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março 14, 2011
Mais abrangente exposição da artista Regina Silveira abre calendário de 2011 da Fundação Iberê Camargo
Mostra Mil e um Dias e Outros Enigmas estará em exibição de 16 de março a 29 de maio com 25 trabalhos distribuídos pela fachada, átrio e dois pisos da Fundação Iberê Camargo. Alguns deles produzidos especialmente para dialogar com o prédio projetado pelo arquiteto Álvaro Siza.
Uma das mais importantes representantes de uma geração de artistas na América Latina, Regina Silveira, retorna a Porto Alegre, para apresentar, pela primeira vez na sua cidade natal, uma exposição de caráter retrospectivo de sua carreira, ou como ela mesma gosta de dizer, um survey de sua produção.
A exposição Mil e um Dias e Outros Enigmas abre o calendário de 2011 da Fundação Iberê Camargo com 25 trabalhos da artista distribuídos pela fachada, átrio e dois pisos da Fundação Iberê Camargo. O prédio, desenhado pelo arquiteto português Álvaro Siza, com seus aspectos únicos, é mais um componente para Regina Silveira explorar as relações entre arte e arquitetura, e o que deriva dessas relações.
Mil e um Dias e Outros Enigmas tem curadoria do colombiano José Roca, também curador-geral da Bienal do Mercosul em 2011, parceiro da artista em outras duas mostras: Sombra Luminosa (2008 – Museu de Arte Banco de la Republica, Bogotá, e de Antioquia, Medellín, Colômbia) e Linha de Sombra ( 2009 – Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro). “Minha formação original é de arquiteto, assim sou capaz de entender melhor o potencial plástico das complexidades espaciais do edifício, que apresentam um desafio para qualquer trabalho que esteja ali. A escolha das obras foi feita em estreita relação com Regina”, informa Roca.
A fachada, o átrio e os dois primeiros pisos vão dialogar com as obras da artista. Algumas produzidas especialmente para esta retrospectiva, outras, adaptadas para as condições arquitetônicas do espaço. Segundo Roca, a força expressiva da construção, suas formas e seus materiais brutos - assim como o magistral aproveitamento da iluminação, das sombras e a relação do interior da construção com o exterior -, se transformam em protagonista inevitável no momento de realizar a curadoria.
A escolha do espaço se deve, também, a uma circunstância biográfica, e é quase uma homenagem, pois Iberê Camargo foi professor de Regina. A exposição pretende estender a filiação genealógica desde Giorgio de Chirico (que por sua vez foi professor de Iberê Camargo, por volta de 1948-1949), passando por Marcel Duchamp, René Magritte e outros nomes que são expoentes da história da arte moderna. Para alinhavar esses possíveis diálogos, no segundo andar estarão três gravuras de Iberê (Natureza Morta 12, cerca de 1954; Mesa com Espelho, cerca de 1955 e Interior 1, 1956) e no primeiro piso, um Giorgio de Chirico (Enigma de Um Dia, 1914), do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, que servem como um contraponto conceitual ao resto do conjunto.
Mestre Iberê Camargo
Regina Silveira, 71 anos, é a artista gaúcha contemporânea que mais circula internacionalmente. Antes de deixar o Rio Grande do Sul, em 1967, e partir para uma longa viagem de formação profissional, ela levou consigo uma bela bagagem artística que aprendeu com alguns mestres. Conclui o bacharelado de pintura no Instituto de Artes da UFRGS, cursou uma disciplina de aperfeiçoamento de Pintura com Ado Malagoli (1906-1994), além de ocupar o cargo de colaboradora de ensino em aulas de desenho, convidada por João Fahrion (1898-1970). Regina também circulou por um pólo totalmente oposto ao Instituto de Artes da Ufrgs: o Atelier Livre, liderado por Iberê Camargo. “De um lado se situava a formação mais tradicional, no outro, estava o artista de carreira, transmitindo uma valiosa experiência profissional. Eu circulava nos dois ambientes com facilidade, talvez porque eu não estava interessada no conflito entre esses espaços e os argumentos de cada um dos lados. Sempre fui – e continuo- profissionalmente muito focada. Só estava interessada em aprender”, conta Regina.
E com Iberê ela aprendeu, juntamente com a pintura, atitude, concentração e alto grau de comprometimento com o trabalho. A artista recorda boas histórias com o mestre, uma delas, lembra; Iberê jogou pela janela um pincel de pelo de uma aluna, diante do olhar estarrecido dos demais, porque, o tal pincel “lambia” a pintura - e depois, com o pincel de cerdas duras, que havia recomendado, pintou por cima da pintura, enquanto o outro pincel deixava o abrigo, ainda visível, em cima do bonde.
