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agosto 26, 2011

Um outro lugar: arte nos anos 2000 sob um ponto de vista pós-utópico

Um outro lugar: arte nos anos 2000 sob um ponto de vista pós-utópico1
Luisa Duarte

Para instaurar o reino da paz, não é em absoluto necessário destruir tudo, nem dar nascimento a um mundo totalmente novo; basta deslocar apenas esta xícara ou este arbusto ou esta pedra, fazendo o mesmo para cada coisa. 2

Como podemos entender melhor certas mudanças sofridas na experiência do tempo e do espaço que reverberam na arte sob um ponto de vista pós-utópico? O ponto de vista sinaliza o tempo do qual falamos: o nosso presente. Uma época já não mais atravessada pelos ideais que guiaram a modernidade desde o século XVII.

Ali nascia o fundamento do ideário iluminista – a convicção de que a razão seria capaz de conduzir a humanidade progressivamente em direção à paz e à justiça social em prol de sua emancipação. Tratava-se de uma forma de conceber o mundo na qual a razão seria capaz de reger as ações do homem no tempo presente e, dessa forma, levá-lo rumo a um futuro melhor. Ou seja, estava em marcha a crença no progresso. Crença essa que fazia do futuro o momento privilegiado, no qual o homem, enfim, realizar-se-ia, chegando ao lugar – utópico – projetado pelo ideário iluminista.

Essa maneira de ver o tempo dotava-o de características espaciais. O tempo era visto como uma linha reta, que deveria caminhar para a frente, impulsionado pelo progresso.

A projeção do espaço sobre o tempo forneceu ao tempo traços que só o espaço possui “naturalmente”: a época moderna teve direção, exatamente como qualquer itinerário no espaço. O tempo progrediu do obsoleto para o atualizado, e o atualizado foi desde o início a obsolescência futura. O tempo tinha o seu “a frente” e o seu “atrás”: uma pessoa era incitada e empurrada a andar para a frente com o tempo. 3

Em poucas palavras, é como se bastasse escolher um itinerário, munir-se do conhecimento necessário da estrutura espaço-tempo e, assim, chegava-se ao objetivo pretendido. Hoje, no entanto, sabemos bem o quanto essa estrutura espaço-tempo modificou-se, estilhaçou-se. Vivemos naquela lacuna entre o passado e o futuro, como diagnosticou Hannah Arendt em 1954 4e que só fez aumentar de lá para cá; o progresso, por sua vez, revelou suas contrapartidas mais terríveis, como Walter Benjamin já atentava na primeira metade do século XX, em suas “Teses sobre o conceito de história” (1940). 5

Diante desse novo tempo, cujo futuro já não pode mais ser projetado (eclipse das utopias), e de um passado que deve ser superado rápida e constantemente, e que há muito já não nos lega ensinamentos úteis, findamos por viver a exacerbação de uma experiência restrita à percepção imediata do presente. Somem-se a essa profunda transformação dos marcos temporais outros fatores da nossa contemporaneidade – como a queda dos blocos socialistas no fim dos anos 1980; o crescente esvaziamento do espaço público; a vitória do neoliberalismo a partir dos anos 1980; a extrema flexibilização do trabalho; o testemunho diário de que as leis econômicas do capital comandam o âmbito das políticas de Estado, fazendo com que as esperanças nas lutas macropolíticas sejam continuamente frustradas –, e temos, ao fim e ao cabo, um cenário de desengano quanto às possibilidades de ação num contexto do macrofenômeno e de ceticismo quanto ao gesto de se projetar o futuro a médio e longo prazo.

Entretanto, essa paisagem não deve, necessariamente, derivar-se em paralisia, complacência em relação ao presente, cinismo ou nostalgia – respostas recorrentes ao atual estado de coisas. Sustentamos aqui que, ao mesmo tempo em que lega este presente desamparado, permeado por um tom de incerteza e impotência, esse estado de coisas possui um outro lado, talvez mais luminoso. Quem sabe essa ausência de um futuro passível de ser planejado, calculado, liberto das limitações que os planos impõem, possa legar uma vivência mais livre no tempo presente? Constatado que o presente é o nosso horizonte, faz-se dele um momento de construção das nossas possibilidades no mundo.

É justamente diante dessa atualidade, que surge ambígua, com as marcas do desengano e da abertura de novos caminhos, que se pode chegar melhor ao encontro com a arte contemporânea. A compreensão deste pano de fundo, onde se dá o fim das utopias e de seus desdobramentos, constitui importante porta de entrada para começarmos a tentar compreender melhor “certas” 6 investidas artísticas da atualidade.

