|
março 23, 2009
Arte em trânsito e em todos os sentidos por Cristiana Tejo
Texto curatorial para a Sala especial Paulo Bruscky na Bienal de Havana
Em seu trabalho feito especialmente para a Feira ARCO 2008, em Madri, Paulo Bruscky desenvolve um múltiplo no qual a frase Poema para voar. Arte em trânsito e em todos os sentidos – Hoje a Arte é este comunicado encontra-se ao lado do carimbo de um avião que a aponta para direções opostas. A junção destes signos sintetiza perfeitamente sua trajetória artística de 40 anos, pautada pela liberdade de expressão, adesão ao humor e à ironia de raras coerências, fluidez no trânsito entre linguagens e diálogo com outros artistas espalhados pelo mundo por meio da Arte Postal. Bruscky é um artista que escapa de definições apressadas. Trata-se de um artista muito pernambucano (Nordeste do Brasil), mas seu trabalho extrapola uma circunscrição localista. É um artista que surgiu nos anos 1970, mas carrega ainda o frescor e o entusiasmo como se agora iniciasse seu caminho. Ainda faz arte de qualquer forma, a partir de qualquer meio para materializar uma idéia. Resumindo: trata-se de um artista sem geração e sem território geográfico muito preciso.
Outro dado importante para compreendermos a rota de Paulo Bruscky é o fato da ARCO 2008 ter sido sua primeira participação em uma feira de arte comercial. Durante muitos anos, trabalhou como funcionário público em instituições de saúde de Pernambuco, valendo-se disso como uma estratégia de sobrevivência da sua família e de sua sensibilidade. Aderir ao mercado em meio ao período mais duro da Ditadura Militar no Brasil era corroborar com um regime que afugentava qualquer possibilidade de crítica e reflexão, e virar mais uma peça do sistema capitalista. O lugar de Bruscky na Arte Brasileira foi sempre um pouco incerto, quase marginal. Ao mesmo tempo em que buscava ser independente do Mercado, seu posicionamento crítico o impedia de entrar em vários eventos, instituições e ações institucionais de sua cidade, pois era visto como um artista exótico, picareta e subversivo. Seu trabalho conceitualista destoava ainda da produção artística da época, voltada em especial para a pintura e com temas regionalistas. Paulo Bruscky era um ruído, uma voz dissonante, um lembrete incômodo do experimentalismo que tomava conta do mundo e que contestava velhas estruturas sociais, artísticas, políticas e econômicas. Fazer parte da primeira grande rede de trocas e de colaboração como a Arte Postal (Mail Art) proporcionava, nos anos 1970, uma forma de furar um bloqueio não apenas da repressão do Estado e da situação de estar na periferia do Capital, mas também de um cerco local. Por meio da Arte Postal, Bruscky tomava conhecimento das questões discutidas no mundo da arte internacional e confrontava suas idéias com pares espalhados pelo mundo, além de ser inserido em mostras internacionais e travar diálogo com vários artistas exponenciais da Arte Contemporânea, tais como Dick Higgins, Robert Rehfedt, Shozo Shimamoto (Gutai), Ken Friedman e Dick Higgins (Fluxus), Antonio Ferró (Happening) Cavellini, Vigo, Zabala, Romano Peli, Damaso Ogaz, Mirella Bentivoglio e Robin Crozier, entre outros. Influenciado pela proposta do pensar/agir de movimentos como Grupo Gutai (Japão), Grupo Fluxus, Dadaísmo e outras correntes de Vanguarda do início e meados do século XX, bem como pelo pensamento de artistas como Marcel Duchamp, Man Ray e René Magritte, Bruscky partiu sempre do princípio de que o pavimento por onde trafega a arte é a vida e que ela permeia qualquer estratégia artística. “A multiplicação, desmaterialização/rematerialização e dessacralização da 'obra de arte' e do 'artista' é fundamental para que passe a existir uma só coisa em tudo isso: vida”, costuma afirmar. Talvez pudéssemos adotar o termo infiltração para compreender a estratégia artística engendrada por ele. Os classificados dos jornais de grande circulação também eram um suporte viável para tornar públicas as propostas quase impossíveis do artista.
Além da busca pela livre circulação da arte, podemos encontrar ainda quatro linhas de força no trabalho de Paulo Bruscky: a experimentação em multimeios (tais como fotocópias, vídeos e filmes em vários formatos, livros de artista e áudio), intervenções urbanas, poesia visual e o arquivo. A primeira linha nos faz perceber que o artista buscava explorar poeticamente máquinas e testar as singularidades de cada técnica, entre a crítica e a adesão a seus potenciais. A partir de 1970, Bruscky inicia pioneiramente no Brasil experiências em copyart, apelidadas de Xerox arte . Este meio mostra-se ideal para a extensa sede criativa do artista, que pode manipular os resultados plásticos de inúmeras maneiras (seja adicionando cor com tinha ou voltando a fotocopiar, ou fazendo intervenções com objetos colocados na máquina). Encanta-o neste jogo entre homem e máquina a tensão entre acaso e lógica, o transbordamento da intenção. A temporada passada em Nova York, em 1982, graças a uma bolsa da Guggenheim Memorial Foundation, oferece condições de aprofundar sua pesquisa com a Xerox arte. Tendo todo o suporte para a experimentação com este meio, inclusive uma máquina exclusiva para suas experiências, Paulo Bruscky aprimora seus trabalhos em xerofilmes (filmes produzidos a partir de imagens xerográficas), na sede da empresa Xerox. Aliás, filmes e vídeos de artista ocupam parte significativa de sua trajetória. Interessa novamente ao artista tirar proveito das potencialidades poéticas da técnica com ironia e humor. Em Poema (1979), trabalho em super-8, Bruscky emenda pontas de rolos de filme. O que era o final transforma-se no meio. Em Via Crúcis (1979), de autoria de Paulo Bruscky, Leonhard Frank Duch e Ulisses Carrion, a câmera acompanha um ofegante narrador que declama os nomes próprios inscritos em cada um das centenas de degraus de uma longa escadaria.
Em parceria com Daniel Santiago, Paulo Bruscky inicia a partir de 1970 uma seqüência de intervenções urbanas em que a cidade é suporte poético e político. Em Exponáutica e Expogente (1970), objetos e freqüentadores da praia de Boa Viagem viram itens de exposição. Em Artexpocorponte(1971), a dupla Bruscky & Santiago convida amigos que se posicionam em duas pontes no centro do Recife para trocarem sinais. Em Arte/Pare, Bruscky interdita o tráfego de carros na ponte da Boa Vista por vários minutos com uma fita e reinaugura-a, 340 anos depois. Para o artista o mundo é poesia.
Apesar de uma extensa produção, apenas nos anos 2000 o seu trabalho passou a ser reconhecido nacionalmente. Sua primeira participação efetiva em um evento de prestígio em território nacional ocorreu em 2004, quando foi convidado para sala especial da XXV Bienal de Arte de São Paulo. Ironicamente, o arquivista que guarda milhares de documentos da efêmera Arte Contemporânea recebe sua primeira publicação de fôlego apenas em 2006, com o livro Paulo Bruscky: Arte, Arquivo e Utopia, de Cristina Freire.