Rompimento com a pintura
Com essas lições Regina partiu para a primeira longa estadia na Europa, com bolsa do Instituto de Artes e do Instituto de Cultura Hispânica, no ano de 1967 e boa parte de 1968, onde ela se deparou com um cenário impregnado pela contracultura nos anos 1960. Na Espanha, conviveu com artistas operando em linhagens da Arte Concreta, outros, na frente do Neo Dada, e também presenciou as manifestações iniciais da Arte de Computador promovidas pela IBM. Na França, visitou intensivamente a exposição Art, Lumiere et Mouvement, organizada por Frank Popper, para o Museu de Arte Moderna de Paris, que consagrava manifestações cinéticas e de arte programada. Na Inglaterra, encontrou o diálogo forte da fotografia com as técnicas da gravura, dentro de um imaginário marcado pela Pop Art. “A pintura entrou em crise quando me deparei com um universo maior de linguagens e meios da arte contemporânea internacional em plena produção”, relembra.
Mas o seu rompimento de fato com essa técnica iniciou-se quando ela realizou uma série de colagens geométricas, com recortes coloridos de papel, tecendo espécies de narrativas de cor e forma. Maria Josefa Seiquer, galerista, da Galeria Seiquer, em Madrid, lhe faz um convite para uma individual com essas pequenas colagens. “Ela não conhecia nada do meu passado de pintora, e nem se importou com ele, embarcou nesta viagem sem outras referências. Creio que foi aí que começou de fato o meu divórcio da pintura”, conta Regina.
Mil e um Dias e Outros Enigmas
Voltou ao País em meados de 1968, e um ano depois foi viver e trabalhar na universidade de Puerto Rico, campus de Mayaguez, com Julio Plaza e quando voltou ao Brasil, em 1973, radicou-se em São Paulo, onde vive até hoje. Portanto, sua relação expositiva com Porto Alegre sempre foi muito esporádica. Recentemente, apresentou, na Galeria Bolsa de Arte, cerca de 20 trabalhos, nas mais variadas técnicas e suportes: vinil adesivo, poliestireno recortado, serigrafia, porcelana, tapeçaria e objeto. Mas, Regina registra o ano de 2001 como o retorno ao meio natal. Nesse ano ela realizou uma intervenção, no Torreão, espaço independente em Porto Alegre, liderado por Jailton Moreira e Elida Tessler. Foi no Torreão que Regina montou um ateliê de pintor, com banco, cavalete, paleta e pincéis. “O estúdio evanescente, construí com linhas interrompidas naquela pequena sala alta do Torreão, onde mantive as janelas fechadas, é, por isso tudo, uma peça autobiográfica”, revela.
Em Mil e um Dias e Outros Enigmas a curadoria apresentará, no átrio, duas obras que respondem a essas mesmas intenções autobiográficas. Desaparência (1999-2011) é um trabalho que recebe o espectador, acompanhado de Dobra Cavalete (2005), uma peça escultórica. No primeiro andar estarão expostas as peças complementares Mundus Admirabilis (2007) e Rerum Naturae (2007-2008), que referenciam as pragas bíblicas. A instalação está composta por figuras agigantadas de insetos, tiradas de livros entomológicos ilustrados, de diversas épocas. Na mesa, sobre uma toalha de linho com insetos bordados em ponto de cruz, está disposto um jogo de louça de porcelana no qual são repetidos os mesmos motivos.
A exposição continua no primeiro andar com uma série de obras relacionadas com a sombra, um dos traços visuais característicos do trabalho de Regina, onde ela quebra a relação direta que existe entre um objeto e sua sombra. Segundo Roca, é uma relação indissolúvel no mundo real, mas fonte de liberdade criativa no mundo da representação. “A sombra está presente na trajetória de Regina, como traço formal dominante, desde o início dos anos 1980, com a série Dilatáveis (1981) e na série Anamorfas (1980), com a deformação dessa mesma sombra até deixá-los irreconhecíveis”, complementa o curador, exemplificando, como na série Armarinhos (2002), representada por duas obras: Botão e Agulha, Regina mostra que o objeto, por simples ou cotidiano que seja, pode adquirir um caráter ameaçador a partir da deformação perspectiva da sua sombra.
Já nas séries Toposombras e Enigmas, ambas de 1983, Regina faz coincidir objetos cotidianos como sapatos, telefones, bolsas ou máquinas de escrever com as sombras (ou as silhuetas) de objetos ou ferramentas como martelos, prensas ou talheres, sem propor lógica combinatória alguma.“ São quebra-cabeças sem solução, linguagens de símbolos sem chave para serem decifrados, cuja única função é estimular e aguçar a percepção”, explica Roca. Nas instalações Lunar (2002-2003) e Umbra (2008) são utilizadas as esferas para propor outros jogos de percepção.
Um outro ponto alto da mostra é Desenhos Preparatórios para a Série In Absentia. Regina conta que nos anos 1980, quando ainda não usava computador e planejava tudo sobre papel milimetrado, ela chegou a afirmar que os desenhos preparatórios registravam raciocínios e operações muito compatíveis com a lógica digital. “Falei mesmo em computação a mão”. Ou seja, a passagem do manual para o digital não trouxe uma descontinuidade radical aos projetos de Regina. Tanto que ela segue desenhando a mão, e muitas vezes o desenho manual serve como fonte ou modelo para o desenho digital. “O que ganhei com os modelos digitais foi um maior controle, da dimensionalidade e da escala — e afinal também ganhei velocidade. O que se perde em planejamentos digitais - em muitos casos por mais que multiplique os arquivos prévios - é apenas a memória do percurso do pensamento, por onde passou antes de encontrar a forma ou a solução para o trabalho final", diz.