“Soyons réalistes, demandons l’impossible!”7, uma articulação entre o tempo da “realidade” e o tempo do “im-possível”, era o grito que inundava as ruas de Paris em maio de 1968. Este clamor que mesclava realidade e sonho – este último, parente do utópico – continha o desejo de rechaçar não só o poder vigente, ditatorial em diversas partes do planeta, mas também a vida alienada pelo consumismo, o culto da produtividade semeado pelo capitalismo, a tendência à uniformização e segregação do diferente que gerava uma padronização igualmente alienante.

Um pensador como Michel Foucault advogava, então, não por utopias, mas por heterotopias8, pelo local, o setorial, para que o pequeno e o cotidiano não seguissem sepultados pela política em letras maiúsculas e pelas razões de Estado. Testemunhava-se também o surgimento das chamadas micropolíticas. As práticas sociais reiniciam-se em um nível micro. Nas palavras de Félix Guattari:

Tudo que eram formações políticas, sociais e sindicais na época de Sartre desmoronou. […] Na época de Michel Foucault o que aparece de pronto são problemáticas em todos os níveis do social: no plano da educação, das prisões, da psiquiatria, sobre a homossexualidade e a prostituição. Esta problemática é irreversível, apesar de sua capa de chumbo, apesar dos anos invernais pelos quais passamos. Mas notamos que há uma micropolítica, um nível microssocial que é um lugar onde operam e se reiniciam as práticas sociais. 9

Tratava-se de cultivar o possível, ainda que os olhos mirassem, de soslaio, o impossível. Esta nova forma de se relacionar com o mundo ao redor, na qual o possível pede lugar na criação de mundos diversos, traz modificações na esfera do tempo e do espaço. O presente ganha valor, e aquilo que se encontra mais próximo (cotidiano), também.

É preciso, entretanto, sublinhar que Félix Guattari não tomava a micropolítica como o pequeno, o individual, o privado, mas seria, sim, como uma lógica denominada pelo autor de “molecular”, que opera por toda parte, que atravessa grandes e pequenas estruturas. Se há, no contexto do final dos anos 1960, uma atenção sem precedentes ao micro, isso não quer dizer que o macro seja excluído. Mais parece que naquele tempo eram traçadas novas estratégias, novos caminhos, para influenciar e modificar tanto o micro quanto o macro. Descobria-se que a partir do micro poder-se-ia interferir no macro, e vice-versa. Esse momento histórico expressa justamente uma clivagem em relação ao período moderno. O aparecimento do termo “pós-moderno” dá-se nos estudos de J.F. Lyotard, em 1979; era o início do fim da era das grandes narrativas.

É importante rememorar essa linha histórica, pois ela marca justamente uma mudança em relação a um período anterior no qual a arte e outras tantas disciplinas ainda eram movidas pelo pensamento moderno que, no campo da arte, tem nas vanguardas do início do século XX um exemplo paradigmático.

As vanguardas do século XX, do dadaísmo à internacional situacionista, inscreviam-se na linhagem desse projeto moderno (transformar a cultura, as mentalidades, as condições de vida e social), mas não nos esqueçamos de que ele era anterior às vanguardas e delas se distinguia sob muitos aspectos. Pois a modernidade não se reduz a uma teleologia racionalista nem a um messianismo político. Há de se denegrir a vontade de melhorar as condições de vida e de trabalho só porque malograram suas tentativas concretas de realização, repletas de ideologias totalitárias ou de visões históricas ingênuas? […] se a opinião pública tem dificuldade em reconhecer a legitimidade ou o interesse destas experiências [da arte contemporânea], é porque elas não se apresentam mais como prenúncios de uma inexorável evolução histórica: pelo contrário, elas se mostram fragmentárias, isoladas, sem uma visão global do mundo que possa lhes conferir o peso de uma ideologia. 10

Essa passagem sublinha a transição da modernidade para a contemporaneidade, mostrando como o território da arte, hoje, já não se ocupa em cultivar modelos previamente concebidos para o mundo. Tal mudança, cujo auge no campo da arte encontra-se na passagem dos anos 1960 para os 1970, possui desdobramentos até hoje. Interessa aos artistas, a partir da contemporaneidade, habitar o mundo presente, e não tão somente um futuro projetado utopicamente, com valores universais.

