, as condicionantes e as trajetórias dos artistas da Arte Correio é necessário diante do discurso bastante evocado atualmente sobre colaboração, participação e inclusão. Sem compreender de que há antecedentes artísticos que encarnavam estes princípios numa época em que estas não eram as palavras de ordem do capitalismo avançado, gerações mais recentes acreditam-se revolucionárias e enveredam pela estridente euforia proporcionada pelas redes sociais e sites que viabilizam compartilhamento e autopromoção.
Outro aspecto importante de ser salientado é a possibilidade de fazer uma exposição sobre a Arte Correio no Centro Cultural dos Correios. Não se trata de uma coincidência, mas de uma estratégia proposital de amplificação da dinâmica histórica. Fica ainda mais óbvio que tal mostra não seria possível nos anos mais efervescentes do movimento que justamente se aproveitava do sistema de circulação do correio como suporte de suas ações subversivas. A ironia e a transgressão entranhadas nas proposições dizem respeito em muitas partes das vezes às regras de postagem e à quase impossibilidade de controle de mensagens diante do imenso volume usual de cartas do sistema postal. Assim como os correios, outras instâncias governamentais de várias ordens abriram centros culturais que apóiam arte de ponta, demonstrando que os tempos mudaram. O sistema é alimentado principalmente pelas críticas a ele. Não que sempre ocorra a neutralização da crítica, mas engendra-se uma dinâmica de negociação dentro do próprio sistema que testa a resiliência e causa adaptações.
No núcleo desta mostra encontra-se Paulo Bruscky, ativista da Arte Correio a partir de sua segunda etapa: a de popularização da rede, nos anos 1970. Participante bastante dedicado desde 1973, Bruscky não apenas responde aos chamados da rede antes da rede (internet), mas é grande divulgador do movimento no Brasil. Em 1975, promove junto com Ypiranga Filho a primeira grande mostra do movimento internacional de arte correio no Brasil, no Recife, que contou com a participação de um grande número de artistas. Vale notar que esta exposição ocorreu três meses após a mostra organizada por Ismael Assumpção (setembro de 1975), restrita a poucos participantes que mantinham correspondência com esse organizador.
No ano seguinte e na mesma cidade, organiza com Daniel Santiago a 2ª Exposição Internacional de Arte Correio, evento que chega a ser fechado pelos militares e que provoca a prisão de seus organizadores. Em 1977, novamente em parceria com Santiago, Bruscky edita os Multipostais, coletânea de trabalhos em postal de artistas das mais variadas procedências. Cinqüenta artistas eram convidados a contribuir com 50 trabalhos e recebiam em troca 49 trabalhos de outros artistas. A iniciativa teve nove edições até 1997. Paulo Bruscky tomou parte de eventos de Arte Correio em vários países e fez parte da sala Arte Postal na XVI Bienal Internacional de São Paulo (1981).
Aberto a todos os materiais e linguagens disponíveis para fazer arte, Bruscky imerge em todas as possibilidades de expressão no vocabulário dos correios. Fez parte de correntes de interferências em cartas, produziu carimbos, selos, aerogramas, telegramas, telex, envelopes/conteúdos e até música e criou ações artísticas que driblavam a própria lógica dos correios. Desde o início da década de 00, Bruscky criou e circula o seu e-mail @rt. Seu diálogo com pares de várias regiões do mundo, em especial com artistas da América Latina, realça seu papel como ponto desta imensa rede, que só tem protagonistas. Por questão de espaço, estão em evidência alguns destes interlocutores que exemplificam a vivacidade e experimentalismo da Arte Correio. O material exposto nesta exposição é parte integrante do acervo Paulo Bruscky.
ARTE SONORA PELO CORREIO
Na Arte Correio as fitas cassete com poesia sonora/experimental eram enviadas pelos artistas, e o organizador de cada evento compilava todos os trabalhos em uma fita e devolvia para os artistas participantes e centros de vanguarda. Um dos trabalhos pioneiros internacionalmente, segundo levantamento feito pelo Museu de Bremen, na Alemanha, foi realizado no Recife, quando Paulo Bruscky, em 1978, realizou o International Ra(u)dio Art Show, com participação de 55 artistas, de cerca de 15 países, durante o I Festival de Inverno da Universidade Católica de Pernambuco, cujos áudios eram reproduzidos em alto-falantes distribuídos pelo pátio da universidade, e foi levado ao ar pela Rádio Clube de Pernambuco, no programa Paulo Marques.