E é a obra Mil e Um Dias (2007), que combinada com o Enigma de Um Dia, de Giorgio de Chirico, dá o título a esta exposição-retrospectiva. O resultado é de uma projeção de vídeo digital pensada exclusivamente de acordo com as características do prédio, onde as imagens diurnas foram gravadas com céu bem azul, e as imagens da noite são uma recriação totalmente digital, uma colagem. A produção do trabalho é assinada por André Costa, edição e videografia de Matias Lancetti e música de Rogério Rochlitz.
Intervenção na fachada
Mas é fora do prédio, na fachada, que se encontra a obra que certamente vai chamar mais atenção, desenvolvida especialmente para a ocasião, Atractor. Desde os anos 1990 Regina vem realizando intervenções públicas. As projeções começaram com o Super Herói, animação a laser na avenida Paulista, depois veio a mosca de Transit, (também vai estar na exposição), que circulava de noite, a partir de um carro aberto e em deslocamento por varias áreas de São Paulo. Segundo a artista, a “intenção é re-sematizar fachadas e espaços, por vezes de edifícios patrimoniais, de grande escala e presença arquitetônica”.
Para isso, Atractor (2011) usa várias tecnologias digitais. Isto inclui, na própria etapa de concepção, o modelo digital feito em colaboração com o arquiteto Claudio Bueno, parceiro também em a Escada Inexplicável e Todas las Noches, um projeto dos anos 1990 para o MARCO, de Monterrey, que mesmo não acontecendo, serviu de origem para muitos trabalhos subseqüentes da artista.
A obra da Fundação Iberê é uma variação de uma outra já existente. Trata-se da palavra LUZ inscrita na fachada do edifício. Esta obra é proposta como uma tautologia (luz escrita com luz) ao ser realizada em forma de projeção, ou como vinil aplicado em uma superfície translúcida com a palavra em material transparente, conseguindo um efeito similar. Em Atractor, Regina utiliza vinil aplicado diretamente na fachada do museu, mas nesse caso, trata-se de um material espelhado, que não apenas atrai e reflete a luz, mas também o céu, a paisagem distante e os volumes e as superfícies de toda a construção. A peça foi concebida digitalmente como se fosse uma projeção de luz com um gobo (placa metálica com a forma a ser projetada recortada para deixar passar a luz).
A primeira vez que Regina fez algo parecido, foi em fibra óptica, no janelão do MAC na Cidade Universitária, em 2000. E, em seguida, vieram as exposições Claraluz, no CCBB, em SP (2003) e Lúmen, no Palacio de Cristal, em Madrid (2005) em que ganhou escala e ênfase e as várias intervenções com as projeções de rua, que realizou em Bogotá e em Lahore, no Paquistão, quando traduziu a palavra para um ideograma gravado em gobo, para circular pelos mercados noturnos da cidade. Em 2010 ela utilizou um vasto número de tipologias para vazar esta palavra em vinil translúcido, funcionando como uma miríade de reflexos em Glossário, no Espaço Cultural do Hospital Edmundo Vasconcellos, em São Paulo. “Entendo que as diversas versões desta mesma obra, que agora tem Atractor como última manifestação, habitam o terreno que compartilho com a Poesia Visual, há muitos anos”, esclarece.
Segundo o curador José Roca, o trabalho de Regina indaga sobre a realidade e a sua representação a partir da arte, por meio de paradoxos visuais que fisgam o espectador e propõe-lhe uma reflexão mais profunda sobre questões existenciais, através de jogos visuais, estratégias conceituais e reflexões poéticas sobre a tecnologia.
Projetos da artista
Depois de Mil e Um Dias e Outros Enigmas a agenda de Regina segue lotada. Ela deve participar com uma intervenção urbana no projeto Semana de Arte do Rio de Janeiro, em maio, e com uma instalação na coletiva Estrangeiras, com curadoria de Nestor Canclini e Andrea Giunta, no Museu de Arte Contemporânea, na cidade do México (agosto). E ainda em uma exposição no Rubin Center, da Universidade do Texas em El Paso, em setembro. Em outubro, a artista também deve montar uma obra pública para Prospect II, a Bienal Internacional de New Orleans, organizada por Dan Cameron, e participar da Bienal de Cuenca, no Equador, no final do ano.
Também está previsto o lançamento de dois livros no primeiro semestre. O Outro Lado da Imagem e Outros Textos, que reúne 11 textos sobre o trabalho de Regina Silveira, publicados por Adolfo Montejo - poeta, crítico e curador- desde 2000. O segundo título é Regina Silveira, organização e texto crítico também de Adolfo Montejo com colaborações de Arlindo Machado e Dan Cameron. A publicação é da Luciana Brito Galeria, São Paulo, editado pela Charta Books, de Milão e Nova York.