O recorte curatorial da exposição Um outro lugar reflete essa dimensão fragmentária da produção contemporânea. A intenção aqui é traçar uma narrativa por meio de um conjunto de mais de quarenta trabalhos de 21 artistas que mostre, quem sabe, como a arte contemporânea lida hoje com a dimensão de uma chance de mudança que não é aquela heroica, idealizada, mas sim em uma escala mais próxima, sutil, por vezes delicada mesmo, porém não menos potente.

Os 21 artistas reunidos em Um outro lugar apresentam trabalhos realizados ao longo da primeira década do século XXI. Todos são de uma geração que nasceu entre o final dos anos 1960 e 1980 – e, portanto, “cresceu” à luz das mudanças ocorridas no mundo no final do século XX –, e que teve sua produção artística maturada entre os anos 1990 e os 2000. É importante dizer que se trata de uma mostra que tem na sua origem o diálogo constante com os artistas por meio de conversas e textos ao longo dos últimos oito anos. Sem essa interlocução horizontal entre curadoria e artistas, esta exposição jamais teria existido.

Pensar como essa produção lida com a possibilidade de se instaurar um outro lugar – um terceiro lugar, diverso do ideal, e também diverso do real – dentro do mundo em que vivemos é o que se pretende nesta coletiva. Uma espécie de dinâmica na qual um olhar cruza com uma experiência dada, e desse contato resulta um acontecimento terceiro. As inflexões dessa natureza aqui operadas incidem em diversas direções: a interrogação para o olhar que se instaura por meio do gesto mínimo (Marcius Galan e Nicolás Robbio); o tempo cronológico transfigurado de forma crítica (Sara Ramo, Detanico Lain, Lais Myrrha, Marilá Dardot); uma cartografia geopolítica fictícia (Carla Zaccagnini); um olhar alterado diante do modo de viver nas cidades (Marcelo Cidade, Amílcar Packer, Jorge Macchi); um olhar sutilmente subversivo diante de ícones da sociedade de consumo (Cinthia Marcelle, Marcelo Cidade, Matheus Rocha Pitta); a arquitetura como um campo fértil para se pensar uma nova escala de mudanças (André Komatsu, Carlos Garaicoa, Lucia Koch); o modernismo na arquitetura citado criticamente (Jonathas de Andrade e Rodrigo Matheus); paisagens de outros lugares, imaginados ou reais (Rivane Neuenschwander e Cao Guimarães, Fabio Morais, Rodrigo Matheus, Raquel Garbelotti, Nicolás Robbio, Sara Ramo); e ainda uma série de trabalhos que lida justamente com essa chance da arte de criar um Terceiro Mundo, presente em Marilá Dardot.

Tendo como norte essas espécies de núcleos, foi desenhada a montagem da exposição, de modo que tais correspondências pudessem ser feitas no espaço. Afinal, a curadoria não deixa de ser um texto escrito no espaço. Algo que até então era pensado somente no plano da escrita, da teoria, tem a chance de ir para um tipo de laboratório, no qual haverá um encontro com os trabalhos de fato, e relações até então pensadas são como que postas à prova pela força que possuem, ou não, na hora que se conclui o processo de tessitura das obras no espaço expositivo.

Quem busca encontrar o cotidiano do tempo histórico deve contemplar as rugas no rosto de um homem, ou então as cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido. Ou ainda, deve evocar na memória a presença, lado a lado, de prédios em ruínas e construções recentes, vislumbrando assim a notável transformação de estilo que empresta uma profunda dimensão temporal a uma simples fileira de casas. 11

A análise de um trabalho presente na exposição pode, quem sabe, ajudar a tornar mais claro o argumento esboçado nas linhas anteriores. A citação acima, que bem poderia ser de Walter Benjamin, mas é do historiador Reinhart Koselleck, aponta para uma forma de compreender o tempo. No caso, o autor indica que uma profundidade temporal pode ser encontrada em uma simples fileira de casas, bem como o cotidiano do tempo histórico pode ser encontrado na face enrugada de um homem. É justamente essa dialética entre micro e macro, singularidades e universais, aquilo que particulariza a produção exibida em Um outro lugar.

A obra do artista cubano Carlos Garaicoa é um exemplo de manifestação da arte contemporânea que se conecta de forma aguda com a passagem de Koselleck. Suas obras buscam encontrar o cotidiano do tempo histórico evocando memória e presença, ruína e construção, tomando a arquitetura como uma manifestação emblemática das mudanças sofridas nos modos de vida das sociedades modernas e contemporâneas.