O LP Mail Music (1983), organizado pelo artista italiano Nicola Frangione, contou com a participação de 47 artistas de 17 países, cujos áudios circularam durante todo o ano de 1982, é um típico exemplo da dinâmica de composição musical coletiva. Na contracapa estão marcados não apenas os nomes e títulos dos trabalhos, mas as datas em que o arquivo chegou às mãos de cada um e que partiu para o próximo colaborador.
EVENTO 77
Concebido pelo Ricerche Inter/Media de Ferrara, Itália, tratou-se de uma operação que juntava experiências artísticas e realizadores de diferentes países. O pedido feito pelo centro a todos os convidados foi executar um evento-interseção utilizando como meio de comunicação não mais a centralidade e a materialidade de um centro fixo como a sala de exposição de uma galeria mas o circuito que crescia através do sistema postal, com suas leis próprias, significados próprios e códigos próprios. Para tanto o Ricerche Inter/Media enviou para os convidados 27 endereços de pessoas da cidade de Ferrara e 10 etiquetas. Cada convidado deveria idealizar um happening (estético) com toda a autonomia e utilizar os endereços enviados. A proposta de Paulo Bruscky foi intitulada Re-Com-posição-postal. O artista cortou uma obra em 10 partes e enviou-as para 10 pessoas. Cada um recebeu um fragmento e deveria tirar 10 fotocópias de seu pedaço, guardar uma e enviar via postal as outras 9 para os endereços restantes. Desta forma, por intermédio dos correios, as partes chegariam a todos os participantes e seriam colados para formar a obra final. Bruscky ainda pedia para que os participantes fizerem alguma experimentação em cima da imagem e a enviasse para a livraria Livro 7, onde ocorreu a mostra Ferrara/Recife 77/78.
SEM DESTINO
Iniciada em 1975, esta ação consistia no envio de envelopes (dentro de outros comuns já selados) com a inscrição “Sem destino” para pessoas de vários estados do Brasil. Ou seja, os participantes recebiam envelope sem destinatário, tendo como remetente o artista Paulo Bruscky e eram orientados a colocar
o envelope em caixas de coleta dos correios. O projeto foi criado quando Bruscky havia verificado que de acordo com as normas da União Postal Universal, não localizando o destinatário, os correios tinham a obrigação de devolver a correspondência ao remetente. No decorrer da ação, que aconteceu até 1983, o artista recebeu envelopes de várias procedências, inclusive postados por ele próprio no exterior. Num envelope enviado de Nova York, os correios carimbaram a frase: Returned for better address (retornado para um endereço melhor). Entre alguns desvios de normas operados por Bruscky, está o envio de um envelope do Sem Destino a partir de Berlim Ocidental com selo adquirido na Alemanha Oriental. A troca foi notada pelos correios da Alemanha que circularam o selo intruso, mas seu envio ao Brasil foi realizado. Esta ação ocorreu ainda no Evento Ferrara/77.
ÚLTIMA EXPOSICIÓN INTERNACIONAL DE ARTE CORREO
A Última Exposición Internacional de Arte Correo, realizada por Eduardo Antonio Vigo e Horacio Zabala, na Galería Arte Nuevo de Alvaro Castagnino, em la Plata, Argentina, em 1975, foi a primeira mostra de Arte Correio realizada nesse país. Ocorreu às vésperas da eclosão da ditadura militar na Argentina e detonou um processo de grande participação de artistas argentinos da rede de Arte Correio. Para a mostra, Paulo Bruscky produziu uma carta e um envelope de grande formato, completamente fora dos padrões, e postou-a na agência dos Correios da Avenida Guararapes, no Recife. O caminho percorrido pelas principais ruas da cidade até a agência foi acompanhado por muitos curiosos e o ato da postagem foi de grande negociação para sua execução, já que, apesar da carta gigante não se encaixar nos parâmetros dos correios do Brasil, não havia qualquer cláusula que impedisse o envio de tal missiva.
