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dezembro 2, 2009
Museu de história natural de linha por Guilherme Bueno
O trabalho de Wanda Pimentel guarda uma particularidade desde o momento em que começa a ganhar visibilidade na segunda metade da década de 1960. Trata-se de um caso único de conseguir fazer uma linha reta possuir a sensualidade de um arabesco. O mesmo se atesta em suas cores e no desenho minuciosamente precisos: a artista confere a cores chapadas e a um traço vizinho à linguagem do desenho técnico um grau de pessoalidade, diria de intimidade, singulares, se comparado à “visualidade imediata” de alguns de seus pares geracionais. É uma gráfica introspectiva e evidente, que nasce do paradoxo do caráter supostamente “frio” de seu tratamento. Mas, por isso mesmo, suas obras causam no espectador um impacto profundo, ao desconcertarem-no com sua tensão entre a nitidez e o que lhe escapa. Tomemos, por exemplo, alguns trabalhos mais antigos: cenas de interiores, fragmentos urbanos... – tal repertório fora uma das bases da pintura moderna, ao fundar um espaço privado, destinado a uma vivência subjetiva. Em Wanda, duas coisas decorriam simultaneamente dali: a primeira, a capacidade de reverter todo e qualquer objeto para esta dimensão pessoal. A segunda dela sempre se apresentar como pedaço de uma história em suspenso que suga o espectador; ele entra nesta narrativa impossível de ser recomposta, até certo ponto impassível, inflexível em sua descrição cuidadosa e, por isso, vedada à objetividade interpretativa. É uma superfície delicadamente exterior, que intermedeia pelo eixo do desenho uma subjetividade pública e uma privada.
A série apresentada na Galeria Anita Schwartz significa uma continuidade e um novo ponto de partida em sua obra. Ela prossegue naquilo que seu método conjuga o refinamento com a capacidade dele infiltrar senão um mistério, ao menos a reiterada dúvida sobre a lucidez e clareza visual. Um desdobramento, por eles nascerem de uma conjugação entre o espaço pictórico e aquele outro objetual. É bem verdade que podemos remontar este encontro até a inflexão que deu origem à “pós”-modernidade, mas, no caso dos trabalhos recentes, isto ganha um outro contorno, ao fazer do mundo uma grande linha onde aquelas esferas acima mencionadas se condensam. Antes, suas telas buscavam o mundo; agora se passa o contrário – ele se agrega à superfície e se transforma numa linha matisseana que poderíamos dizer (quase) in natura, com as serpentes artesanais que se adequam aos traços realizados pela artista. Um desenho natural, se tal acepção é possível, por migrarem para o âmbito da cultura (desenho) os objetos tal como eles se apresentam no real. Ainda assim convém insistir na idéia deste “desenho natural” ser uma metáfora: não só porque a artista incorpora figuras que são imagens derivadas (as cobras por si só são desenhos – interpretações feitas a partir de uma memória gráfica do artesão), mas ainda pela sobreposição de dois desenhos – aquele nascido da apropriação da artista, ao incorporar tais objetos como linha e o outro nascido de sua própria mão (este último com sua familiaridade com as grades perspectivas e as modernas, outras duas invenções do real), como, finalmente, na própria suposição de existir um desenho que simule não nascer como cultura, pensamento objetivo sobre o mundo. Dispostos lado a lado, como uma grande enciclopédia de taxionomia, eles colocam ao espectador a dúvida de quando aquelas linhas passaram a existir. Dito de outro modo, qual o limite entre a espontaneidade de suas torções ou do quanto elas precisam se enrijecer para ficarem contidas no sistema gráfico meticuloso de Wanda. Nesta manobra sutil, percebemos a familiaridade destes trabalhos com o permanente estranhamento lúcido de seu universo poético. Há, de um ponto de vista, este impacto e infiltração corrosiva, quase magrittiana, que igualmente habita suas telas: um tempo narrativo sempre a ser preenchido, imiscuído pelo olhar, mas também rebatido pela parede pictórica compacta. Os vazios em suas telas são um outro espaço de projeção, no qual o espectador se situa, como em um mapa ou uma planta baixa para percorrer o terreno. Em sua instalação, aquele imaginário ganha solidez, ele passa a ocupar um espaço tátil, ao se fazer um desenho-objeto. Os vãos entre as serpentes e as malhas gráficas que as sustentam, acabam, com sua espessura inconsútil e imaterial, se moldando como o espaço de negociação entre estes dois desenhos, desenhos materiais na própria origem. A diferença entre eles e as pinturas está justamente no modo como cada um dos trabalhos lida com o jogo reflexivo entre espectador e obra: se o plano da pintura é um emparedamento que o olho desejante a todo custo tenta transpor, na instalação é um furor do arabesco tornado coisa a lhe acometer. Linha-objeto-tabu, sua história natural é o mal-estar de uma civilização pictórica, mas também o inventário de seu princípio do prazer. Em última instância, elas “mimetizam” a própria visualidade nascida de um mundo pós-industrial para desnaturalizá-la – não por qualquer apelo à espontaneidade, nem para humaniza-la – para forçar o espectador a um olhar inquieto. Densidade da superfície, superfície infinita, mas compactada em uma discreta caixa de vidro e madeira.