La ciudad vista desde la mesa de casa, trabalho de Garaicoa presente na mostra, reúne elementos recorrentes em toda sua obra, tais como a cidade e a arquitetura. Em um primeiro plano da fotografia, de escala pequena, vê-se uma mesa de espelho sobre a qual repousa uma série de objetos de cristal de uso doméstico – garrafas, saleiros, cinzeiros etc. –, formando um jogo de espelhamento sutil entre os vários elementos e a mesa que os abriga. Tal composição reproduz, em uma escala doméstica – a mesa de casa –uma paisagem urbana em miniatura. Os objetos e suas diferentes alturas, volumes e localizações remetem a uma espécie de cityscape caseira, uma espécie de skyline desenhado com estes pequenos objetos cotidianos. Ao fundo, na fotografia, a paisagem de uma grande cidade “real”, imensa, um pouco desfocada, com seus arranha-céus.

Neste trabalho, cuja articulação é aparentemente simples, são abordadas questões prementes, tais como a relação entre o público e o privado, e a sensação de impotência que acomete cada um de nós diante de uma esfera pública que nos parece cada vez mais inalcançável. Note-se que tal relação é posta em obra não por um viés ilustrativo, mas sim por uma aposta na delicadeza poética como fonte de vigor e potência. Em La ciudad vista desde la mesa de casa, Garaicoa opõe as duas esferas, público/privado, e, ao construir sua cityscape doméstica, parece lembrar-se da chance, sempre aberta, de sairmos da posição de espectadores e nos tornarmos sujeitos. Sobre aquela mesa, tendo a cidade real ao fundo, nossa imaginação, nossos desejos, podem se tornar realidade, ou seja, existe um campo aberto para possibilidades criadoras, em uma dimensão próxima, não distante, utópica; seríamos sujeitos capazes de mover as peças, promover mudanças, alterar cartografias, ainda que numa escala mais cotidiana, por vezes ficcional, e certamente menos idealizada do que a pretendida pela modernidade.

Projetar, isto é, imaginar, sonhar, novas formas de vida em comum, conformações diversas para o mundo que habitamos, é um desafio encontrado em grande parte da obra de Garaicoa e que atravessa, de alguma maneira, os trabalhos de todos os demais artistas presentes na exposição. E talvez esteja nessa conjugação entre realidade, imaginação e transfiguração um dos pontos cruciais para se pensar esse apontamento para um outro lugar. É da natureza da arte ir além do previsível, do possível. A dualidade recorrente nos trabalhos de Garaicoa, entre sonho e realidade, revela uma vontade de olhar para o real, sabendo que podemos imaginar algo que aponta para além dele, ou seja, não estamos restritos à realidade dada, mas dela devemos partir, e dela não devemos nos desvincular totalmente.

A inspiração que pode advir do encontro com esses trabalhos é a de que os movimentos de mudança da realidade estão bem mais próximos do que imaginamos. No contato com tais manifestações, somos tomados dessa vibração que nos faz crer que, sim, outra forma de ver e habitar o mundo é possível.

Mostrar a possibilidade desses dispositivos – que uma época marcada pelo cálculo, pelo apequenamento dos horizontes de expectativas, pela sensação de impotência teima em anular – é uma porta aberta necessária para que tenhamos uma relação crítica e poética com o entorno. Para além do poder instituído, existe o instituinte, que pode tomar para si o já existente e instituir desvios, criando novos rumos que apontam para outras formas de ver o mesmo. Rememorar essa chance de abertura a cada um de nós por meio do encontro com a arte é um desejo que atravessa Um outro lugar.

Uma vontade de mudança, inventividade, permeia o ar. Mesmo que ele esteja carregado de totalitarismos, intolerâncias, ditaduras outras, que “calam sem anunciar, calam de dentro”12. Mas, ainda assim, os artistas, e não só eles, buscam continuar pensando esse mundo, acreditando que pensá-lo e reinventá-lo por meio da linguagem é um primeiro passo para transformar o tempo presente, instituindo, quem sabe, um outro lugar em meio a este em que vivemos. Tentamos, muito cegamente, nos esclarecer.13