BRUSCKY EM BRUSQUE
Em 1978, Paulo Bruscky foi convidado a participar do Festival da Cidade de Aarhus, na Dinamarca. Sua proposta era a vinda de cinco artistas da cidade dinamarquesa para o Recife e a ida de cinco artistas de Pernambuco para Aarhus, após intensa troca de correspondência entre eles sobre gastronomia, economia, história, cultura, geografia e demais questões que achassem relevantes para apreensão do conceito de cidade. A viagem dos artistas aconteceria no mesmo dia e eles chegariam ao destino na mesma data. A estada nas cidades visitantes duraria cinco dias e seria encerrada com um debate público sobre seus achados. Como o festival não teve condições de arcar com o projeto, Bruscky propôs um novo trabalho: sua visita à cidade catarinense de Brusque. Iniciou correspondência com a Prefeitura da cidade e acabou conseguindo mapas e informações, além de um espaço para sua exposição na Associação dos Artistas de Brusque. Por conta própria, o artista viajou de avião a Curitiba e de lá seguiu de carro para Brusque, onde ficou 5 dias coletando material que seria reelaborado para sua obra. O ponto central do projeto era, portanto, a cidade como obra, que se concretiza pelos resquícios de seu percurso, nas intervenções no material gráfico da cidade e na relação que trava com as pessoas do lugar. Esta é a primeira vez em que a obra completa é mostrada.
CORRENTES: TRABALHAR EM REDE
A essência da Arte Correio era o compartilhamento e o intercâmbio. Uma das práticas de grande evidência eram as correntes artísticas, semelhantes às correntes de dinheiro, que propiciavam interferências de várias pessoas numa mesma peça (envelope, conteúdo de envelope, etc) ou mesmo uma rede de trocas de trabalhos. Entre os tópicos da ética da Arte Correio estavam o compromisso de responder ao chamado de participação dentro de um prazo médio de sete dias e retribuir com outro trabalho, o recebimento de um trabalho. Havia várias formas de alimentar uma corrente de arte e muitas exposições foram montadas a partir de convocatórias de participação a partir das correntes. Estão apresentadas algumas destas correntes e cadernos em que Paulo Bruscky anotava o que estava sendo enviado e para quem, entre os anos de 1975 e 1987.
BREVE CONTEXTO HISTÓRICO DA ARTE CORREIO
Na América do Sul, o tom da década de 1970 foi dado pelas ditaduras militares que foram responsáveis pelo desaparecimento de milhares de pessoas e pela suspensão dos direitos de livre expressão dos cidadãos. Neste ambiente, a Arte Correio significou além de uma forma de experimentação estética, um meio de denúncia da situação de terror que abatia a região. O tom dos trabalhos é político, irônico e humorado.
A América do Norte apresenta nos anos 1970 três realidades distintas. Enquanto os Estados Unidos ainda empunhavam a bandeira do Capitalismo em contraposição ao bloco socialista, e buscavam sair dos desgastes trazidos pela Guerra do Vietnã, crise do petróleo e a renúncia do presidente Richard Nixon, o México era a exceção dos países latinoamericanos, enfrentava sua grande crise econômica depois de três décadas de relativa estabilidade e crescimento, mas não vivenciava ditadura militar. O Canadá, por sua vez, foi marcado nesta década por questões separatistas. A Arte Correio teve, portanto, expressões distintas: alargamento dos horizontes estéticos na parte mais ao norte e irmandade com questões políticas com os irmãos do sul, por parte do México.
Como era de se esperar, a Europa apresenta situações multifacetadas devido a sua diversidade de contextos. Ditadura militar em Portugal, crise econômica na Inglaterra, um muro separando dois regimes na Alemanha e os países que formavam o bloco soviético sob a cortina de ferro. A Arte Correio representou a interconexão entre disparidades políticas. A participação na grande rede era uma forma de compartilhar preocupações sociais e estéticas e extrapolar conservadorismos da arte.
A participação da Ásia na Arte Correio foi muito tímida. O isolamento geográfico da região convergiu-se com uma miríade de contextos políticos e econômicos locais limitadores.
A diferença cultural foi outro fator de alienação. O destaque é o Japão que teve no Grupo Gutai um epicentro de experimentalismo em termos internacionais.