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dezembro 3, 2007
Taco virador (ou as virações de Diego Belda), por Juliana Monachesi
Taco virador (ou as virações de Diego Belda)
Texto crítico de Juliana Monachesi, sobre o trabalho de Diego Belda, para a exposição da Galeria Virgilio
Com quantos elementos constitutivos do processo de pintar um artista é capaz de liquidar sem deixar de fazer pintura? A tela e as tintas, a gestualidade, o controle, a escolha minuciosa de cores e tons, a intencionalidade? Segue sendo pintura qualquer objeto disposto na parede de um espaço expositivo? Diego Belda responde a essas perguntas com as obras da exposição Malagueta, Perus e Bacanaço. Para o artista, o mais importante da pintura é o gesto que transforma alguma coisa em pintura, e a qualidade pictórica está na construção do pensamento, na criação de um determinado movimento sobre o plano. O que não difere muito de jogar sinuca.
O jogo - grande inspiração do conjunto de obras que o artista apresenta em sua exposição individual na galeria Virgilio - tem um rigor calculado, que exige pensar em termos de retas, planos e ângulos, cálculo que se mescla ao acaso e à malandragem, e são esses os elementos que constituem os atuais trabalhos de Belda.
Quatro pinturas construídas predominantemente com feltro, fórmica e madeira; uma escultura que se assemelha a uma mesa de sinuca e uma mesa oficial dispostas no espaço, seis pinturas conceituais feitas a partir da apropriação dos tecidos de todas as mesas de um salão de snooker nos Campos Elíseos, o Gold Ball, onde costuma jogar. Assim, a exposição não se faz apenas a partir das associações com a sinuca, inclusa aí a contaminação pelo universo dos vagabundos de João Antônio atravessando a noite - nunca a passeio, sempre a jogo - em salões na Lapa, na Água Branca, Barra Funda, mas, antes, pelo contato próximo com a est(ética) do jogo.
"O jogo de sinuca é muito formalista. Você fica indo atrás da cor. Vai atrás do vermelho, depois vai atrás do amarelo, do verde...", diverte-se o artista e solta para si o risinho canalha que os malandros reconhecem. Risinho meio parado, metade na boca, metade nos olhos[1]. Belda estipulou certas regras para conceber as obras da exposição, por exemplo, trabalhar apenas com as cores da sinuca. Continuando a ladainha de pintor-malandro atrás da cor: depois vem marrom, depois azul, depois vem rosa, depois preto, cores sempre mediadas pelo branco. Acrescentou às cores das bolas tons de madeira, presentes nos tacos e nas mesas de sinuca, e ponto final. Mais cor nenhuma entraria na exposição, nem meios-tons. As formas também seguiram as regras do ritmo do jogo: reta, seqüência, ângulo, cálculo e mais cálculo, não sem um tanto de acaso e picardia. O que não difere muito de pintar.
Malagueta, Perus e Bacanaço já servira de título para uma pintura de 2005 (que foi exposta no Panorama MAM daquele ano), feita de feltro, fórmica e óleo sobre madeira, e agora nomeia a série completa de pinturas, esculturas e objetos expostos na galeria Virgilio. Os malandros de João Antônio entraram de chofre no campo de ação das pinturas de Diego Belda. No famoso conto do escritor, Bacanaço é o rufião safado, Malagueta é um trapo, malandro maduro e cínico, e Perus, um menino tímido, três profissionais do taco que se juntam na noite paulistana para fazer dinheiro na sinuca.
A circularidade da narrativa, que começa com o encontro dos três personagens na Lapa ao cair da noite e termina na volta dos três ao bairro com o dia já amanhecendo -sendo que, entre uma trapaça e outra, ganhando e perdendo, os três anti-heróis andam, andam para terminar no mesmo lugar, literal e simbolicamente- está presente na obra de Belda desde pelo menos sua última exposição individual[2]. De lá para cá, o "neobarroco pós-industrial"[3] deu lugar a uma contenção estratégica, mas a circularidade das obras, extemporâneas que são, permaneceu. As novas pinturas trazem embutido um tempo cíclico e diacrônico, o mesmo que jogadores talvez experimentem ainda hoje em torno da mesa de sinuca, um dia após o outro mais parecendo um mesmo dia que volta a se repetir, um jogo depois do outro que é o mesmo jogo de antes e assim por diante.
