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agosto 15, 2011
Gabriela Machado - A reinvenção do banal por Fernando Oliva
Gabriela Machado - A reinvenção do banal
O banal, o cotidiano, o óbvio, o comum, o ordinário, o infra-ordinário, o ruído de fundo, o habitual? Como vamos falar destas coisas comuns, como catalogá-las, como se livrar delas, como dar a elas sentido, um língua, permitir que elas, finalmente, falem do que é, de quem somos. – (Georges Perec, Species of Spaces, 1974)
Dizer que a nova série de Gabriela Machado evidencia o seu interesse pela experiência do cotidiano seria correr um duplo risco, o do lugar comum e o da generalização. Parece mais adequado afirmar que estes trabalhos optaram por radicalizar sua relação com o banal – um movimento tanto anti-sedutor, anti-nostálgico e, no limite, subversivo da ordem atual das coisas(1).
Não por acaso uma parte fundamental desta pesquisa acontece no campo do registro fotográfico. Não a fotografia documental maneirista, hierarquizante e empolada que se transformou em um gênero, mas a da imagem que assume sua própria natureza ficcionalizante e performativa. Trata-se de uma possibilidade de abertura franca em direção ao real, e é sintomático que as imagens que a artista produz não façam parte do corpo principal de sua obra. Elas se apresentam mais como um caderno de anotações, registros que ela consegue adotando uma postura “amadora”, no sentido de evitar qualquer exibição de virtuosismo ou de domínio da técnica.
Deste modo, é possível afirmar que a construção dessas pinturas não é dada nem pela forma, nem pela cor ou pelo gesto. Sua lógica operacional parece vir de fora, ser “emprestada” de um contato não mediado com o mundo. Seu princípio ordenador é o mesmo que as desestabiliza, contradição que as mantém operando. Neste sentido é que é possível afirmar que a produção de Gabriela Machado confere certa dignidade à matéria do cotidiano, uma operação que ela realiza sem esforço aparente, de modo “natural” – e certamente sem todo aquele peso histórico e crítico que relega aos artistas ao papel de continuadores de um legado. O antídoto contra qualquer tentativa de instrumentalização é também parte integrante da própria maneira com que Gabriela se posiciona diante da sua prática(2).
Parece evidente que este trabalho não é “sobre” o cotidiano, mas antes em torno dele, ao mesmo tempo aquém (“infra-ordinário”) e além. Sua produção fala desse algo trivial, repetitivo, aquilo que normalmente passaria despercebido. A “coisa doméstica”, ao alcance da mão, ou da câmera, como reivindicou Chris Marker em, Sans Soleil: “Depois de dar a volta ao mundo, só o banal me interessa”. Ou Philippe Parreno e Douglas Gordon, quando fazem o narrador de Zidane - Um Retrato do Século 21 dizer, após uma série de notícias grandiosas de interesse mundial, coisas como “Meu filho teve febre essa manhã” e “Eu tinha coisas a fazer hoje...”. E Annette Messager, que recentemente declarou: “De modo geral eu acredito que um artista não cria algo, mas rearranja, mostra, evidencia o que já existe, encontra uma forma e às vezes a reformula”. Para a artista francesa, o cotidiano pode ser entendido como uma linguagem em si, um dos motivos pelos quais não prestamos muita atenção nele. Uma vez que o cotidiano não é um tema, mas a própria matéria a partir da qual os projetos se estruturam, a lista de artistas parece infinita, e neste contexto seria impossível não lembrar de Bas Jan Ader, que em Primary Colors ocupa o tempo na operação cíclica de arranjar/desarranjar um buquê de flores dentro de um vaso.
No caso de Gabriela Machado, trata-se de um cotidiano que não se refaz, não se reconhece nestas obras prontas e aqui expostas. O que chama a atenção justamente para uma ausência, o fato de não estar (pelo menos de maneira aparente). E no entanto temos sempre dele um vestígio, espécie de sobra que parece resistir apenas para que não nos esqueçamos de suas origens e de seu particular caminho para chegar até este ponto. Este resquício indicial, que pode ser a lembrança da forma de uma flor, de fios soltos ou um objeto qualquer sobre a mesa, é também uma espécie de elemento parasita, resultado de uma mimetização que, mesmo no limite da invisibilidade, mantém-se ainda em estado de potência e garante ao espectador que estas obras se encontram em pleno processo de mutação em direção a algo novo que no momento a própria artista desconhece(3). O motivo e a desculpa para sua figuração partem de um mesmo lugar, que pode ser uma viagem qualquer, uma fruta ou objeto esquecido, ou então em um instrumento musical, como justamente acontece neste momento da sua produção.
O escritor francês Georges Perec costumava apontar algo de “infra-ordinário” no dia a dia. De modo análogo acredito que podemos nos aproximar dessas obras como de estruturas internas, obviamente não visíveis (ao menos em um primeiro contato), mas que possuem um caráter formalizador, discreto, de moldar a aparência das coisas a partir de dentro. Talvez resida aí sua maior qualidade – espécie de ética própria, interna, mais uma vez não reivindicada, portanto ainda mais elegante e coerente.
Notas
1. O sociológo francês Michel Maffesoli, no ensaio para a exposição Promenade en Marges (Paris, Galerie Chantal Crousel, 2002), retoma o sentido social e político do termo “banal”, lembrando a origem do termo: na França medieval, durante a feitura do pão, um dia banal era aquele em que os servos não precisavam entregar a produção ao senhor feudal. Tratava-se de um dia de pão comum, de fazer comunitário e celebração silenciosa, em que a vida se manifestava livremente, sem a presença ostensiva do poder instituído.
2. Na visita que fiz a seu ateliê, em 7/7/11, um dos primeiros comentários que a artista fez foi: “Não estou interessada na pintura, mas na vivência, no dia a dia”. De início achei que se tratava de uma provocação, um teste inicial que me forçaria a uma tomada de posição diante do tema, porém com o desenrolar da conversa percebi que ela estava apenas descrevendo seu modo de operar.
3. Este diálogo com o cotidiano tem se mostrado produtivo desde o início do percurso de Gabriela Machado, no final dos anos 1980, mas no entanto acabou eclipsado pelas narrativas dominantes daquela década e da seguinte, que insistiam na mitificação de um artista virtuose, ensimesmado com as próprias capacidades. Um olhar mais leve e objetivo – além de menos submisso ao cânone histórico e seus maneirismos – pode revelar aspectos e possibilidades novas em direção a uma artista que não esconde seu desejo de contaminação pela experiência do mundo.
Fernando Oliva é curador e professor, docente nas faculdades Faap e Santa Marcelina.