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A exposição apresentada neste texto é fruto de uma pesquisa que vem sendo realizada há alguns anos. Trata-se de experimentar na prática da curadoria certas premissas teóricas esboçadas em textos já publicados. Assim sendo, permito-me usar passagens de textos anteriores de minha autoria que fazem parte dessa mesma linha de pensamento. Um deles é minha dissertação de mestrado em filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, defendida em 2010, intitulada “Um copo de mar para navegar: arte nos anos 2000 sob um ponto de vista pós-utópico”. Em 2004 publiquei um ensaio cujo título era “Um copo de mar para navegar”, na revista Arte & Ensaios, no 11, editada pela EBA/UFRJ. Por coincidência, seis anos depois de publicado o ensaio, os mesmos versos de Jorge de Lima, que nesse título encontravam uma síntese, emprestaram o título à 29a Bienal de São Paulo, sob curadoria de Moacir dos Anjos, que assinava um artigo na mesma publicação do ensaio citado.
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Parábola judaica citada em: Peter Pál Pelbart, “Deleuze, um pensador intempestivo”. In: Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 194.
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Zygmunt Bauman, O mal-estar na pós-modernidade, trad. Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama, Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 110.
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Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, trad. Mauro Barbosa de Almeida. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
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Walter Benjamin, Obras escolhidas, volume Magia e técnica, arte e política, trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
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É importante destacarmos a palavra “certas”, a fim de deixar claro que pretendemos aqui apontar um dos múltiplos caminhos que a arte contemporânea vem seguindo nos dias de hoje. Qualquer tentativa de totalização diante de um universo como este já se constitui fracassada, de início, em sua premissa.
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“Sejamos realistas, demandemos o impossível!”
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Ver ensaio “Outros Espaços”, de Michel Foucault. In: Michel Foucault, Ditos e escritos III: estética: literatura e pintura, música e cinema, trad. Inês Autran Dourado Barbosa. São Paulo: Forense Universitária, 2001, p. 415.
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Félix Guattari, “De La Philosophie Essentielle À L’Existence Humaine”, entrevista com Antoine Spire. Paris: Éditions de L’Aube, p. 30. Citado em Micro Políticas, Arte y Cotidianeidad 2001-1968, Juan Vicente Aliaga, María de Corral, José Miguel Cortés (orgs.), p. 31. Tradução própria.
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Nicolas Bourriaud, Estética relacional, trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins Editora, 2009, p. 21.
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Reinhart Koselleck, Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, trad. Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006, p. 13.
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Trecho de um depoimento de Sara Ramo publicado na seção “Mirando os anos 1970 à luz das vozes dos anos 2000”, editada por Luisa Duarte, inserida no catálogo da mostra Anos 70: arte como questão, curada por Glória Ferreira.
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Esta conclusão é diretamente inspirada no final de uma carta escrita por Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil, cuja tradução integrava o programa do espetáculo Les Ephémères, apresentado no SESC Belenzinho, São Paulo, SP, em outubro de 2007. Reproduzo aqui um trecho da carta por acreditar que ela ecoa, de maneira aguda, algumas das tentativas de pensamento deste texto. “O espetáculo se chama Les Ephémères. Na desordem. Levantamos âncora. […] o mundo explode ao nosso redor… e nós… nós tentamos fazer um espetáculo sobre… sobre o que mesmo? Se eu lhe dissesse que os atores e eu mesma nos vemos trabalhando sobre… quase nada. Esse quase nada que chamamos de infelicidade, de felicidade, muitas vezes de arrependimento, e às vezes, felizmente, de revelações. Nossos pequenos apocalipses. Nossas esteiras apenas formadas e já desfeitas. Os vestígios que acabamos de deixar e já desaparecem. Nossos rastros, tão invisíveis quanto o de uma serpente na areia. Não sei por que tive vontade de lhe escrever esta carta. Fiz sessenta e sete anos este ano. Sou a mais velha. A mais jovem tem vinte. Entre nós há agora todas as idades. […] o mundo explode ao nosso redor… as geleiras derretem, os oceanos sobem, as ilhas de nossos sonhos logo ficarão submersas, e continuamos ‘analfabetos do sentimento’. Trata-se de nós, de você, de vocês. Procurávamos respostas, mas foram pessoas como nós que fomos encontrar. Aquelas que nos revelam nossa coragem, nossa bondade, nossa fraternidade, eu as chamaria de Salvadores. Aquelas que nos revelam nossa vergonha, nossa covardia, nossa indiferença obstinada, eu os chamaria de Sabotadores. Somos salvadores e sabotadores de nossa vida, somos náufragos e salva-vidas. Náufragos, porque comemos o bem de nossos filhos; salva-vidas, porque queremos mesmo assim que leiam livros. Essa é a diferença. Tento muito cegamente nos esclarecer…”
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Posted by Gilberto Vieira at 2:50 PM