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dezembro 2, 2009
DE A. CERVENE PICTORE por Giancarlo Hannud
“Talvez a alguns, o fato desta nota estar encabeçada por um título em latim possa parecer pouco usual, ou, pior de todos os crimes, uma simples afetação de estilo. No entanto, ao tratar do trabalho de Alex Cerveny, este obsoletismo talvez possa ser perdoado, pois estamos aqui lidando com um artista que serve-se de uma linguagem que se não é propriamente arcaica, é inegavelmente arcaizante. No sistema estético Cerveniano encontramos motivos patentemente contemporâneos que nos são apresentados envoltos em um véu imemorial, em um não sei quê de secular. Nesse sistema, o que interessa são as características fundamentais; nele o contemporâneo é tratado de forma prototípica e para compreendê-lo (seria isso realmente desejável?) teríamos que nos aproximar antes da razão dos mitógrafos do que a dos sociólogos. Isso acaba por aproximar a obra de Cerveny – e torná-la tão fugitiva quanto – da arte de latitudes e séculos que nos são inteiramente estrangeiros, como a dos livros dos mortos egípicios, das ilustrações mogóis, ou dos afrescos pompeanos, onde tudo parece nos afastar, impedindo uma compreensão tranquila a partir de parâmetros correntes. Para empregar uma símile literaria, sua obra opera dentro do mesmo princípio estético que a decisão de verter a série de livros do feiticeiro Harry Potter para o latim; poderia existir título mais arcaizante que Harrius Potter et Philosophi Lapis ou Harrius Potter et Camera Secretorum?
A leitura de obras em latim, sejam elas de autoria de J. K. Rowling, Santo Agostinho, ou Petrônio, constitui nos dias de hoje um prazer solitário e borrifado de formol. O mesmo acontece com a pintura narrativa, e por conseguinte, com a pintura de A. Cerveny. Essa pintura tantas vezes declarada morta, que tem como alicerce historial um legado que remonta às pinturas rupestres de Lascaux e compreende a pintura ocidental em sua quase totalidade, personifica, de certa maneira, a questão da linhagem e da tradição. Essas duas particularidades são fundamentais para uma apreensão mais fluente do códice visual de A. Cerveny, pois ele mesmo pertence a uma tradição artística diametricalmente oposta àquela apresentada pelo ensino contemporâneo das artes em faculdades e universidades: àquela do aprendiz lentamente convertido em artista no interior da oficina de um algum mestre; do sistema de aprendizagem imposto pelas guildas medievais com seus muitos estágios e gradações; da tradição que criou as Academias setecentistas e a hierarquia dos gêneros. Um treinamento que inegavelmente gerou grandes novos mestres, mas que nunca carregou dentro de si uma inclinação nem ruptiva nem renovadora, mas antes uma predileção pelo desenvolvimento e dilatação das formas preexistentes, por um fazer e um narrar continuamente refinados.
Essa mesma tradição defendia a pintura histórica como pináculo de sua prática, pois ela era uma pintura moralmente edificante, inspiradora, uma pintura que ensinava os homens a bem viver. As pinturas e aquarelas apresentadas na exposição Paraguay e outras pinturas, se enquadram na categoria de pintura histórica; uma pintura histórica um pouco canhestra, blasfêmica, impostora até, pois ela não nos ensina coisa alguma e não serve de exemplo a ninguém, mas uma pintura todavia histórica. O palco dos relatos, invariavelmente, é o deserto, apresentado aqui como território fértil, propício para a revelação, criação ou invenção – deixo a escolha do termo ao leitor –, da triplice aliança formada pelas religiões monoteístas. Um deserto de devoção tongue-in-cheek, ocupado por cactos façanhudos, oliveiras fantásticas, montes que se assemelham a torres nuraguicas com embocaduras capiteladas e grandes mares que poderiam desaparecer a qualquer momento. Habitado por homens barbados e onças-pintadas meio minosas meio mimosas, esses desertos nos contam histórias que não servem de exemplo, não somente pelo fato de se tratarem de versões incrivelmente pessoais da história, repletas de devaneios e digressões por vezes incompreensíveis, mas também por serem histórias mais próximas, de um passado mais fantasticamente local. Se antes Cerveny versou sobre a Arcadia e o passado biblíco, ele agora parece se interessar mais pelo Paraguai, por Eliza Lynch e Solano López, pelos poemas mais tipicamente novecentistas de Castro Alves, por whisky e cigarro contrabandeados e lindas melodias em guarany. É inevitável que o empreendimento da pintura histórica por estas bandas resulte em narrativas um pouco baralhadas, pois como escreveu Alejo Carpentier, aqui “tudo é fábula: contos de Eldorados e Potosís, cidades-fantasmas, esponjas que falam, carneiros de velocino vermelho, Amazonas com uma teta a menos, e orejones que se alimentam de jesuítas.” Para parafrasear uma frase do compositor artífice do dodecafonismo e pintor domingueiro Arnold Schönberg, ainda existem muitas boas histórias a serem contadas à óleo.