Muito se descobre em comum entre arte e sinuca observando os trabalhos recentes de Diego Belda. O silêncio, por exemplo. Nos idos de 1959, os salões de sinuca eram respeitosamente silenciosos, apesar da algazarra da vida noturna. As ruas rangiam lá fora e os homens em volta da mesa faziam o silêncio que se faz ao ruído das bolas. Semelhante ao tom de voz rebaixado em exposições, onde também graça certa algazarra, sobretudo nas noites de vernissage e nas visitas de grupos de escola.
Mais ainda se descobre percebendo os ruídos que o artista cria na aproximação e tensão entre os dois universos. O silêncio, ainda: a disposição dos trabalhos na galeria cria uma dificuldade para a contemplação convencional de obras de arte. Não há recuo para ver as pinturas nem respiro para passear em torno das esculturas. Essa agressividade calculada se deve ao fato de o artista gostar que suas pinturas sejam vistas de perto, porque à distância o campo pictórico poderia silenciar, apreendido por completo. De perto, ele não cessa de se movimentar, em constante estado de tensão. As duas obras que repõem em escala monumental as prosaicas "taqueiras" do salão de sinuca criam outro ruído, no limite que estão do design: acontece que, em sinuca, o taco às vezes é palavra intercambiável com o nome do dono do taco, ao menos na escrita de João Antônio. O taco personifica o jogador. Os tacos saem então de escala mundana para ganhar uma dimensão humana. Malagueta, Perus e Bacanaço crescem na exposição. Braços no ar. Cobras do joguinho e tacos muito falados eram saudados assim pelos cantos que percorriam.
O joguinho se aprende jogando, tudo o mais é ilusão. Foram precisos muitos anos de pintura e de sinuca para realizar esse gesto tão sintético que é a apropriação dos feltros das mesas do Gold Ball. Pode parecer malandragem de artista, truque, blefe. Não é. A maior malandragem é a honesta. Nesse gesto único e à primeira vista simples estão condensados não apenas anos de uma trajetória artística, mas muitas décadas -se não séculos- de história da arte. Da cosa mentale de Da Vinci ao ready-made de Duchamp, idéias se transmutam em obras-primas com um único gesto, devidamente amadurecido. As seis telas verdes, que são datadas conforme o tempo de uso dos feltros, são uma síntese poderosa do pensamento da pintura: planaridade com sugestão de volumetria, abstração pura com pura narratividade, contemplação com uso, escala heróica com miséria humana. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali, desencontrados.
E a exposição não se encerra em si mesma: continua no Gold Ball, onde foram instalados feltros novos nas seis mesas de onde saíram as pinturas ready-made de Belda. Ali no salão, em meio ao cotidiano de malandros e anti-heróis da noite paulistana, uma pintura do artista fecha o círculo do processo de construção de Malagueta, Perus e Bacanaço. Pode ser apreciada pelos visitantes da exposição, assim como pelo público do snooker bar, e vice-versa. Literal e simbolicamente, os malandros saíram de um lugar e voltaram coerentemente a ele.
[1] Os textos em itálico são apropriações ou paráfrases de trechos do conto Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), de João Antônio, no livro de mesmo título [São Paulo: editora Cosac Naify, 2004].
[2] Também na galeria Virgilio, entre 16 de março e 8 de abril de 2005.
[3] Expressão cunhada pelo crítico Guy Amado em texto sobre a mostra, intitulado Para além da pintura.
Diego Belda
Malagueta, Perus e Bacanaço
6 de dezembro a 15 de fevereiro de 2008
Galeria Virgilio
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